Geomorfologia e ocupação
pré-histórica no baixo curso
do rio Sor: primeiras observações
geoarqueológicas
5
R E S U M O
Apresenta-se aqui uma primeira abordagem para a compreensão das relações entre morfogénese
quaternária e assentamento pré-histórico a nível regional e em contextos controlados principalmente
por processos aluviais de idade plistocénica e holocénica. O estudo de caso analisado
corresponde ao baixo curso do rio Sor, no trecho entre a barragem de Montargil e a confluência
com o Raia, e apresenta um relevo relativamente suave, afeiçoado em sedimentos terciários e em
afloramentos isolados do Maciço Hespérico. A característica mais vincada da fisiografia regional
é o sistema de terraços aluviais escalonados, que revestem as encostas do vale do Sor e que
constituem pontos de assentamento preferencial para sítios pré-históricos, como as estações
neolíticas de Bernardo 1 e Alminho 1, aqui examinadas. Apresentam-se os dados geoarqueológicos
relativos a estes sítios e ao seu território, discutindo, a partir deles, as questões referentes à
evolução quaternária da paisagem, às inter-relações entre relevo e sistema de assentamento pré-
-histórico e aos processos formativos dos sítios arqueológicos de baixa profundidade.
A B S T R A C T The paper presents a first approach for analysing the relationships between
Quaternary morfogenesis and prehistoric settlement system at a regional scale, in a context
that is mainly controlled by Pleistocene and Holocene alluvial processes. The case study analysed
corresponds to the lower part of the River Sor’s drainage basin — in the reach included from
the Montargil dam to its confluence into the River Raia. The area’s relief is gentle and modelled
in Tertiary sediments, with isolated outcrops of the Hesperic Massif. The most obvious regional
physiographic feature is the staircase of alluvial terraces that exists along the hill slopes of
the Sor Valley, which represented favourite locations for prehistoric sites — as the Neolithic
ones examined here, Bernardo 1 and Alminho 1. We here present the geoarchaeological data
referred to these sites and to their territory and discuss, from this information, the features
related to the Quaternary evolution of the landscape, the inferences between relief and prehistoric
settlement system and the formation processes in shallow-stratified archaeological sites.
Geomorfologia e ocupação
pré-histórica no baixo curso
do rio Sor: primeiras observações
geoarqueológicas
DIEGO E. ANGELUCCI*
MANUELA DE DEUS**
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
6 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
1. Introdução
1.1. Objecto do artigo
O sistema de ocupação está intimamente relacionado com a paisagem e com as suas componentes
fisiográficas e geológicas. A compreensão das inter-relações entre o sistema natural e o
cultural é um dos elementos centrais da Geoarqueologia, disciplina que permite analisar, simultaneamente
e sob uma perspectiva diacrónica, as características do relevo, das rochas, dos sedimentos
e dos solos e o registo arqueológico de um dado território.
Este artigo pretende analisar, de forma preliminar e através da abordagem geoarqueológica, a
relação entre a organização do relevo e a ocupação pré-histórica da região delimitada pelo baixo
curso do Sor, ou seja, entre a barragem de Montargil e a confluência com o Raia. Não se trata de
um estudo exaustivo, mas de uma primeira abordagem que apresenta dados provenientes do trabalho
de campo, integrando-os no quadro dos conhecimentos actuais e propondo algumas hipóteses
de trabalho a desenvolver eventualmente em pesquisas futuras.
Parte das bacias dos rios Sor e Sorraia já foram objecto de análises geoarqueológicas no passado.
A região em redor de Ponte de Sor foi analisada por A. Martins (1999) e o vale do Sorraia foi
objecto de estudo por S. Daveau (1984, 1996), também em colaboração com V. Gonçalves (Daveau
e Gonçalves, 1985). Nesta contribuição concentraremos as nossas atenções no baixo curso do rio
Sor, nomeadamente no trecho incluído entre a barragem de Montargil e a confluência com o rio
Raia, onde se localizam dois dos sítios arqueológicos (Bernardo 1 e Alminho 1) sobre os quais têm
incidido os trabalhos do projecto PONTIS em anos recentes.
