Wednesday, April 15, 2009

O Valor da Vida - uma entrevista rara de Freud
19 Março, 2008 por Profª Cristiana de B. Passinato

S. Freud: Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serenahumildade.
(Quem fala é o professor Sigmund Freud, o grande explorador da alma. Ocenário da nossa conversa foi uma casa de verão no Semmering, umamontanha nos Alpes austríacos. Eu havia visto o pai da psicanálisepela última vez em sua casa modesta na capital austríaca. Os poucosanos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na suafronte. Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa,como se sentisse dor. Sua mente estava alerta, seu espírito firme, suacortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala meperturbou. Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitouser operado. Desde então Freud usa uma prótese, para ele uma causa deconstante irritação).
S. Freud: Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelhome consome tanta energia preciosa. Mas prefiro-o a maxilar nenhum.Ainda prefiro a existência à extinção. Talvez os deuses sejam gentisconosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos.Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos quecarregamos.
(Freud se recusa a admitir que o destino lhe reserva algo especial.)
Por que ( disse calmamente) deveria eu esperar um tratamento especial?A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contraa ordem universal. Afinal, mais de setenta anos. Tive o bastante paracomer. Apreciei muitas coisas - a companhia de minha mulher, meusfilhos, o pôr-do-sol. Observei as plantas crescerem na primavera. Devez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontreium ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?
George Sylvester Viereck: O senhor teve a fama. Sua obra influi naliteratura de cada país. O homem olha a vida e a si mesmo com outrosolhos, por causa do senhor. E recentemente, no seu septuagésimoaniversário, o mundo se uniu para homenageá-lo - com exceção da suaprópria Universidade.
S. Freud: Se a Universidade de Viena me demonstrasse reconhecimento,eu ficaria embaraçado. Não há razão em aceitar a mim e a minha obraporque tenho setenta anos. Eu não atribuo importância insensata aosdecimais. A fama chega apenas quando morremos e, francamente, o quevem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. Minhamodéstia não é virtude.
George Sylvester Viereck: Não significa nada o fato de que o seu nomevai viver?
S. Freud: Absolutamente nada, mesmo que ele viva, o que não é certo.Estou bem mais preocupado com o destino de meus filhos. Espero quesuas vidas não venham a ser difíceis. Não posso ajudá-los muito. Aguerra praticamente liqüidou com minhas posses, o que havia poupadodurante a vida. Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minhafortuna.
(Estávamos subindo e descendo uma pequena trilha no jardim da casa.Freud acariciou ternamente um arbusto que florescia.)
S. Freud: Estou muito mais interessado neste botão do que no que possame acontecer depois que estiver morto.
George Sylvester Viereck: Então o senhor é, afinal, um profundopessimista?
S. Freud: Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosóficaestrague a minha fruição das coisas simples da vida.
George Sylvester Viereck: O senhor acredita na persistência dapersonalidade após a morte, de alguma forma que seja?
S. Freud: Não penso nisso. Tudo o que vive perece. Por que deveria ohomem constituir uma exceção?
George Sylvester Viereck: Gostaria de retornar em alguma forma, de serresgatado do pó? O senhor não tem, em outras palavras, desejo deimortalidade?
S. Freud: Sinceramente não. Se a gente reconhece os motivos egoístaspor trás da conduta humana, não tem o mínimo desejo de voltar à vida;movendo-se num círculo, seria ainda a mesma. Além disso, mesmo se oeterno retorno das coisas, para usar a expressão de Nietzsche, nosdotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria, semmemória? Não haveria elo entre passado e futuro. Pelo que me toca,estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento deviver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série decompromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. Odesejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.
George Sylvester Viereck: Bernard Shaw sustenta que vivemos muitopouco. Ele acha que o homem pode prolongar a vida se assim desejar,levando sua vontade a atuar sobre as forças da evolução. Ele crê que ahumanidade pode reaver a longevidade dos patriarcas.
S. Freud: É possível que a morte em si não seja uma necessidadebiológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Assim como amor eódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo tempo, assimtambém toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própriadestruição. Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende aassumir a forma original, assim também toda a matéria viva, conscienteou inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inérciada existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de mortehabitam lado a lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor.Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro: Além doPrincípio do Prazer. No começo, a psicanálise supôs que o Amor tinhatoda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante.Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vidaqueime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da "febrechamada viver", anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode serencoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vidaé a sua própria extinção.
George Sylvester Vierneck: Isto é a filosofia da auto-destruição. Elajustifica o auto-extermínio. Levaria logicamente ao suicídio universalimaginado por Eduard von Hartamann.
