Primeira Parte
A Busca do Homem - A Mente Torturada - O Caminho Tradicional - A Armadilha da Respeitabilidade - O Ente Humano e o Indivíduo - A Batalha da Existência - A Natureza Básica do Homem - A Responsabilidade - A Verdade - A Dissipação de Energia - A Libertação da Autoridade
A Busca do Homem
Através das idades veio o homem buscando uma certa coisa além de si próprio, além do bem-estar material - uma coisa que se pode chamar verdade, Deus ou realidade, um estado atemporal - algo que não possa ser perturbado pelas circunstâncias, pelo pensamento ou pela corrupção humana.
O homem sempre indagou: Qual a finalidade de tudo isto? Tem a vida alguma significação? Vendo a enorme confusão reinante na vida, as brutalidades, as revoltas, as guerras, as intermináveis divisões da religião, da ideologia, da nacionalidade, pergunta o homem, com um profundo sentimento de frustração, o que se deve fazer, o que é isso que se chama viver e se alguma coisa existe além de seus limites.
E, não podendo encontrar essa coisa sem nome e de mil nomes que sempre buscou, o homem cultivou a fé - fé num salvador ou num ideal, a fé que invariavelmente gera a violência.
A Mente Torturada
Nesta batalha constante que chamamos "viver", procuramos estabelecer um código de conduta, conforme a sociedade em que somos criados, quer seja uma sociedade comunista, quer uma pretensa sociedade livre; aceitamos um padrão de comportamento como parte de nossa tradição hinduista, muçulmana, cristã ou outra. Esperamos que alguém nos diga o que é conduta justa ou injusta, pensamento correto ou incorrecto e, pela observância desse padrão, nossa conduta e nosso pensar se tornam mecânicos, nossas reações, automáticas. Pode-se observar isso muito facilmente em nós mesmos.
O Caminho Tradicional
Durante séculos fomos amparados por nossos instrutores, nossas autoridades, nossos livros, nossos santos. Pedimos: "Dizei-me tudo; mostrai-me o que existe além dos montes, das montanhas e da Terra" - e satisfazemo-nos com suas descrições, quer dizer, vivemos de palavras, e nossas vidas são superficiais e vazias. Não somos originais. Temos vivido das coisas que nos têm dito, ou guiados por nossas inclinações, nossas tendências, ou impelidos a aceitar pelas circunstâncias e o ambiente. Somos o resultado de toda espécie de influências e em nós nada existe de novo, nada descoberto por nós mesmos, nada original, inédito, claro.
A Armadilha da Respeitabilidade
Consoante a história teológica garantem-nos os guias religiosos que, se observarmos determinados rituais, recitarmos certas preces e versos sagrados, obedecermos a alguns padrões, refrearmos nossos desejos, controlarmos nossos pensamentos, sublimarmos nossas paixões, se nos abstivermos dos prazeres sexuais, então,
A Mente Torturada
após torturar suficientemente o corpo e o espírito, encontraremos uma certa coisa além desta vida desprezível.
É isso o que tem feito, no decurso das idades, milhões de indivíduos ditos religiosos, quer pelo isolamento, nos desertos, nas montanhas, numa caverna, quer peregrinando de aldeia em aldeia a esmolar, quer em grupos, ingressando em mosteiros e forçando a mente a ajustar-se a padrões estabelecidos. Mas, a mente que foi torturada, subjugada, a mente que deseja fugir a toda agitação, que renunciou ao mundo exterior e se tornou embotada pela disciplina e o ajustamento - essa mente, por mais longamente que busque, o que achar será em conformidade com sua própria deformação.
Assim, para descobrir se de fato existe ou não alguma coisa além desta existência ansiosa, culpada, temerosa, competidora, parece-me necessário tomarmos um caminho completamente diferente. O caminho tradicional parte da periferia para dentro, para, através do tempo, da prática e da renúncia, atingir gradualmente aquela flor interior, aquela íntima beleza e amor - enfim, tudo fazer para nos tornarmos estreitos, vulgares e falsos; retirar as camadas uma a uma; precisar do tempo: amanhã ou na próxima vida chegaremos - e quando, afinal, atingimos o centro, não encontramos nada, porque nossa mente se tornou incapaz, embotada, insensível.
Após observar esse processo, perguntamos a nós mesmos se não haverá outro caminho totalmente diferente, isto é, se não teremos possibilidade de "explodir" do centro.
O mundo aceita e segue o caminho tradicional. A causa primária da desordem em nós existente é estarmos buscando a realidade prometida por outrem; mecanicamente seguimos todo aquele que nos garante uma vida espiritual confortável. É um fato verdadeiramente singular esse, que, embora em maioria sejamos contrários à tirania política e à ditadura, interiormente aceitamos a autoridade, a tirania de outrem, permitindo-lhe deformar a nossa mente e a nossa vida.
A Armadilha da Respeitabilidade
Assim, se de todo rejeitarmos, não intelectual, porém realmente, a autoridade dita espiritual, as cerimónias, rituais e dogmas, isso significará que estamos sozinhos, em conflito com a sociedade; deixaremos de ser entes humanos respeitáveis. Ora, um ente humano respeitável nenhuma possibilidade tem de aproximar-se daquela infinita, imensurável realidade.
Começais agora por rejeitar uma coisa que é totalmente falsa - o caminho tradicional - mas, se o rejeitardes como reação, tereis criado outro padrão no qual vos vereis aprisionado como numa armadilha; se intelectualmente dizeis a vós mesmo que essa rejeição é uma ideia importante, e nada fazeis, não ireis mais longe. Se entretanto a rejeitardes por terdes compreendido quanto é estúpida e imatura, se a rejeitais com alta inteligência, porque sois livres e sem medo, criareis muita perturbação dentro e ao redor de vós, mas vos livrareis da armadilha da respeitabilidade. Vereis então que cessou o vosso buscar. Esta é a primeira coisa que temos de aprender: não buscar. Quando buscais, agis, com efeito, como se estivésseis apenas a olhar vitrinas.
A pergunta sobre se há Deus, verdade, ou realidade - ou como se queira chamá-lo - jamais será respondida pelos livros, pelos sacerdotes, filósofos ou salvadores. Ninguém e nada pode responder a essa pergunta, a não serdes vós mesmos, e essa é a razão por que deveis conhecer-vos. Só há falta de madureza na total ignorância de si mesmo. A compreensão de si próprio é o começo da sabedoria.
O Ente Humano e o Indivíduo
E, que é vós mesmo, o vós individual? Penso que há uma diferença entre o ente humano e o indivíduo. O indivíduo é a entidade local, o habitante de qualquer país, pertencente a determinada cultura, uma dada sociedade, uma certa religião. O ente humano não é uma entidade local. Ele está em toda parte. Se o indivíduo só atua num certo canto, isolado do vasto campo da vida, sua ação está totalmente desligada do todo. Portanto, é necessário ter em mente que estamos falando do todo e não da parte, porque no maior está contido o menor, mas o menor não contém o maior. O indivíduo é aquela insignificante entidade condicionada, aflita, frustrada, satisfeita com seus pequeninos deuses e tradições; já o ente humano está interessado no bem-estar geral, no sofrimento geral e na total confusão em que se acha o mundo.
A Batalha da Existência
Nós, entes humanos, somos os mesmos que éramos há milhões de anos - enormemente ávidos, invejosos, agressivos, ciumentos, ansiosos e desesperados, com ocasionais lampejos de alegria e afeição. Somos uma estranha mistura de ódio, medo e ternura; somos a um tempo a violência e a paz. Têm-se feito progressos, exteriormente, do carro de boi ao avião a jacto, porém, psicologicamente, o indivíduo não mudou em nada, e a estrutura da sociedade, em todo o mundo, foi criada por indivíduos. A estrutura social, exterior, é o resultado da estrutura psicológica, interior, das relações humanas, pois o indivíduo é o resultado da experiência, dos conhecimentos e da conduta do homem, englobadamente. Cada um de nós é o depósito de todo o passado. O indivíduo é o ente humano que representa toda a humanidade. Toda a história humana está escrita em nós.