1.2. Notas metodológicas
Este trabalho insere-se no âmbito da colaboração celebrada entre IPA e PNTA com vista a
desenvolver estudos de cariz paleoambiental e geoarqueológico em sítios arqueológicos portugueses,
sendo enquadrado pelo projecto PNTA Neolitização do Médio e Baixo Vale do Sor (Acrónimo:
PONTIS III), apresentado em 2003 e que tem sido financiado — em termos logísticos e infraestruturais
— pela Câmara Municipal de Ponte de Sor.
O projecto geoarqueológico arrancou em 2003 com a finalidade de analisar a estratigrafia
dos sítios do Bernardo 1 e do Alminho 1. No entanto, logo se percebeu que a compreensão da situação
geomorfológica e quaternária da região era elemento primordial para explicar a génese do
registo arqueológico observado nos sítios, levando à realização de três curtas campanhas geoarqueológicas
para esse efeito. O reconhecimento geoarqueológico foi realizado em 2003 e 2004
(respectivamente durante dois fins-de-semana no mês de Setembro) e em 2005 (de 13 a 18 de
Setembro). O trabalho de campo centrou-se principalmente no levantamento e na descrição das
sucessões estratigráficas dos sítios de Bernardo 1 e Alminho 1 e no reconhecimento geomorfológico
preliminar dos arredores. Não admira, tendo em conta o tempo até agora dedicado para o
trabalho de campo, que os resultados obtidos sejam preliminares. Ainda assim cremos que mereçam
publicação, pelas questões arqueológicas e geoarqueológicas levantadas.
Do ponto de vista metodológico, o trabalho foi realizado com referência às técnicas clássicas da
geoarqueologia (v. Angelucci, 2003). As estratificações foram levantadas tendo em conta as principais
características pedológicas, sedimentológicas, estratigráficas e arqueológicas dos depósitos,
através da utilização da ficha de descrição de sedimentos e solos arqueológicos em uso no IPA.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 7
A paisagem à volta dos sítios foi objecto de reconhecimento geomorfológico expedito, com compilação
de um esboço preliminar que não segue as normativas da cartografia geomorfológica, representando
só uma primeira abordagem qualitativa à análise do relevo da região. Os dados geológicos foram
retirados da cartografia geológica disponível e averiguados durante o reconhecimento de campo.
2. Contexto geológico, geomorfológico e quaternário
Do ponto de vista administrativo, os
sítios arqueológicos localizam-se no Norte
alentejano, distrito de Portalegre, concelho de
Ponte de Sor e freguesia de Montargil (Fig. 1).
No entanto, a fisionomia da paisagem torna
evidente que se trata de uma área de transição
do Ribatejo para o Alentejo.
A área examinada é integrada na unidade
de paisagem da charneca ribatejana (Cancela
d’Abreu et al., 2004), que é considerada uma
extensa charneca, delimitada a Norte pelo
“Médio Tejo”, prolongando-se para Sul até
Vendas Novas e Pegões, delimitada a Oeste
pela “Lezíria do Tejo” e a Este pela peneplanície
alentejana, e que, na opinião dos mesmos
autores, é interrompida pelo vale do Sorraia,
unidade de paisagem claramente diferente
devido ao seu uso agrícola intensivo, controlada
pelo sistema morfodinâmico relacionado
com o rio Sorraia e seus afluentes.
A bacia hidrográfica do Sorraia é, em termos
de extensão, a maior entre as tributárias do
rio Tejo, do qual o Sorraia é afluente esquerdo.
Do ponto de vista fisiográfico, a região
de Ponte de Sor é recortada por uma densa rede de linhas de água tributárias das bacias hidrográficas
do rio Sor e, mais próximo de Montargil, do Sorraia.
Com a excepção das áreas de cabeceiras do rio Sor e da ribeira da Seda (e seus tributários), que
se localizam em áreas de afloramento do soco do Maciço Hespérico, a bacia do Sorraia desenvolve-se
principalmente nas coberturas sedimentares tardo-cenozóicas da bacia do Tejo, com afloramentos
locais do soco paleozóico (ex. em redor de Montargil, Touris e Mora — Zbyszewski e Carvalhosa,
1984; Martins, 1999). Esta situação geral reflecte-se na região abrangida por este trabalho, onde afloram
predominantemente sedimentos cenozóicos (terciários e quaternários) e, só de forma subordinada
nos arredores de Montargil, os terrenos paleozóicos pertencentes ao basamento (Figs. 1 e 2).