S. Freud: A humanidade não escolhe o suicídio porque a lei do seu serdesaprova a via direta para o seu fim. A vida tem que completar o seuciclo de existência. Em todo ser normal, a pulsão de vida é forte obastante para contrabalançar a pulsão de morte, embora no finalresulte mais forte. Podemos entreter a fantasia de que a Morte nos vempor nossa própria vontade. Seria mais possível que pudéssemos vencer aMorte, não fosse por seu aliado dentro de nós. Neste sentido(acrescentou Freud com um sorriso) pode ser justificado dizer que todaa morte é suicídio disfarçado.
(Estava ficando frio no jardim. Prosseguimos a conversa no gabinete.Vi uma pilha de manuscritos sobre a mesa, com a caligrafia clara deFreud).
George Sylvester Viereck: Em que o senhor está trabalhando?
S. Freud: Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, da psicanálisepraticada por leigos. Os doutores querem tornar a análise ilegal paraos não médicos. A História, essa velha plagiadora, repete-se após cadadescoberta. Os doutores combatem cada nova verdade no começo. Depoisprocuram monopolizá-la.
George Sylvester Viereck: O senhor teve muito apoio dos leigos?
S. Freud: Alguns dos meus melhores discípulos são leigos.
George Sylvester Viereck: O senhor está praticando muito psicanálise?
S. Freud: Certamente. Neste momento estou trabalhando num caso muitodifícil, tentando desatar os conflitos psíquicos de um interessantenovo paciente. Minha filha também é psicanalista, como você vê…
(Nesse ponto apareceu Miss Anna Freud, acompanhada por seu paciente,um garoto de onze anos, de feições inconfundivelmente anglo-saxônicas).
George Sylvester Viereck: O senhor já se analisou a si mesmo?
S. Freud: Certamente. O psicanalista deve constantemente analisar a simesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar osoutros. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os outrosdescarregam seus pecados sobre ele. Ele deve praticar sua arte àperfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.
George Sylvester Viereck: Minha impressão é de que a psicanálisedesperta em todos que a praticam o espírito da caridade cristã. Nadaexiste na vida humana que a psicanálise não possa nos fazercompreender. "Tout comprendre c’est tout pardonner"(compreender é perdoar tudo).
S. Freud: Pelo contrário (bravejou Freud - suas feições assumindo aseveridade de um profeta hebreu), compreender tudo não é perdoar tudo.A análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também oque podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerânciacom o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento.
(Compreendi subitamente porque Freud havia litigado com os seguidoresque o haviam abandonado, porque ele não perdoa a sua dissensão docaminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é direito éherança dos seus ancestrais. Uma herança de que ele se orgulha como seorgulha de sua raça).
Minha língua é o alemão. Minha cultura, minha realização é alemã. Eume considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento dopreconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desde então prefirome considerar judeu.
(Fiquei algo desapontado com esta observação. Parecia-me que oespírito de Freud deveria habitar nas alturas, além de qualquerpreconceito de raças, que ele deveria ser imune a qualquer rancorpessoal. No entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira,tornava-o mais atraente como ser humano. Aquiles seria intolerável,não fosse por seu calcanhar!)
George Sylvester Viereck: Fico contente, Herr Professor, de que tambémo senhor tenha seus complexos, de que também o senhor demonstre que éum mortal!
S. Freud: Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza; mas, comfreqüência, são também a fonte de nossa força.
George Sylvester Viereck: Imagino, observei, quais seriam os meuscomplexos!
S. Freud: Uma análise séria dura ao menos um ano. Pode durar mesmodois ou três anos. Você está dedicando muitos anos de sua vida à "caçaaos leões". Você procurou sempre as pessoas de destaque para a suageração: Roosevelt, o Imperador, Hindenburg, Briand, Foch, Joffre,Georg Bernard Shaw…
George Sylvester Viereck: É parte do meu trabalho.
S. Freud: Mas é também sua preferência. O grande homem é um símbolo. Asua busca é a busca do seu coração. Você está procurando o grandehomem para tomar o lugar do seu pai. É parte do seu "complexo do pai".
(Neguei veementemente a afirmação de Freud. No entanto, refletindosobre isso, parece-me que pode haver uma verdade, ainda não suspeitadapor mim, em sua sugestão casual. Pode ser o mesmo impulso que me levoua ele). Gostaria, observei após um momento, de poder ficar aqui obastante para vislumbrar o meu coração através do seus olhos. Talvez,como a Medusa, eu morresse de pavor ao ver minha própria imagem!Entretanto, receio ser muito informado sobre a psicanálise. Eufreqüentemente anteciparia, ou tentaria antecipar suas intenções.