Observai o que realmente está ocorrendo dentro e fora de vós mesmo, na cultura de competição em que viveis, com seu desejo de poder, posição, prestígio, nome, sucesso etc.; observai as realizações de que tanto vos orgulhais, todo esse campo que chamais viver e no qual há conflito em todas as formas de relação, suscitando ódio, antagonismo, brutalidade e guerras intermináveis. Esse campo, essa vida, é tudo o que conhecemos, e como somos incapazes de compreender a enorme batalha da existência, naturalmente lhe temos medo e dela tentamos fugir pelas mais subtis e variadas maneiras. Temos também medo ao desconhecido - temor da morte, temor do que reside além do amanhã. Assim, temos medo ao conhecido e medo ao desconhecido. Tal é a nossa vida diária; nela, não há esperança alguma e, por conseguinte, qualquer espécie de filosofia, qualquer espécie de teologia representa meramente uma fuga à realidade - do que é.
Todas as formas exteriores de mudança, produzidas pelas guerras, revoluções, reformas; pelas leis e ideologias, falharam completamente, pois não mudaram a natureza básica do homem e, portanto, da sociedade. Como seres humanos, vivendo neste mundo monstruoso, perguntemos a nós mesmos: "Pode esta sociedade, baseada na competição, na brutalidade e no medo, terminar? - terminar, não como um conceito intelectual, como uma esperança, porém como um fato real, de modo que a mente se torne vigorosa, nova, inocente, capaz de criar um mundo totalmente diferente?" Creio que isso só ocorrerá se cada um de nós reconhecer o fato central de que, como indivíduos, como entes humanos - seja qual for a parte do universo em que vivamos, não importando a que cultura pertençamos - somos inteiramente responsáveis por toda a situação do mundo.
Somos, cada um de nós, responsáveis por todas as guerras, geradas pela agressividade de nossas vidas, pelo nosso nacionalismo, egoísmo, nossos deuses, preconceitos, ideais - pois tudo isso está a dividir-nos. E só quando percebemos, não intelectualmente, porém realmente, tão realmente como reconhecemos que estamos com fome ou que sentimos prazer, bem como quando vós e eu percebemos que somos os responsáveis por todo este caos, por todas as aflições existentes no mundo inteiro, porque para isso contribuímos em nossa vida diária e porque fazemos parte desta monstruosa sociedade, com suas guerras, divisões, sua fealdade, brutalidade e avidez - só então poderemos agir.
Mas, que pode fazer um ente humano, que podeis vós e que posso eu fazer para criar uma sociedade completamente diferente? Estamos fazendo a nós mesmos uma pergunta muito séria. É necessário fazer alguma coisa? Que podemos fazer? Alguém no-lo dirá? Muita gente no-lo tem dito. Os chamados guias espirituais, que supõem compreender essas coisas melhor do que nós, no-lo disseram, tentando modificar-nos e moldar-nos em novos padrões, e isso não nos levou muito longe; homens sofisticados e eruditos no-lo têm dito, e também eles não nos levaram mais longe. Disseram-nos que todos os caminhos levam à verdade; vós tendes o vosso caminho, como hinduista, outros o tem como cristão, e outros, ainda, o têm como muçulmano; mas, todos esses caminhos vão encontrar-se diante da mesma porta. Isso, quando o consideramos bem, é um evidente absurdo.
A Natureza Básica do Homem
A verdade não tem caminho, e essa é sua beleza; ela é viva. Uma coisa morta tem um caminho a ela conducente, porque é estática, mas, quando perceberdes que a verdade é algo que vive, que se move, que não tem pouso, que não tem templo, mesquita ou igreja, e que a ela nenhuma religião, nenhum instrutor, nenhum filósofo pode levar-vos - vereis, então, também, que essa coisa viva é o que realmente sois - vossa irascibilidade, vossa brutalidade, vossa violência, vosso desespero, a agonia e o sofrimento em que viveis. Na compreensão de tudo isso se encontra a verdade. E só o compreendereis se souberdes como olhar tais coisas de vossa vida. Mas não se pode olhá-las através de uma ideologia, de uma cortina de palavras, através de esperanças e temores.
Como vedes, não podeis depender de ninguém. Não há guia, não há instrutor, não há autoridade. Só existis vós, vossas relações com outros e com o mundo, e nada mais. Quando se percebe esse facto, ou ele produz um grande desespero, causador de pessimismo e amargura; ou, enfrentando o fato de que vós e ninguém mais sois o responsável pelo mundo e por vós mesmo, pelo que pensais, pelo que sentis, pela maneira como agis, desaparece de todo a autocompaixão. Normalmente, gostamos de culpar os outros, o que é uma forma de autocompaixão.
Poderemos, então, vós e eu, promover em nós mesmos - sem dependermos de nenhuma influência exterior, de nenhuma persuasão, sem nenhum medo de punição - poderemos promover em nossa própria essência uma revolução total, uma mutação psicológica, para que não sejamos mais brutais, violentos, competidores, ansiosos, medrosos, ávidos, invejosos - enfim, todas as manifestações de nossa natureza que formaram a sociedade corrompida em que vivemos nossa vida de cada dia?
Importa compreender desde já que não estou formulando nenhuma filosofia ou estrutura de ideias ou conceitos teológicos. Todas as ideologias se me afiguram totalmente absurdas. O importante não é uma filosofia da vida, porém que observemos o que realmente está ocorrendo em nossa vida diária, interior e exteriormente. Se observardes muito atentamente o que se está passando, se o examinardes, vereis que tudo se baseia num conceito intelectual. Mas o intelecto não constitui o campo total da existência; ele é um fragmento, e todo fragmento, por mais engenhosamente ajustado, por mais antigo e tradicional que seja, continua a ser uma parte insignificante da existência, e nós temos de interessar-nos pela totalidade da vida. Quando consideramos o que está ocorrendo no mundo, começamos a compreender que não há processo exterior nem processo interior; há só um processo unitário, um movimento integral, total, sendo que o movimento interior se expressa exteriormente, e o movimento exterior, por sua vez, reage ao interior. Ser capaz de olhar esse fato - eis o que é necessário, só isso; porque, se sabemos olhar, tudo se torna claríssimo. O ato de olhar não requer nenhuma filosofia, nenhum instrutor. Ninguém precisa ensinar-vos como olhar. Olhais, simplesmente.
Assim, vendo todo esse quadro, vendo-o não verbalmente porém realmente, podeis transformar-vos, natural e espontaneamente? Esse é que é o verdadeiro problema. Será possível promover uma revolução completa na psique?
Eu gostaria de saber qual é a vossa reação a uma pergunta dessas. Direis, porventura: "Não desejo mudar" - e a maioria das pessoas não o deseja, principalmente aqueles que se acham em relativa segurança, social e economicamente, ou que conservam crenças dogmáticas e se satisfazem em aceitar a si próprios e às coisas tais como são ou em forma ligeiramente modificada. Tais pessoas não nos interessam. Ou talvez digais, mais subtilmente: "Ora, isso é dificílimo, está fora do meu alcance". Nesse caso, já fechastes o caminho, já cessastes de investigar e será completamente inútil prosseguir. Ou, ainda, direis: "Percebo a necessidade de uma transformação interior, fundamental, em mim mesmo, mas como empreendê-la? Peço-vos me mostreis o caminho, me ajudeis a alcançá-la". Se assim falardes, então o que vos interessa não é a transformação em si, não estais realmente interessados numa revolução fundamental: estais, meramente, a buscar um método, um sistema capaz de efectuar a mudança.