O sistema hidrográfico do Sorraia articula-se num conjunto de vales embutidos a partir da
superfície culminante da bacia do Tejo, cuja expressão sedimentar corresponde a um manto de
areias e conglomerados, formalizado com diferentes designações (v. Martins, 1999, p. 19 e bibliografia
mencionada), que define uma superfície planáltica. Os vales da bacia do Sorraia apresentam-se
embutidos nesta superfície culminante e as suas encostas articulam-se em terraços morfológicos
Fig. 1 Localização da área de estudo (rectângulo). A base
cartográfica é o esquema morfoestrutural de Portugal (Ribeiro,
1970). Legenda: 1 - maciços montanhosos e planaltos elevados;
2 - falhas / fracturas; 3 - granito; 4 - xisto; 5 - cristas de
quartzito; 6 - calcário paleozóico; 7 - depressão periférica;
8 - calcário jurássico; 9 - outras rochas sedimentares
mesozóicas; 10 - bacias e rochas sedimentares terciárias.
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
8 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Fig. 2 Esboço geomorfológico do baixo curso do Rio Sor (modificado a partir do folha Montargil da CGP refx). Legenda: 1 - zona de afloramento dos terrenos do Maciço Hespérico; 2 - zona
de afloramento de sedimentos cenozóicos; 3 - terraços Q1 e Q2; 4 - terraços Q3; 5 - terraços Q4a; 6 - terraços Q4b; 7 - formações aluviais actuais e sub-actuais; 8 - curso de água; 9 - canais de
origem antrópica; 10 - curvas de nível (equidistância 50 m); 11 - localidades mencionadas no texto (Afl - afloramento no terraço Q4a 300 m SSE do Alminho; Alm - Alminho 1; Brn - Bernardo 1;
CS - corte do Canal do Sorraia; CN - Casas Novas).
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 9
escalonados que constituem a evidência do embutimento da rede hidrográfica, processo que caracterizou
de forma marcante a evolução morfológica desta região durante o Quaternário.
O processo de encaixe começou a partir da mencionada superfície culminante, que sofreu uma
primeira fase de embutimento, provavelmente nas fases iniciais do Quaternário, originando o “Nível
Mora-Lamarosa” (NML — Teixeira, 1979; Martins e Barbosa, 1992; Martins, 1999). Tanto a superfície
culminante como o NML são reconhecíveis numa vasta área que abrange o baixo curso do Tejo e as
bacias dos seus principais afluentes (Martins, 1995). O sucessivo processo de embutimento da rede
hidrográfica, com formação de terraços aluviais, iniciou-se a partir do NML e continuou durante
todo o Quaternário, embora com alternância entre fases de erosão, estabilidade e acumulação.
A folha Montargil da Carta Geológica de Portugal (CGP — Zbyszewski e Carvalhosa, 1983),
indica a existência de cinco ordens de terraços aluviais, cujas características estão indicadas no
Quadro I (“cota relativa” indica o desnível a partir do rio).
Quadro I. Sistemas de terraços aluviais na bacia do Rio Sor.
CGP - Folha 31-D (Montargil) CGP - Folha 32-A (Ponte de Sor) Em redor de Ponte de Sor
(Zbyszewki e Carvalhosa, 1984) (Carvalho e Carvalhosa, 1982) (Martins, 1999, p. 22)
sigla cota relativa cronologia cota relativa cota absoluta
Q1 75 - 95 m Siciliano I 75 - 95 m
Q2 50 - 70 m Siciliano II 50 - 65 m 160 - 170 m
Q3 25 - 40 m Tirreniano I 25 - 40 m 130 m
Q4a 14 - 20 m Tirreniano II 8 - 15 m (Q4) 100 - 110 m
Q4b 6 - 8 m
Escassas são as informações sobre a cronologia dos terraços, assim como sobre a presença de
paleossolos ou a espessura máxima do sedimento aluvial — a notícia explicativa da CGP Montargil
indica que a espessura do depósito do terraço mais recente alcança 12 m (Zbyszewski e Carvalhosa,
1984, p. 37). Ainda assim, a sequência dos terraços parece correctamente interpretada e a sua representação
no mapa geológico é boa. Como indica a própria CGP, todo os terraços estão formados
por sedimentos tipicamente fluviais — cascalheiras com elementos bem rolados e areias mais ou
menos grosseiras, por vezes com intercalações argilosas (Zbyszewski e Carvalhosa, 1984).