S. Freud: A inteligência num paciente não é um empecilho. Pelocontrário, às vezes facilita o trabalho.
(Neste ponto o mestre da psicanálise diverge de muitos dos seusseguidores, que não gostam de excessiva segurança do paciente sob oseu escrutínio).
George Sylvester Viereck: Às vezes imagino se não seríamos maisfelizes se soubéssemos menos dos processos que dão forma a nossospensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu últimoencanto, ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo decomplexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todosabrigamos o criminoso e o animal.
S. Freud: Que objeção pode haver contra os animais? Eu prefiro acompanhia dos animais à companhia humana.
George Sylvester Viereck: Por quê?
S. Freud: Porque são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidadedividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homemde adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seumecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel,mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança dohomem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As maisdesagradáveis características do homem são geradas por esseajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado doconflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais agradáveissão as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou aolatir expressando seu desprazer. As emoções do cão (acrescentou Freudpensativamente) lembram-nos os heróis da Antigüidade. Talvez seja essaa razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes deheróis antigos como Aquiles e Heitor.
George Sylvester Viereck: Meu cachorro é um doberman Pinscher chamadoAjax.
S. Freud: (sorrindo) Fico contente de que não possa ler. Elecertamente seria um membro menos querido da casa, se pudesse latir suaopinião sobre os traumas psíquicos e o complexo de Édipo!
George Sylvester Viereck: Mesmo o senhor, Professor, sonha aexistência complexa demais. No entanto, parece-me que o senhor seja emparte responsável pelas complexidades da civilização moderna. Antesque o senhor inventasse a psicanálise, não sabíamos que nossapersonalidade é dominada por uma hoste beligerante de complexos muitoquestionáveis. A psicanálise torna a vida um quebra-cabeçascomplicado.
S. Freud: De maneira alguma. A psicanálise torna a vida mais simples.Adquirimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise reordenaum emaranhado de impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno doseu carretel. Ou, modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduza pessoa fora do labirinto do seu inconsciente.
George Sylvester Viereck: Ao menos na superfície, porém, a vida humananunca foi mais complexa. E a cada dia alguma nova idéia proposta pelosenhor ou por seus discípulos torna o problema da condução humana maisintrigante e mais contraditório.
S. Freud: A psicanálise, pelo menos, jamais fecha a porta a uma novaverdade.
George Sylvester Viereck: Alguns dos seus discípulos, mais ortodoxosdo que o senhor, apegam-se a cada pronunciamento que sai da sua boca.
S. Freud: A vida muda. A psicanálise também muda. Estamos apenas nocomeço de uma nova ciência.
George Sylvester Viereck: A estrutura científica que o senhor ergueume parece ser muito elaborada. Seus fundamentos - a teoria do"deslocamento", da "sexualidade infantil", do "simbolismo dos sonhos",etc. - parecem permanentes.
S. Freud: Eu repito, porém, que nós estamos apenas no início. Eu souapenas um iniciador. Consegui desencavar monumentos soterrados nossubstratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outrospoderão descobrir continentes.
George Sylvester Viereck: O senhor ainda coloca a ênfase sobretudo nosexo?
S. Freud: Respondo com as palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman:"Mas tudo faltaria, se faltasse o sexo" ("Yet all were lacking, if sexwere lacking"). Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfasequase igual naquilo que está "além" do prazer - a morte, a negociaçãoda vida. Este desejo explica por que alguns homens amam a dor - comoum passo para o aniquilamento! Explica por que os poetas agradecem a
Whatever gods there be,That no life lives foreverAnd even the weariest riverWinds somewhere safe to sea.
("Quaisquer deuses que existam/ Que vida nenhuma viva para sempre/ Queos mortos jamais se levantem / E também o rio mais cansado/ Desaguetranqüilo no mar".)
George Sylvester Viereck: Shaw, como o senhor, não deseja viver parasempre, mas à diferença do senhor, ele considera o sexodesinteressante.