Se fôssemos tão sem juízo que vos déssemos um sistema, e vós tão sem juízo que o seguísseis, estaríeis meramente a copiar, a imitar, a ajustar-vos, a aceitar, e, fazendo tal coisa, teríeis estabelecido em vós mesmo a autoridade de outrem, do que resultaria conflito entre vós e essa autoridade. Pensais que deveis fazer tal e tal coisa porque vo-la mandaram fazer e, no entanto, sois incapaz de fazê-la. Tendes vossas peculiares inclinações, tendências e pressões, que colidem com o sistema que julgais dever seguir e, por conseguinte, existe uma contradição. Levareis, assim, uma vida dupla, entre a ideologia do sistema e a realidade de vossa existência diária. No esforço para ajustar-vos à ideologia, recalcais a vós mesmo e, no entanto, o que é realmente verdadeiro não é a ideologia, porém aquilo que sois. Se tentardes estudar-vos de acordo com outrem, permanecereis sempre um ente humano sem originalidade.
O homem que diz: "Desejo mudar, dizei-me como consegui-lo" - parece muito atento, muito sério, mas não o é. Deseja uma autoridade que ele espera estabelecerá a ordem nele próprio. Mas, pode algum dia a autoridade promover a ordem interior? A ordem imposta de fora gera sempre, necessariamente, a desordem. Podeis perceber essa verdade intelectualmente, mas sereis capaz de aplicá-la de maneira que vossa mente não mais projete qualquer autoridade - a autoridade de um livro, de um instrutor, da esposa ou do marido, dos pais, de um amigo, ou da sociedade? Como sempre funcionamos segundo o padrão de uma fórmula, essa fórmula torna-se em ideologia e autoridade; mas, assim que perceberdes realmente que- a pergunta "como mudar?" cria uma nova autoridade, tereis acabado com a autoridade para sempre.
Repitamo-lo claramente: Vejo que tenho de mudar completamente, desde as raízes de meu ser; não posso mais depender de nenhuma tradição, porque foi a tradição que criou essa colossal indolência, aceitação e obediência; não posso contar com outrem para me ajudar a mudar, com nenhum instrutor, nenhum deus, nenhuma crença, nenhum sistema, nenhuma pressão ou influência externa. Que sucede então?
Em primeiro lugar, podeis rejeitar toda autoridade? Se podeis, isso significa que já não tendes medo. E então que acontece? Quando rejeitais algo falso que trazeis convosco há gerações, quando largais uma carga de qualquer espécie, que acontece? Aumentais vossa energia, não? Ficais com mais capacidade, mais ímpeto, maior intensidade e vitalidade. Se não sentis isso, nesse caso não largastes a carga, não vos livrastes do peso morto da autoridade.
Mas, uma vez vos tenhais livrado dessa carga e tenhais aquela energia em que não há medo de espécie alguma - medo de errar, de agir incorretamente - essa própria energia não é então mutação? Necessitamos de grande abundância de energia, e a dissipamos com o medo; mas, quando existe a energia que vem depois de nos livrarmos de todas as formas do medo, essa própria energia produz a revolução interior, radical. Nada tendes que fazer nesse sentido.
Ficais então a sós com vós mesmo, e esse é o estado real que convém ao homem que considera a sério estas coisas. E como já não contais com a ajuda de nenhuma pessoa ou coisa, estais livre para fazer descobertas. Quando há liberdade, há energia; quando há liberdade, ela não pode fazer nada errado. A liberdade difere inteiramente da revolta. Não há agir correta ou incorretamente, quando há liberdade. Sois livre e, desse centro, agis. Por conseguinte, não há medo, e a mente sem medo é capaz de infinito amor. E o amor pode fazer o que quer.
O que agora vamos fazer, por conseguinte, é aprender a conhecer-nos, não de acordo comigo ou de acordo com um certo analista ou filósofo; porque, se o fazemos de acordo com outras pessoas, aprendemos a conhecer essas pessoas e não a nós mesmos. Vamos aprender o que somos realmente.
Tendo percebido que não podemos depender de nenhuma autoridade exterior para promover a revolução total na estrutura de nossa própria psique, apresenta-se a dificuldade infinitamente maior de rejeitarmos nossa própria autoridade interior, a autoridade de nossas próprias e insignificantes experiências e opiniões acumuladas, conhecimentos, idéias e ideais. Digamos que tivestes ontem uma experiência que vos ensinou algo, e isso que ela ensinou se torna uma nova autoridade, e vossa autoridade de ontem é tão destrutiva quanto a autoridade de um milhar de anos. A compreensão de nós mesmos não requer nenhuma autoridade, nem a do dia anterior nem a de há mil anos, porque somos entidades vivas, sempre em movimento, sempre a fluir e jamais se detendo. Se olhamos a nós mesmos com a autoridade morta de ontem, nunca compreenderemos o movimento vivo e a beleza e natureza desse movimento.
Livrar-se de toda autoridade, seja própria, seja de outrem, é morrer para todas as coisas de ontem - para que a mente seja sempre fresca, sempre juvenil, inocente, cheia de vigor e de paixão. Só nesse estado é que se aprende e observa. Para tanto, requer-se grande capacidade de percebimento, de real percebimento do que se está passando no interior de vós mesmo, sem corrigirdes o que vedes, nem dizerdes o que deveria ou não deveria ser. Porque, tão logo corrigis, estais estabelecendo outra autoridade, um censor.
Vamos, pois, investigar juntos a nós mesmos; ninguém ficará explicando enquanto ides lendo, concordando ou discordando do explicador ao mesmo tempo que ides seguindo as palavras do texto, porém vamos fazer juntos uma viagem, uma viagem de exploração dos mais secretos recessos de nossa mente. Para empreender essa viagem, precisamos estar livres; não podemos transportar uma carga de opiniões, preconceitos e conclusões - todos os trastes imprestáveis que juntamos no decurso dos últimos dois mil anos ou mais. Esquecei-vos de tudo o que sabeis a respeito de vós mesmos. Esquecei-vos de tudo o que pensastes a vosso respeito; vamos iniciar a marcha como se nada soubéssemos.
A noite passada choveu torrencialmente e agora o céu está começando a limpar-se; é um dia novo, fresco. Encontremo-nos com este dia (momento) novo como se fosse nosso único dia. Iniciemos juntos a jornada, deixando para trás todas as lembranças de ontem, e comecemos a compreender-nos pela primeira vez.
Segunda Parte
O Aprender a Conhecer-se - A Simplicidade e a Humildade - O Condicionamento
O Aprender a Conhecer-se
Se considerais importante conhecerdes a vós mesmo só porque eu ou outro disse que é importante, receio então que esteja terminada toda comunicação entre nós. Mas, se concordamos ser de vital importância compreendermos a nós mesmos, totalmente, torna-se então diferente a relação entre vós e mim e poderemos explorar juntos, fazer com agrado uma investigação cuidadosa e inteligente.
Eu não vos exijo fé; não me estou arvorando em autoridade. Nada tenho para ensinar-vos - nenhuma filosofia nova, nenhum sistema novo, nenhum caminho novo para a realidade; não há caminho para a realidade, como não o há para a verdade. Toda autoridade, de qualquer espécie que seja, sobretudo no campo do pensamento e da compreensão, é a coisa mais destrutiva e danosa que existe. Os guias destroem os seguidores, e os seguidores destroem os guias. Tendes de ser vosso próprio instrutor e vosso próprio discípulo. Tendes de questionar tudo o que o homem aceitou como valioso e necessário.
Se não seguis alguém, vos sentis muito solitário. Ficai solitário, pois. Porque tendes medo de ficar só? Porque vos defrontais com vós mesmo, tal como sois, e descobris que sois vazio, embotado, estúpido, repulsivo, pecador, ansioso - uma entidade insignificante, sem originalidade. Enfrentai o fato; olhai-o e não fujais dele. Tão logo começais a fugir, começa a existir o medo. Ao investigar-nos não nos estamos isolando do resto do mundo. Não se trata de um processo mórbido. O homem, em todo o mundo, se vê enredado nos mesmos problemas diários, tal como nós, e, assim, investigando a nós mesmos, não estamos de modo nenhum procedendo como neuróticos, porque não há diferença entre o individual e o coletivo. Este é um facto real. Criei o mundo tal como sou. Portanto, não nos desorientemos nesta batalha entre a parte e o todo.