No próximo capítulo, apresentar-se-ão algumas informações suplementares recolhidas
durante o reconhecimento de campo, durante o qual se realizou um levantamento preliminar,
muito aquém do nível analítico exigido por uma análise geomorfológica completa. A nomenclatura
dos terraços é mantida como na proposta da CGP (Fig. 2).
Além dos processos aluviais, os processos de vertente e os relacionados com a neotectónica
terão tido também um papel importante na génese da paisagem que hoje observamos. Contudo,
os terraços aluviais representam as formas mais destacadas deste território e muitos dos sítios
arqueológicos estão relacionados com eles, razão pela qual iremos concentrar a nossa atenção
sobre estas morfologias e a relativa documentação estratigráfica.
3. Os terraços recentes do baixo curso do Sor
O reconhecimento de campo realizado para o projecto PONTIS III levou à descrição de novos
afloramentos relativos aos terraços Q4b, Q4a e Q3. Apresentamos a seguir a informação estratigráfica
a partir do terraço mais baixo (mais recente).
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
10 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
3.1. Terraço Q4b
É este o terraço mais baixo, poucos metros sobre o nível actual do rio. Ocupa uma área muito
extensa entre a barragem e a confluência com o rio Raia (Fig. 2). Foi observado entre Bernardo e Monte
dos Irmãos (Ponte de Sor) e no areeiro hoje desactivado perto de Casas Novas (Coruche). O terraço
tem superfície regular, talvez pelo intenso impacto agrário a que foi sujeito em tempos recentes, sendo
localização preferencial para cultivos intensivos (entre os quais predominam os arrozais) e areeiros.
No areeiro de Casas Novas observou-se um perfil objecto de descrição de semipormenor em
2004.
Perfil no areeiro de Casas Novas, terraço Q4b (fig. 10)
0 - 10 cm, horizonte (hor.) A – Areia com gravilha (“areão”, diâmetro máximo até 1 cm)
de cor pardo-acinzentada (2.5Y 5/2 - cor determinada em seco, como as restantes neste
corte); maciça (single grain), com empacotamento médio-alto e triagem moderada; porosidade
escassa (ocos de empacotamento e pequenos canais de raízes) e escassa matéria
orgânica bem incorporada; limite inferior claro linear.
10 - 20/25 cm, hor. C – Gravilha (“areão”, até 1 cm) com matriz arenosa, cor pardo-
-olivácea (2.5Y 4/3); maciça (single grain), com empacotamento médio-alto e triagem
moderada; porosidade muito escassa (só há ocos de empacotamento); limite inferior
abrupto, levemente ondulado, erosivo.
20/25 - 35 cm, hor. 2Ab – Franco arenoso com gravilha (“areão”, até 1 cm), de cor pardooliváceo-
clara (2.5Y 5/3); maciço (single grain), com empacotamento alto; resistente,
porosidade escassa (canais de raízes finos, vazios); escassa matéria orgânica bem incorporada,
limite inferior gradual linear.
35 - 75 cm, hor. 2C1 – Franco arenoso com gravilha (“areão”, até 1 cm), cor cinzento-
-pardacento-clara (2.5Y 6/2); maciço (single grain), empacotamento médio-alto; resistente,
porosidade muito escassa; limite inferior claro linear.
75 - 200 cm - hor. 2C2 – Sequência de cascalheira formada por elementos principalmente
rolados, de litologia siliciosa, com estratificação cruzada pouco reconhecível e matriz
arenosa de cor cinzento-pardacento-clara (2.5Y 6/2); limite inferior não observado.
Trata-se de uma sequência tipicamente aluvial, no topo da qual se formou um solo aluvial
(hor. 2Ab) com perfil pouco desenvolvido. Este solo foi sucessivamente cortado por uma reactivação
do processo aluvial, que levou o rio a “galgar” a superfície do terraço, acumulando o sedimento
aluvial (hor. C) sobre o qual se formou o solo actual, caracterizado por um horizonte orgânico de
escassa importância (hor. A). A espessura total dos sedimentos deste terraço não é conhecida.
O perfil observado sugere uma cronologia recente pela acumulação do sedimento aluvial — e
consequentemente pela formação do terraço — como é indicado pelo escasso desenvolvimento do
solo, pela falta de evidências de alteração e de características dia- ou pedogenéticas nas areias.