S. Freud: (sorrindo) Shaw não compreende o sexo. Ele não tem a maisremota concepção do amor. Não há um verdadeiro caso amoroso em nenhumade suas peças. Ele faz brincadeira do amor de Júlio César - talvez amaior paixão da História. Deliberadamente, talvez maliciosamente, eledespe Cleópatra de toda grandeza, reduzindo-a uma insignificantegarota. A razão para a estranha atitude de Shaw diante do amor, para asua negação do móvel de todas as coisas humanas, que tira de suaspeças o apelo universal, apesar do seu enorme alcance intelectual, éinerente à sua psicologia. Em um de seus prefácios, ele mesmo enfatizao traço ascético do seu temperamento. Eu posso ter errado em muitascoisas, mas estou certo de que não errei ao enfatizar a importância doinstinto sexual. Por ser tão forte, ele se choca sempre com asconvenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em uma espéciede auto-defesa, procura negar sua importância. Se você arranhar umrusso, diz o provérbio, aparece o tártaro sob a pele. Analise qualqueremoção humana, não importa quão distante esteja da esfera dasexualidade, e você certamente encontrará esse impulso primordial, aoqual a própria vida deve a perpetuação.
George Sylvester Viereck: O senhor, sem dúvida, foi bem sucedido emtransmitir esse ponto de vista aos escritores modernos. A psicanálisedeu novas intensidades à literatura.
S. Freud: Também recebeu muito da literatura e da filosofia. Nietzschefoi um dos primeiros psicanalistas. É surpreendente até que ponto asua intuição prenuncia as novas descobertas. Ninguém se apercebeu maisprofundamente dos motivos duais da conduta humana, e da insistência doprincípio do prazer em predominar indefinidamente. O Zaratustra diz:"A dor grita: Vai! Mas o prazer quer eternidade Pura, profundamenteeternidade". A psicanálise pode ser menos amplamente discutida naÁustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, a sua influência naliteratura é imensa, porém. Thomas Mann e Hugo von Hofmannsthak muitodevem a nós. Schnitzler percorre uma via que é, em larga medida,paralela ao meu próprio desenvolvimento. Ele expressa poeticamente oque eu tento comunicar cientificamente. Mas o Dr. Schnitzler não éapenas um poeta, é também um cientista.
George Sylvester Viereck: O senhor não é apenas um cientista, mastambém um poeta. A literatura americana está impregnada dapsicanálise. Hupert Hughes Harvrey O’Higgins e outros fazem-se de seusintérpretes. É quase impossível abrir um novo romance sem encontrarreferência à psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O’Neill eSydney Howard têm profunda dívida para com o senhor. A "The SilverCord", por exemplo, é simplesmente uma dramatização do complexo deÉdipo.
S. Freud: Eu sei e aprecio o cumprimento que há nessa constatação. Mastenho receio da minha popularidade nos Estados Unidos. O interesseamericano pela psicanálise não se aprofunda. A popularização leva àaceitação superficial sem estudo sério. As pessoas apenas repetem asfrases que aprendem no teatro ou na imprensa. Pensam compreender algoda psicanálise porque brincam com seu jargão! Eu prefiro a ocupaçãointensa com a psicanálise, tal como ocorre nos centros europeus. AAmérica foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A ClarkUniversity concedeu-me um diploma honorário quando eu ainda eraignorado na Europa. Entretanto, a América fez poucas contribuiçõesoriginais à psicanálise. Os americanos são julgadores inteligentes,raramente pensadores criativos. Os médicos nos Estados Unidos, eocasionalmente também na Europa, procuram monopolizar para si apsicanálise. Mas seria um perigo para a psicanálise deixá-laexclusivamente nas mãos dos médicos, pois uma formação estritamentemédica é, com freqüência, um empecilho para o psicanalista. É sempreum empecilho, quando certas concepções científicas tradicionais ficamarraigadas no cérebro estudioso.
(Freud tem que dizer a verdade a qualquer preço! Ele não pode obrigara si mesmo a agradar à América, onde está a maioria de seusadmiradores. Apesar da sua intransigente integridade, Freud é aurbanidade em pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, nãoprocurando jamais intimidar o entrevistador. Raro é o visitante quedeixa a sua presença sem algum presente, algum sinal de hospitalidade!Havia escurecido. Era tempo de eu tomar o trem de volta à cidade queuma vez abrigara o esplendor imperial dos Habsburgos. Acompanhado daesposa e da filha, Freud desceu os degraus que levavam do seu refúgiona montanha à rua, para me ver partir. Ele me pareceu cansado etriste, ao dar o seu adeus).
S. Freud: Não me faça parecer um pessimista (disse ele após o apertode mão). Eu não tenho desprezo pelo mundo. Expressar desdém pelo mundoé apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar audiência e aplauso.Não, eu não sou um pessimista, não, enquanto tiver meus filhos, minhamulher e minhas flores! Não sou infeliz - ao menos não mais infelizque os outros.
(O apito de meu trem soou na noite. O automóvel me conduziarapidamente para a estação. Aos poucos o vulto ligeiramente curvado ea cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na distância).

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