Tenho de estar cônscio de todo o campo de meu próprio ser, que é constituído da consciência individual e social. É só quando a mente transcende a consciência individual e social, que posso tornar-me a luz de mim mesmo, a luz que nunca se apaga.
Pois bem; onde começaremos a compreender a nós mesmos? Aqui estou eu, e como é que vou estudar-me, observar-me, ver o que realmente está sucedendo em meu interior? Só posso observar-me em relação, porque a vida é toda de relação. De nada serve ficar sentado num canto a meditar sobre mim mesmo. Não posso existir sozinho. Só existo em relação com pessoas, coisas e ideias e, estudando minha relação com as pessoas e coisas exteriores, assim como com as interiores, começo a compreender a mim mesmo. Qualquer outra forma de compreensão é mera abstração, e não posso estudar-me abstratamente; não sou uma entidade abstrata; por conseguinte, tenho de estudar-me na realidade concreta - assim como sou, e não como desejo ser.
A compreensão não é um processo intelectual. A aquisição de conhecimentos a vosso próprio respeito e o aprendizado de vós mesmo são duas coisas diferentes, porque o conhecimento que a vosso respeito acumulais é sempre do passado, e a mente que leva a carga do passado é uma mente lamentável. O aprendizado de vós mesmo não é como o aprendizado de uma língua, uma técnica ou uma ciência; neste último caso, naturalmente, tendes de acumular e memorizar, pois seria absurdo voltar sempre de novo ao começo. Mas, no campo psicológico, o aprendizado de vós mesmo está sempre no presente, ao passo que o conhecimento está sempre no passado e, como a maioria de nós vive no passado e está satisfeita com o passado, o conhecimento se torna sumamente importante para nós. É por essa razão que endeusamos o homem erudito, talentoso, sagaz. Mas, se estais aprendendo a todo momento, a cada minuto, aprendendo pelo observar e pelo escutar, aprendendo pelo ver e atuar, vereis então que o aprender é um movimento infinito, sem o passado (nem futuro).
Se dizeis que aprendereis a conhecer-vos gradualmente, acrescentando sempre mais alguma coisa, pouco a pouco, não vos estais estudando agora como sois, porém por meio do conhecimento adquirido. O aprender requer muita sensibilidade. Não há sensibilidade se existe alguma idéia, que é do passado, dominando o presente. A mente já não é então ágil, flexível, alertada. A maioria de nós não é sensível, nem mesmo fisicamente. Comemos em excesso, sem nos importarmos com o regime mais adequado; abusamos do fumo e da bebida, e, dessa maneira, o nosso corpo se torna pesado e insensível; a capacidade de atenção do próprio organismo se embota. Como pode haver uma mente muito alertada, sensível, clara, se o próprio organismo está embotado e pesado? Podemos ser sensíveis a certas coisas que nos atingem particularmente, mas, para sermos completamente sensíveis a tudo o que decorre das exigências da vida, não deve haver separação entre o organismo e a psique. Trata-se de um movimento total.
Para compreendermos qualquer coisa (e ser ou pessoa), temos de viver com ela, observá-la, conhecer-lhe (estudar-lhe)todo o conteúdo, a natureza, a estrutura, o movimento. Já experimentastes viver com vós mesmos? Se o experimentardes, começareis a ver que "vós" não sois uma entidade estática, porém uma coisa vigorosa, viva. E, para poder viver com uma coisa viva, vossa mente também tem de estar viva. Não pode, porém, estar viva, se está enredada em opiniões, juízos e valores.
Para observardes o movimento de vossa mente e de vosso coração, de vosso ser inteiro, necessitais de uma mente livre; e não de uma mente que concorda e discorda, que toma partido numa discussão, disputando por causa de meras palavras, porém que acompanha a discussão com a intenção de compreender. Isso é dificílimo, porque não sabemos olhar nem escutar o nosso próprio ser, assim como não sabemos olhar a beleza de um rio, ou escutar o murmúrio da brisa entre as árvores.
Quando condenamos ou justificamos, não podemos ver com clareza, e também não podemos fazê-lo quando nossa mente está a tagarelar incessantemente; não observamos então o que é; só olhamos nossas próprias "projeções". Temos, cada um de nós, uma imagem do que pensamos ser ou deveríamos ser, e essa imagem, esse retrato, nos impede inteiramente de vermos a nós mesmos como realmente somos.
A Simplicidade e a Humildade
Uma das coisas mais difíceis do mundo é olharmos qualquer coisa com simplicidade. Como nossa mente é muito complexa, perdemos a simplicidade. Não me refiro à simplicidade no vestir ou no comer, no usar apenas uma tanga ou bater um recorde de jejum, ou qualquer outra das absurdas infantilidades que os santos praticam; refiro-me àquela simplicidade que nos torna capazes de olhar as coisas diretamente e sem medo, capazes de olhar a nós mesmos sem nenhuma deformação, de dizer que mentimos quando mentimos e não esconder o fato ou dele fugir.
Outrossim, para compreendermos a nós mesmos, necessitamos de muita humildade. Se começais dizendo: "Eu me conheço" - já travastes o processo do auto-aprendizado; ou, se dizeis "Não há muito que aprender a meu respeito, porque sou apenas um feixe de memórias, idéias, experiências e tradições" - tereis também parado o processo de aprendizado a vosso próprio respeito. No momento em que alcançais qualquer alvo, perdeis o atributo da inocência e da humildade; no momento em que chegais a uma conclusão ou começais a examinar com base no conhecimento, está tudo acabado, porque então estais traduzindo tudo o que é vivo em termos do velho. Mas se, ao contrário, não tendes nenhum ponto de apoio, nenhuma certeza, nenhuma perfeição, estais em liberdade para olhar, e quando olhais uma coisa em liberdade, ela é sempre nova. Um homem seguro de si é um ente morto.
Mas, como ser livre para olhar e aprender, quando nossa mente, da hora do nascimento à hora da morte, é moldada, por uma determinada cultura, no estreito padrão do "eu"? Há séculos vimos sendo condicionados pela nacionalidade, a casta, a classe, a tradição, a religião, a língua, a educação, a literatura, a arte, o costume, a convenção, a propaganda de todo género, a pressão económica, a alimentação que tomamos, o clima em que vivemos, nossa família, nossos amigos, nossas experiências - todas as influências possíveis e imagináveis - e, por conseguinte, nossas reações a cada problema são condicionadas.
Percebeis que estais condicionados? Esta é a primeira coisa que deveis perguntar a vós mesmos, e não como vos libertardes do condicionamento. Pode ser que nunca vos livrareis dele, e se disserdes "Preciso livrar-me dele", podereis cair noutra armadilha, noutra forma de condicionamento. Assim, percebeis que estais condicionado? Sabeis que até mesmo quando olhais uma árvore e dizeis "Aquela árvore é uma figueira" ou "Aquela árvore é um carvalho", o dar nome à árvore, que é conhecimento botânico, de tal maneira vos condiciona a mente que a palavra se interpõe entre vós e o real percebimento da árvore? Para entrardes em contato com a árvore tendes de vê-la, tocá-la, cheirá-la, prová-la…, e a palavra pouco vos ajudará nisso.
Como podeis saber que estais condicionados? Que é que vos diz isso? Que é que vos diz que estais com fome? - não como teoria, porém o fato real da fome? Do mesmo modo, como é que descobris o fato real de que estais condicionado? Pela vossa reação a um problema, a um desafio, não é? Reagis a cada desafio segundo o vosso condicionamento e como vosso condicionamento é inadequado reagirá sempre inadequadamente.
Quando vos tornais cônscios dele, esse condicionamento de raça, de religião e cultura vos faz sentir aprisionados? Considerai uma única modalidade de condicionamento, a nacionalidade, considerai-a seriamente, com pleno percebimento, para verdes se vos agrada ou se vos revolta, e se vos revolta, se sentis vontade de libertar -vos de todo condicionamento. Se vosso condicionamento vos satisfaz, é óbvio que nada fareis a respeito dele; mas, se não vos sentis satisfeito ao vos tornardes cônscio dele, percebereis que nunca fazeis coisa alguma sem ele. Nunca. Por conseguinte, estais sempre vivendo no passado, com os mortos.