A reactivação do terraço parece ser, sempre a partir da evidência pedoestratigráfica, recente e poderá
estar relacionada com inundações recentes a partir de um leito em posição análoga ao actual, que
periodicamente terão alcançado a sua superfície superior. A reactivação do terraço foi igualmente
observada noutro ponto de afloramento desta unidade morfológica, entre Bernardo e Monte dos
Irmãos.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 11
Mudanças na configuração hidrográfica por causa de enchentes em tempos históricos são
também documentadas pelo rio Sorraia mais a jusante, nas vizinhanças de Coruche (Daveau,
1996).
3.2. Terraço Q4a
Este terraço alcança uma notável expressão morfológica na área examinada, apresentando-se contínuo,
com superfície regular, ligeiramente inclinada para jusante e aplanada. Mais a jusante, o terraço
tem forte expressão morfológica ao longo da margem esquerda do vale do Sorraia que é, neste sector,
marcadamente assimétrico — talvez por causa de condicionantes neotectónicas (Daveau, 1996).
A regularidade e continuidade desta superfície morfológica determinam a sua utilização para
cultivo intensivo e mecanizado de cereais e hortícolas.
O esqueleto desta unidade morfológica foi observado em vários pontos e está formado por
cascalheira de espessura superior a 5 m, diminuindo em direcção para o eixo do vale. Alguns afloramentos
permitem observar a estrutura interna do terraço, assim como as suas variações laterais
e verticais.
O perfil de solo no topo deste terraço foi observado à distância aproximada de 300 m SSE do
Alminho (Fig. 3). Neste ponto, os sedimentos estão cortados antropicamente para obter uma
superfície rebaixada para cultivo de arroz, deixando assim em afloramento a cascalheira e o solo
desenvolvido acima dela. Nota-se, nos sedimentos fluviais, um horizonte Ck bem desenvolvido,
cimentado, formado a partir da cascalheira e das areias fluviais; a cascalheira consta de cascalho e
seixo bem rolado, bem seleccionado, regular, com imbricação (ver descrição abaixo).
Perfil 300 m SSE do Alminho (Figs. 3 e 10)
-2 - 0 cm, hor. O – Liteira vegetal formada por detrito orgânico não decomposto.
0 - 10 cm, hor. C – Cascalheira formada por elementos angulosos e sub-rolados, entre
1-3 cm, em matriz franco-arenosa grosseira (“areão”) composta por grãos subangulosos
e sub-rolados, de cor parda (7.5YR 5/4); resistente; limite inferior nítido ondulado.
10 - 25 cm, hor. 2Bt1 – Limo argiloso sem pedras, de cor pardo-avermelhada (6YR 5/4);
com agregação colunar e poliédrica angulosa (de segunda ordem), ambas pouco desenvolvidas;
resistente, com revestimentos (de argila?) ao longo das superfícies dos agregados
(a cor dos revestimentos é 6YR 4/4); limite inferior claro linear.
25 - 55 cm, hor. 2Bt2 – Limo argiloso com escassa fracção de “areão” de quartzo subanguloso
e ocasional cascalho miúdo rolado; cor pardo-amarelada (7.5YR 5/6); agregação
colunar e poliédrica angulosa, pouco desenvolvidas; muito resistente e com moderada
cimentação (silcrete?); revestimentos como em 2Bt1; limite inferior claro linear.
55 - 65 cm, hor. 2BCt – Tem as mesmas características de 2Bt2, mas contém “fantasmas”
(halos) de seixos rolados quase completamente meteorizados; limite inferior nítido linear.
65 - 90 cm, hor. 2C – Cascalheira formada por elementos rolados, bem seleccionados,
entre 2-6 cm, de elementos de rochas siliciosas (quartzo, granito, anfibolito, rochas básicas,
etc.), em matriz franco-arenoso-argilosa de cor pardo-avermelhada (6YR 5/4); o
limite inferior não foi observado.
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
12 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Neste afloramento, detecta-se a presença de um
horizonte argílico Bt espesso e discretamente estruturado,
rubificado, argilificado, desenvolvido a partir da
cascalheira subjacente, com presença de horizontes de
transição (Fig. 3). O horizonte Bt está truncado por um
depósito mais recente (hor. C). Tendo em conta o grau
de desenvolvimento do solo e de meteorização das
rochas, pode-se lançar a hipótese de que o material aluvial
seja de idade plistocénica superior e que o solo
represente a evolução pedogenética ao longo do Plistocénico
final e do Holocénico.
A pouco metros de distância deste corte encontra-
se outro afloramento onde a cascalheira do terraço
Q4a está exposta por uma espessura superior a 5 m.
Fig. 3 Perfil de solo no topo do terraço Q4a (afloramento 300 m SSE
do Alminho).
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 13
A cascalheira apresenta intercalações de areia e um potente perfil pedogenético desenvolvido no
seu topo, com um horizonte câmbico (Bw) truncado, de espessura aproximada de 60 cm e em
curso de argilificação — contém revestimentos pouco desenvolvidos — e, na sua base, um horizonte
petrocálcico Ckm, no interior do qual se detecta intensa cimentação das areias e da cascalheira
aluvial (respectivamente transformadas em grés e conglomerado). No topo do terraço
aluvial parece existir uma subtil cobertura de vertente, formada por matriz franco arenosa que
embala seixos rolados.
Em 2005, a limpeza ao longo do Canal do Sorraia pôs à luz um corte com comprimento total
aproximado de 70 m, que foi descrito de forma rápida, desenhando-se também um croqui à escala
aproximada (Figs. 4 e 5). O corte está grosso modo transversal ao eixo do vale actual e desenvolve-
-se a partir da superfície topográfica, ligeiramente inclinada para N. O levantamento deste corte
foi efectuado utilizando conjuntos estratigráficos, que são as entidades fundamentais da descrição
apresentada abaixo.
Fig. 4 Imagem composta do corte ao longo do Canal do
Sorraia (a escala, no centro da imagem, é 1 m - colagem:
José Paulo Ruas, IPA).
Fig. 5 Esboço do corte ao longo do Canal do Sorraia.
Escala aproximada e exagero vertical de 2.5 a 1 (os
códigos alfanuméricos indicam os conjuntos
estratigráficos identificados, ver texto).
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-históricano baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
14 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Corte do Canal do Sorraia (Figs. 4 e 5)
SA – Solo actual sobre sedimento de vertente, limite inferior abrupto linear.
CL1 e CL2 – Depósitos de vertente; os dois estratos abrem em cunha a partir do topo do
terraço, aumentando de espessura para N; apresentam carácter maciço, desorganizado,
cor castanho-avermelhada (CL2, indicando a sua proveniência provável a partir da erosão
do paleossolo do conjunto SA) e castanho-acinzentada (CL1); o limite inferior de
CL2 é abrupto, inclinado para N.
CS – Lente truncada superiormente e côncava inferiormente, formada por cascalheira
com elementos de tamanho médio, rolados, em matriz arenosa avermelhada.
PS – Corpo lenticular, grosso modo paralelo à superfície topográfica, cortado para N
pela cascalheira de GR1; para S fecha encostando-se a GR2; é truncado superiormente e
reconhecem-se três horizontes:
Bw (PS1) – Limo com escassas pedras muito pequenas (milimétricas), angulosas e subangulosas,
pardo (7.5YR 4/4); maciço, pouco resistente, moderadamente poroso; o
limite inferior é claro linear e a espessura máxima é 20 cm;
BC (PS2) – Horizonte de transição entre Bw e C; limite inferior claro linear, espessura
máxima 20 cm;
C (PS3) – Sequência com gradação normal, de limo a “areolas” (areia grosseira com
limo), de cor amarelo-olivácea (2.5Y 6/5) homogénea na parte superior e com manchas
de descoloração na parte inferior; maciço, resistente, pouco poroso; localmente há algumas
pedras de tamanho maior (centímetros); limite inferior claro linear.
AF – Corpo lenticular, grosso modo paralelo à superfície topográfica, que fecha para S
encostando a GR2. É limo argiloso, sem pedras, pardo-amarelado-escuro (10YR 4/2);
tem agregação prismática de tamanho médio, moderadamente desenvolvida; é resistente,
contém matéria orgânica e o seu limite inferior é nítido linear.
AT – Espesso corpo de cascalheira e areia, cortado para N por uma superfície de erosão
(sobre a qual encostam os conjuntos PS e AF), em que se distinguem pelo menos quatro
unidades principais:
AT1 – Estrato de areia truncado superiormente, com características análogas a AT3
AT2 – Estrato de cascalheira média com características análogas à fracção mais grosseira
de AT4
AT3 – Corpo lenticular (abre de S para N) constituído por areia média e grosseira, rolada
e subrolada, com pouca gravilha muito fina; cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/6)
com manchas de cor irregulares, vermelho-amareladas (5YR 4/6) e descoloradas; apresenta
estratificação plana pouco reconhecível; limite inferior nítido linear.