Só percebereis por vós mesmo o quanto estais condicionados quando se manifestar um conflito na continuidade do prazer ou na fuga à dor. Se tudo ao redor de vós decorre de maneira perfeitamente feliz, vossa esposa vos ama, vós a amais, tendes uma bonita casa, filhos interessantes e dinheiro à farta, nesse caso não estais cônscio de vosso condicionamento. Mas, quando surge uma perturbação, quando vossa esposa olha para outro homem, ou perdeis vossa fortuna, ou vos vedes ameaçado pela guerra ou qualquer outra coisa que cause dor ou ansiedade - então sabeis que estais condicionados. Quando lutais contra uma perturbação qualquer ou vos defendeis de uma dada ameaça exterior ou interior, sabeis então que estais condicionados. E, como a maioria se vê perturbada na maior parte do tempo, seja superficialmente, seja profundamente, essa nossa própria perturbação indica que estamos condicionados. Enquanto um animal é mimado, reage agradavelmente, mas no momento em que se vê hostilizado, toda a violência de sua natureza se revela.
Vemo-nos perturbados a respeito da vida, da política, da situação económica, do horror, da brutalidade e do sofrimento existentes tanto no mundo como em nós mesmos, e essa perturbação nos revela quão estreitamente condicionados estamos. Que devemos fazer? Aceitar a perturbação e ir vivendo com ela, como o faz a maioria dos homens? Acostumarmo-nos a ela, assim como nos acostumamos a uma dor nas costas? Conformarmo-nos com ela?
É tendência de todos nós conformarma-nos com as coisas, acostumarmo-nos a elas, delas culpando as circunstâncias. "Ah, se as coisas estivessem correndo bem, eu seria diferente", dizemos, ou "Dai-me a oportunidade e eu me preencherei", ou "Esmaga-me a injustiça de tudo isso" - sempre a culparmos das nossas perturbações os outros ou o nosso ambiente ou a situação económica.
Se nos acostumamos à perturbação, isso significa que a nossa mente se embota, assim como uma pessoa pode acostumar-se de tal maneira à beleza que a cerca, que nem a nota mais. Tornamo-nos indiferentes, calejados, insensíveis, e a nossa mente se embota mais e mais. Se não nos podemos acostumar à perturbação, dela tratamos de fugir, recorrendo a uma certa droga, ou ingressando num partido político, bradando, escrevendo, assistindo a uma partida de futebol, indo a uma igreja ou templo, ou procurando outro tipo de divertimento.
Por que razão fugimos dos fatos reais? Temos medo da morte - isso apenas para exemplo - e inventamos teorias, esperanças e crenças de toda espécie, para disfarçarmos o fato da morte, mas esse fato continua existente. Para compreendermos um fato cumpre olhá-lo profundamente e não fugir dele. Em geral, temos tanto medo do viver como do morrer. Temos medo de nossa família, da opinião pública, de perder nosso emprego, nossa segurança, medo de centenas de outras coisas. O facto simples é que temos medo, e não que temos medo disto ou daquilo. Mas, porque é que não podemos enfrentar esse fato?
Só podemos enfrentar um fato no presente; mas, se nunca o deixais estar presente, porque estais sempre a fugir dele, nunca podereis enfrentá-lo, e, tendo criado uma verdadeira rede de fugas, estamos dominados pelo hábito da fuga.
Ora, se sois sensíveis, sérios, por pouco que seja, não só estareis cônscios de vosso condicionamento, mas também dos perigos dele decorrentes, da brutalidade e do ódio a que ele conduz. Por que então, se estais vendo o perigo de vosso condicionamento, não agis? É por que sois indolentes? Indolência é falta de energia; entretanto, não vos faltará energia em presença de um perigo físico imediato - uma serpente no vosso caminho, um precipício, um incêndio. Por que então não agis ao verdes o perigo de vosso condicionamento? Se vísseis o perigo do nacionalismo para vossa própria segurança, não agiríeis?
A resposta é que não vedes. Por um processo intelectual de análise podeis ver que o nacionalismo leva à autodestruição, mas nisso não há nenhum conteúdo emocional. Só quando há esse conteúdo emocional, tendes vitalidade.
Se vedes o perigo de vosso condicionamento como um mero conceito intelectual, jamais fareis coisa alguma em relação a ele. No perceber um perigo como uma mera idéia, há conflito entre a idéia e a ação e esse conflito tira-vos a energia. Só quando vedes o condicionamento e o seu perigo imediatamente, tal como vedes um precipício, só então é que agis; portanto, ver profundamente é agir.
A maioria de nós percorre a vida desatentamente, reagindo sem pensar, de acordo com o ambiente em que fomos criados, e tais reações só acarretam mais servidão, mais condicionamento; mas, no momento em que aplicardes toda a atenção e estudo ao vosso condicionamento, ver-vos-eis inteiramente livres do passado; ele se desprenderá naturalmente de vós.
Sexta Parte
Liberte-se do Passado, A Violência - A Cólera - A Justificação e a Condenação - O Ideal e o Real
A Violência
O medo, o prazer, o sofrimento, o pensamento e a violência estão relacionados entre si. Na maioria dos casos encontramos prazer na luta e na violência, em não gostar de alguém, em odiar uma dada raça ou grupo de pessoas, em nutrir sentimentos hostis para com os outros. Mas, no estado mental em que a violência desapareceu completamente, há uma alegria muito diferente do prazer da violência, com os seus conflitos, rancores e temores.
Podemos penetrar na raiz da violência e dela nos livrarmos? De contrário, viveremos a batalhar perenemente uns com os outros. Se é dessa maneira que desejais viver - e aparentemente a maioria das pessoas o deseja - continuai então assim; se dizeis: "Ora, sinto muito, mas a violência nunca terá fim, jamais acabará" - nesse caso vós e eu não temos possibilidade de comungar, uma vez que vos emparedastes; mas se dizeis que talvez exista uma diferente maneira de viver, teremos então a possibilidade de comunhão.
Consideremos, pois, juntos - aqueles de nós que têm a capacidade de comungar - se existe alguma possibilidade de acabarmos totalmente com qualquer forma de violência em nós mesmos existente, e ao mesmo tempo vivermos neste mundo monstruoso e brutal. Acho que é possível. Não desejo ter em mim a mais leve sombra de ódio, de ciúme, de ansiedade ou medo. Desejo viver completamente em paz. Mas isso não significa que desejo morrer. Desejo viver nesta terra maravilhosa, tão cheia de vida, de riqueza e de beleza! Desejo olhar as árvores, as flores, os rios, os prados, as mulheres, as crianças, e ao mesmo tempo viver completamente em paz comigo mesmo e com o mundo. Que posso fazer?
Se soubermos olhar a violência, não só exteriormente, na sociedade - guerras, rebeliões, antagonismos nacionais e conflitos de classes - mas também em nós mesmos, talvez então tenhamos a possibilidade de transcendê-la.
Este é um problema muito complexo. Há séculos e séculos que o homem é violento; as religiões, em todo o mundo, tentaram amansá-lo, e nenhuma delas foi bem-sucedida. Assim, se vamos examinar esta questão, devemos, acho eu, encará-la com toda a seriedade, porque esse exame nos levará a um domínio completamente diferente. Mas se desejamos meramente entreter-nos intelectualmente com o problema, não iremos muito longe.
Podeis pensar que de vossa parte esse problema vos interessa seriamente, mas, uma vez que há tanta gente no mundo que não o leva a sério e não se mostra disposta a tomar alguma medida em relação a ele, de que serve fazerdes alguma coisa? Não me importa se os outros o levam a sério ou não; eu o levo a sério, e tanto basta. Eu não sou o guarda de meu irmão (1). Eu, de minha parte, como ente humano, sinto-me fortemente interessado nesta questão da violência, e farei o necessário para eu próprio não ser violento; mas não posso dizer a vós nem a ninguém: "Não sejais violentos". (Será que temos mesmo de deixar de ensinar a verdade?...) Isso não tem significação alguma, a não ser que também não desejeis sê-lo. Assim, se pessoalmente desejais compreender o problema da violência, prossigamos juntos a nossa viagem de exploração.
O problema da violência é exterior ou interior? Desejais resolver o problema no mundo exterior, ou estais questionando a violência em si, tal como em vós existe? Se, interiormente, em vós mesmos, estais livre da violência, surge logo a pergunta: "Como posso viver num mundo cheio de violência, ganância, avidez, inveja, brutalidade? Não serei destruído?" - Esta alusão às palavras de Caim, após assassinar Abel, é a pergunta que inevitável e invariavelmente se faz. Fazendo tal pergunta, não me pareceis estar vivendo realmente em paz. Se viveis pacificamente, não tendes problema de espécie alguma. Podeis ir para a prisão se vos recusardes a alistar-vos no exército, ou ser fuzilado se vos recusardes a combater; mas isso não é problema: (isto também já não é paz… e já é violência) sereis fuzilado. É extremamente importante compreender isso.
Estamos tentando compreender a violência como um fato, não como uma idéia; como um fato existente no ente humano, e o ente humano sou eu. E, para examinar o problema, eu tenho de ser completamente vulnerável, aberto a ele. Tenho de desmascarar-me a mim mesmo; não há necessidade de me desmascarar diante de vós, porque isso talvez não vos interesse - mas devo achar-me num estado mental que queira levar o exame completamente a cabo, sem me deter em nenhum ponto, dizendo "não irei mais adiante".
Ora, devo ver bem claramente que sou um ente humano violento. Tenho experimentado a violência na cólera, nos apetites sexuais, no ódio, no criar inimizades, no ciúme etc. Tendo-a experimentado, conhecido, digo de mim para mim: "Desejo compreender este problema integralmente, e não apenas um fragmento seu, conforme se expressa na guerra; quero compreender essa agressividade existente no homem e que também existe nos animais, dos quais faço parte".
Violência não é meramente assassinar. Há violência no uso de uma palavra áspera, num gesto de desprezo, na obediência motivada pelo medo. A violência, portanto, não é apenas a carnificina organizada, em nome de Deus, da sociedade, da pátria. A violência é muito mais subtil e profunda, e nós queremos investigar as suas últimas profundezas.
Quando vos denominais indiano, ou maometano, ou cristão, ou europeu, ou o que quer que seja, estais sendo violento. Sabeis por quê? Porque vos estais separando do resto da humanidade. Quando vos separais, pela crença, pela nacionalidade, pela tradição, gera-se a violência. Assim, o homem que deseja compreender a violência, não deve pertencer a nenhuma nação, nenhuma religião, nenhum partido político ou sistema partidário; o que deve interessá-lo é a compreensão total da humanidade.
Pois bem; há duas escolas principais de pensamento que se interessam pela violência. Uma delas diz: "A violência é inata no homem"; a outra diz: "A violência é o resultado da herança social e cultural do homem". Não nos interessa a escola a que pertenceis, pois isso não tem importância nenhuma. O importante é o fato de que somos violentos e não a razão desse fato.
Uma das expressões da violência mais comuns é a cólera. Quando atacam minha esposa ou minha irmã, sinto-me justamente encolerizado; quando são atacados a minha pátria, as minhas idéias, os meus princípios, a minha maneira de vida, fico também justamente encolerizado. Sinto também cólera, quando são atacados os meus hábitos, as minhas insignificantes opiniões. Se me pisais no pé ou me insultais, enraiveço-me, ou se fugis com minha mulher sinto ciúme, um ciúme também justo, porque ela é minha propriedade. Todas essas manifestações de cólera são moralmente justificadas. Também se justifica o matar pela pátria. Assim, falando a respeito da cólera, que faz parte da violência, consideramo-la em termos de cólera justa e cólera injusta, conforme nossas próprias inclinações ou as pressões do ambiente ou a consideramos como cólera simplesmente? Existe cólera justa? Ou só existe a cólera? Não há influência boa ou influência má - só há influência; mas quando sou influenciado por uma coisa que não me convém, chamo-lhe má influência.
Se protegeis vossa família, vossa pátria, um trapo colorido chamado bandeira, uma crença, uma idéia, um dogma, aquilo que quereis possuir ou que já tendes nas mãos, essa própria proteção denota cólera. Assim, podeis olhar a cólera sem nenhuma explicação ou justificação, sem dizerdes: "Tenho de proteger o que é meu" ou "Tive razão para me encolerizar" ou "Que estupidez minha, ter-me encolerizado"? Podeis olhar a cólera como uma coisa em si? Podeis olhá-la de maneira completamente nova, quer dizer, sem defendê-la, nem condenada? Podeis?
Posso olhar-vos se vos sou hostil ou se vos considero uma pessoa excelente? Só posso ver-vos, quando vos olho com certo cuidado em que não esteja contida nenhuma dessas coisas.
Ora, posso eu olhar a cólera da mesma maneira, o que significa que sou vulnerável ao problema, que não resisto a ele, que estou observando, que estou observando esse extraordinário fenómeno sem nenhuma reação a ele?
É muito difícil considerar a cólera desapaixonadamente, porquanto ela faz parte de mim, mas é isso o que estou tentando fazer. Aqui estou eu, um ente humano violento, não importando se sou preto, se sou moreno, branco ou vermelho. Não importa se herdei essa violência ou se a sociedade a produziu. Só isto me importa: "Se é possível libertar-me dela". Livrar-me da violência significa tudo para mim. É-me mais importante do que o sexo, o alimento, a posição, porque essa coisa me está corrompendo. Estou a destruir-me e a destruir o mundo, e preciso compreender a violência, transcendê-la. Sinto-me responsável por toda a cólera e toda a violência existentes no mundo. Sinto-me responsável, e isso não são meras palavras. Digo de mim para comigo: "Só posso fazer alguma coisa se eu próprio transcender a cólera, a violência, a nacionalidade". E esse meu sentimento de que devo compreender a violência em mim existente me confere uma estupenda vitalidade e paixão para compreendê-la.
Mas, para transcender a violência, não posso reprimi-la, negá-la, não posso dizer: "Ora, ela faz parte de mim, e está acabado" ou "Eu não a quero". Tenho de enfrentá-la, de estudá-la, de entrar em intimidade com ela, e essa intimidade não é possível se a condeno ou justifico. Entretanto, na verdade, nós a condenamos e justificamos. Por conseguinte, digo "Deixemos, por ora, de condená-la ou de justificá-la".
Ora bem, se desejais acabar com a violência, acabar com as guerras, quanta vitalidade, quanto de vós mesmo aplicais a isso? Não vos importa que vossos filhos pequenos sejam mortos, que vossos filhos mais velhos se alistem no exército para serem maltratados e abatidos como reses? Não vos importa isso? Deus meu! Se isso não vos importa, o que mais vos importa? Conservar vosso dinheiro? Gozar a vida? Tomar drogas? Não percebeis que a violência em vós existente está destruindo os vossos filhos? Ou a vedes apenas como uma espécie de abstração?
Bem; se tendes interesse nisso, aplicai-vos de corpo e alma a compreendê-lo. Não vos recosteis na cadeira, dizendo: "Está bem; conta-nos toda a história". Preciso fazer-vos ver que não se pode olhar a cólera nem a violência com olhos que condenam ou justificam, e que, se a violência não representa para vós um urgente problema, não podeis afastar aquelas duas coisas. Assim, em primeiro lugar, tendes de aprender; tendes de aprender a olhar a cólera, a olhar vosso marido, vossa esposa, vossos filhos: tendes de escutar o político, aprender porque não sois objetivo, porque condenais ou justificais. Tendes de aprender que condenais e justificais porque isso faz parte da estrutura social em que viveis,- faz parte de vosso condicionamento como alemão, indiano, negro, americano - ou o que acaso sois por nascimento - com todo o embota-mento mental resultante desse condicionamento. Para aprender, para descobrir uma coisa fundamental, precisais de penetração. Se tendes um instrumento obtuso, um instrumento
embotado, não podeis penetrar
profundamente.
Assim, o que agora estamos fazendo é aguçando o instrumento, que é a mente - essa mente que se embotou por causa do justificar e do condenar. Só sereis capaz de penetrar fundo se vossa mente for penetrante como uma agulha e forte como o aço.
De nada serve ficardes recostado e perguntar: "Como chegarei a ter essa mente?". Vós tendes de desejá-la assim como desejais a vossa próxima refeição, e para a terdes deveis ver que o que está tornando vossa mente embotada e estúpida é esse estado de invulnerabilidade que ergueu muralhas ao redor dela e que faz parte da condenação e da justificação. Se a mente puder libertar-se desse estado, sereis então capaz de olhar, de estudar, de penetrar e, assim, talvez, alcançar um estado totalmente consciente do problema em seu todo.
Voltemos, pois, ao problema central: É possível erradicarmos a violência em nós existente? É uma forma de violência dizer: "Não mudaste! Por que não mudaste?" -- Não é isso que estou fazendo. Para mim, nada significa convencer-vos de uma coisa. (por que não?)Trata-se de vossa vida, e não da minha vida. Vossa maneira de viver é da vossa própria conta. O que pergunto é se é possível a um ente humano que psicologicamente vive em não importa que sociedade, se é possível a esse ente humano libertar-se interiormente da violência. Se é possível, esse mesmo processo criará uma nova maneira de viver neste mundo.
A maioria aceita a violência como maneira de vida. Duas guerras medonhas nada nos ensinaram a não ser a levantar mais e mais barreiras entre os seres humanos - entre vós e mim. Mas, quanto àqueles que desejam libertar-se da violência, que se deve fazer? Penso que nada se conseguirá por meio da análise, feita por vós mesmo ou por um profissional. Poderíamos, talvez, modificar-nos ligeiramente, viver um pouco mais sossegadamente, com um pouco mais de afeição, mas isso, por si só, não nos dará a percepção total. Mas eu preciso saber analisar (é o caso das fezes sociais, as quais como as físicas, deitamos fora, sem as odiar, e que serão tanto menos mal cheirosas quando menos carne comermos, e que se transformam em nós…), pois, no processo da análise a mente se torna sobremodo penetrante e é essa capacidade de penetração, de atenção, de seriedade, que dará a percepção total. Ninguém tem olhos capazes de ver o todo num relance; essa clarividência só é possível se podemos ver os detalhes e, depois, saltar.
Alguns dentre nós, a fim de se libertarem da violência, têm-se servido de um conceito, de um ideal chamado "não violência", e pensamos que, tendo um ideal que seja o oposto da violência - a não violência - podemos libertar-nos do fato, da coisa real; mas não podemos. Temos tido inumeráveis ideais, todos os livros sagrados estão cheios deles e, contudo, continuamos violentos; portanto, por que não enfrentar a própria violência e esquecer de todo a palavra?
Se desejais compreender a realidade, a isso deveis aplicar toda a vossa energia. Essa atenção e energia são desviadas quando se cria um mundo fictício, ideal. Assim, podeis banir completamente o ideal? O homem que é realmente sério, que sente a ânsia de descobrir o que é a verdade, o que é o amor, não tem conceito de espécie alguma. Só vive dentro do que é.
Para investigar o fato de vossa própria cólera, não deveis pronunciar julgamento sobre ela, porque no mesmo instante em que concebeis o seu oposto, a estais condenando e, por conseguinte, não podeis vê-la tal como é. Quando dizeis que não gostais ou que tendes ódio a alguém, isso é um fato, embora pareça terrível. Se o olhais, se o examinais cabalmente, ele deixa de existir; mas se disserdes "Eu não devo odiar; devo ter amor no coração", ficais então vivendo num mundo hipócrita, de duplos padrões. Viver com plenitude no momento presente é viver com o que é, o real, sem idéia de condenação ou justificação; então o compreendeis tão completamente que ficais livre dele. Quando se vê claramente, o problema está resolvido.
Mas, podeis ver claramente a face da violência, não só fora mas também dentro de vós, o que significa que estais totalmente livre da violência, uma vez que não aceitastes nenhuma ideologia para, por meio dela, vos libertardes da violência? Isso exige meditação muito profunda, e não uma simples concordância ou discordância verbal.
Acabastes de ler uma série de asserções, mas tereis compreendido tudo? Vossa mente condicionada, vossa maneira de vida, a inteira estrutura da sociedade em que viveis, vos impedem de olhar um fato e dele vos livrardes imediatamente. Dizeis: "Vou pensar a respeito disso; vou considerar se é ou não possível libertar-me da violência. Vou tentar ser livre". Esta é uma das coisas mais terríveis que se podem dizer: Vou tentar. Não há tentar, não há esforçar-se. Ou a gente age ou não age. Estais admitindo o tempo, com a casa em chamas. A casa está a arder, como resultado da violência existente no mundo inteiro e em vós mesmos, e dizeis "Vou pensar nisso. Qual é a melhor ideologia para extinguir o fogo?" Quando a casa está em chamas, discutis sobre a cor dos cabelos do homem que traz a água?
Sétima Parte
As Relações - O Conflito - A Sociedade - A Pobreza - As Drogas - A Dependência - A Comparação - O Desejo - Os Ideais - A Hipocrisia
A cessação da violência, que acabamos de considerar, não implica necessariamente um estado em que a mente fica em paz consigo mesma e, por conseguinte, em todas as suas relações.
As relações entre os seres humanos se baseiam no mecanismo defensivo, formador de imagens. Em todas as relações (muitas vezes) cada um de nós forma uma imagem a respeito de outrem e as duas imagens ficam em relação e não os próprios entes humanos. A esposa tem uma imagem do marido - talvez inconsciente, contudo existente - e o marido tem uma imagem da esposa. Temos uma imagem a respeito de nosso país e a respeito de nós mesmos e estamos constantemente a fortalecer essas imagens, acrescentando-lhes sempre alguma coisa. A relação existente é entre essas imagens. A verdadeira relação entre dois ou vários seres humanos cessa completamente, quando há a formação de imagens.
A relação baseada em tais imagens jamais produzirá a paz, porquanto as imagens são fictícias, e não se pode viver abstratamente. Entretanto, é isto o que todos fazemos: vivemos entre idéias, teorias, símbolos, imagens que criamos a respeito de nós mesmos e de outros e que, em absoluto, não são realidades. Todas as nossas relações, sejam com a propriedade, sejam com idéias ou pessoas, se baseiam essencialmente nessa formação de imagens e, por essa razão, existe sempre conflito.
Como é então possível estarmos completamente em paz em nosso interior e em todas as nossas relações com outros? A vida é um movimento de relações, pois de outro modo não há vida; e se essa vida está baseada numa abstração, numa idéia, numa suposição especulativa, então esse viver abstrato produzirá inevitavelmente relações que se tornam um campo de batalha. Ora, será possível ao homem viver uma vida interior de perfeita ordem, sem compulsão, imitação, repressão ou sublimação, em nenhuma forma? Pode o homem estabelecer, em si mesmo, uma ordem que seja uma qualidade viva, não aprisionada na estrutura das idéias - uma tranqüilidade interior que não conheça perturbação em momento algum - não num mundo abstrato, fantástico, mítico, porém na vida de cada dia, no lar e no emprego?
Devemos examinar esta questão muito cuidadosamente, porquanto não há um só ponto em nossa consciência não contaminado pelo conflito. Em todas as nossas relações, sejam com a pessoa mais íntima, sejam com nosso vizinho ou a sociedade, esse conflito existe - o conflito é uma contradição, um estado de divisão, de separação, de dualidade. Observando-nos e observando nossas relações com a sociedade, notamos que em todos os níveis de nossa existência há conflito, de menor ou maior importância, o qual provoca ou reações muito superficiais ou conseqüências devastadoras.
O homem aceitou o conflito como parte da existência diária, porque aceitou a competição, o ciúme, a avidez, a ganância e a agressão como norma natural da vida. Quando aceitamos tal norma de vida, estamos aceitando a estrutura social tal qual é e vivendo segundo o padrão da respeitabilidade. E é nessa rede que está aprisionada a maioria, visto que quase todos aspiram a ser respeitáveis. Examinando nossa mente e coração, nossa maneira de pensar, nossa maneira de sentir e de agir na vida diária, observamos que, enquanto estamos a ajustar-nos ao padrão da sociedade, a vida tem de ser um campo de batalha. Se não a aceitamos - pois uma pessoa religiosa não pode de modo nenhum aceitar uma tal sociedade - estaremos então completamente livres da estrutura psicológica da sociedade.
A maioria de nós é rica das coisas da sociedade. O que a sociedade criou em nós e, também, o que criamos em nós mesmos, é avidez, inveja, cólera, ódio, ciúme, ansiedade - de tudo isso somos muito ricos. As religiões, em todo o mundo, sempre pregaram a pobreza. O monge toma um hábito, muda de nome, rapa a cabeça, entra numa cela e faz voto de pobreza e de castidade; no Oriente eles trajam uma tanga, um manto e só tomam uma refeição por dia. Todos nós respeitamos essa espécie de pobreza. Mas, os homens que vestiram o manto da pobreza continuam, interiormente, psicologicamente, ricos das coisas da sociedade, porquanto estão ainda em busca de posição e de prestígio; pertencem a esta ou àquela ordem, a esta ou àquela religião; continuam a viver nas divisões próprias de uma dada cultura ou tradição. Isso não é pobreza. Pobreza é estar completamente livre da sociedade, mesmo possuindo algumas roupas e tomando mais refeições - meu Deus! Que importa isso? Mas, infelizmente, na maioria das pessoas existe esse impulso para o exibicionismo.
A pobreza se torna uma coisa maravilhosa e bela, quando a mente está livre da sociedade. Temos de ser pobres interiormente, porque então não há mais buscar, nem indagar, nem desejar, nem - nada! Só essa pobreza interior pode ver a verdade existente numa vida completamente sem conflito. Tal vida é uma bênção não encontrável em nenhuma igreja ou templo.
Mas, como será possível nos libertarmos da estrutura psicológica da sociedade, o que equivale a libertar-nos da essência do conflito? Não é difícil aparar ou podar certos ramos do conflito; mas estamos perguntando a nós mesmos se é possível vivermos em completa tranqüilidade interior e, por conseguinte, exterior. Isso não significará vegetar ou estagnar. Ao contrário, tornar-nos-emos dinâmicos, cheios de vitalidade e de energia.
Para compreendermos e nos libertarmos de um problema, necessitamos de abundante energia, apaixonada, persistente, não só energia física e intelectual, mas também uma energia independente de qualquer motivo, de qualquer estímulo psicológico ou droga. Se dependemos de algum estímulo, esse próprio estímulo tornará a mente embotada e insensível. Tomando uma certa droga, podemos encontrar, temporariamente, energia suficiente para vermos as coisas muito mais claramente, mas temos de voltar ao estado anterior e, por conseguinte, nos tornarmos cada vez mais dependentes dessa droga. Assim, todo estímulo (exagerado), seja da igreja, seja do álcool ou das drogas, da palavra escrita ou falada, acarretará inevitavelmente a dependência - e essa dependência nos impede de ver claramente, por nós mesmos, e, por conseguinte, de ter a energia vital.
Infelizmente, todos nós dependemos de alguma coisa. Por que dependemos? Por que existe esse impulso a depender? Estamos viajando juntos; não estais à espera de que eu vos mostre as causas de vossa dependência. Se investigarmos juntos, nós as descobriremos, e tal descobrimento será então vosso e, por conseguinte, sendo vosso, vos dará vitalidade.
Descubro por mim mesmo que dependo de uma certa coisa, de um auditório, por exemplo, para ser estimulado. Desse auditório, do falar a uma grande reunião de pessoas, me vem uma certa espécie de energia. Consequentemente, dependo desses ouvintes, dessas pessoas, quer concordem, quer não concordem comigo. Quanto mais discordarem de mim, tanto mais vitalidade me darão. Se concordam, o que lhes digo se torna uma coisa muito superficial, vazia. Assim, descubro que necessito de ouvintes, porque é uma coisa muito estimulante dirigir a palavra a muitas pessoas. Ora, por quê? Por que tenho essa dependência? Porque interiormente nada tenho, interiormente não existe em mim uma fonte sempre cheia, abundante de vida e de movimento. Por isso, eu dependo. Descobri a causa.
Mas o descobrimento da causa me livrará de ser dependente? O descobrimento da causa é puramente intelectual e, portanto, evidentemente, não pode libertar a mente de sua dependência. A mera aceitação intelectual de uma idéia ou a aquiescência emocional a uma ideologia, não pode libertar a mente da dependência daquilo que lhe dá estímulo. O que liberta a mente da dependência é o percebimento da inteira estrutura e natureza do estímulo e da dependência e de como essa dependência torna a mente estúpida, embotada e inerte. Só o percebimento dessa totalidade liberta a mente.
Cumpre, pois, investigar o que significa ver totalmente. Enquanto eu estiver vendo a vida de um certo ponto de vista, de uma dada experiência ou conhecimento que acumulei e que constitui o meu fundo, meu "eu", não posso ver totalmente.
Descobri intelectualmente, verbalmente, pela análise, a causa de minha dependência, mas tudo o que o pensamento investiga só pode ser fragmentário e, portanto, só posso ver a totalidade de uma coisa quando o pensamento não interfere (isto é, para ver/cheirar/provar/tocar sentir, compreender, VIVER… totalmente, primeiro pensar e depois cessar de o fazer) .
Percebo então o fato - minha dependência. Percebo realmente o que é. Vejo-o sem agrado nem desagrado, e não desejo libertar-me dessa dependência ou de sua causa. Observo-a e com essa qualidade de observação percebo o quadro inteiro; e quando a mente percebe o quadro inteiro, dá-se a libertação. Ora, descobri que há uma dissipação de energia quando há fragmentação. Descobri a própria fonte da dissipação da energia.
Podeis pensar que não há desperdício de energia se imitais, se aceitais a autoridade, se dependeis do sacerdote, do ritual, do dogma, do partido, ou de uma certa ideologia, mas o aceitar e seguir uma ideologia, boa ou má, sagrada ou profana, é uma atividade fragmentária e, portanto, uma causa de conflito; e o conflito surge inevitavelmente quando há separação entre o que "deveria ser" e "o que é", e todo conflito é dissipação de energia.
Se fazeis a vós mesmo a pergunta: "Como posso libertar--me do conflito?" - estais criando outro problema e, por conseguinte, aumentando o conflito, ao passo que, se o perceberdes simplesmente como um fato - o virdes como veríeis um objeto concreto - clara e diretamente - compreendereis então a essência, a verdade de uma vida inteira isenta de conflito.
Em outras palavras: Estamos sempre a comparar o que somos com o que deveríamos ser. O "deveria ser" é uma projeção do que pensamos que deveríamos ser. A contradição existe quando há comparação, não só com alguma coisa ou pessoa, mas também com o que ontem éramos, e, por conseguinte, há conflito entre o que foi e o que é. Só existe O que é, quando não há comparação de espécie alguma, e viver com o que é, é viver em paz. Podeis aplicar então toda a vossa atenção, sem distinção alguma, ao que existe dentro de vós mesmos (ou redor) - desespero, malevolência, (feiura), brutalidade, medo, ansiedade, (pouco bem estar), solidão - e viver com isso, completamente; não há então contradição e, por conseguinte, não há conflito.
Mas, estamos continuamente a comparar-nos - com os que são mais inteligentes ou mais ricos, mais intelectuais, mais afectuosos, mais famosos, mais isto e mais aquilo. O "mais" tem um importantíssimo papel em nossas vidas; essa medição de nós mesmos (e de outrem ou outras coisas) com alguma coisa ou pessoa é uma das principais causas do conflito.
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