AT4 – Sequência de cascalheira e areia com características fluviais típicas e estratificação
grosso modo plana; os níveis de cascalheira estão formados por elementos rolados e bem
rolados, siliciosos (são ausente litologias carbonatadas, os elementos mais representados
são de quartzo e quartzito, e subordinadamente são presentes litologias metamórficas
xistosas e gneissicas), organizados em feixes e imbricados, com suporte clástico; a matriz é
areia, com tamanho variável dependendo dos níveis, bem triada; na parte central do conjunto
reconhece-se uma faixa de areia bem triada, litologicamente madura, com estratificação
entrecruzada, laminação paralela e inclinada; no lado esquerdo são presentes vários
canais do tipo scour-and-fill; a cor é variável pela presença de manchas de cor oxidadas e
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 15
reduzidas (mais ou menos acinzentadas ou avermelhadas); o limite inferior é abrupto,
apoiando acima da superfície de erosão que trunca o substrato pré-quaternário.
BR – Substrato pré-Quaternário: margas cinzentas (lado esquerdo do corte) e areias cinzentas
a estratificação pouco reconhecível, com níveis de cascalho (lado direito).
Este corte evidencia de forma exemplar o esqueleto interno da unidade morfológica “terraço
Q4a”, formada principalmente por materiais fluviais depostos por correntes tractivas de fundo e
com uma espessura total que alcança, neste ponto, 5 m. Sucessivamente à deposição do material
grosseiro, verificou-se uma fase de erosão parcial, com corte dos sedimentos do conjunto AT e
sedimentação de material mais fino, orgânico, por decantação, seguida da acumulação de material
de fundo e de inundação, com consequente desenvolvimento de um paleossolo. As últimas fases
documentam uma parcial reactivação dos processos de transporte de fundo (conjunto CS), cuja
dinâmica e cronologia não são claras, e a erosão lateral da sequência aluvial, que determina assim
a deposição das coluviões e a formação do próprio terraço — provavelmente durante o processo de
encaixe do rio (ou pouco depois) que dará origem ao terraço Q4b. Este afloramento documenta
assim uma dinâmica prolongada e complexa, que inclui pelo menos dois ciclos de acumulação,
separados entre eles por uma fase de erosão do próprio depósito fluvial — que assinala uma discrepância
entre a aparente uniformidade morfológica e o registro sedimentar.
3.3. Terraço Q3
É nesta unidade morfológica que se situam os sítios em
análise — Bernardo 1 (Fig. 7) e Alminho 1. A continuidade e
visibilidade morfológica deste terraço são inferiores às observadas
nos terraços Q4a e Q4b, sendo o sistema Q3 intensamente
dissecado pelas linhas de águas tributárias do Sor e
apresentando assim superfícies convexas. O próprio registo
estratigráfico demonstra que o depósito fluvial do terraço Q3
sofreu, após a sua deposição, significativos fenómenos de
erosão que decaparam uma espessura considerável da sua
parte superior.
O esqueleto sedimentar do terraço Q3 está exposto
em vários pontos da estrada Montargil-Santa Justa, que
amiúde corta os depósitos pertencentes a esta unidade
morfológica.
Perto do Alminho, observa-se, por exemplo, um corte
obtido numa pequena pedreira. Na parede desta, aflora uma
espessura de cerca de 4 m de cascalheira alternada com areias
estratificadas que patenteiam várias estruturas sedimentares,
nomeadamente estratificação entrecruzada, canais cortados (alguns do tipo scour-and-fill), ripples e antidunas.
O cascalho está, nas camadas individuais e considerando as características médias, bem seleccionado,
com elementos rolados e de litologia siliciosa; as areias apresentam fenómenos de oxido-redução
que determina a sua coloração variegada em tons avermelhados e amarelados.
Fig. 6 Sedimento de vertente com fracção
detrítica em forma de plaquetas, no topo do
terraço Q3 (Quinta da Seca).
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
16 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Um afloramento com características parecidas foi detectado ao longo do Raia, no corte da
estrada que leva para o Açude do Furadouro. Neste local, observam-se cerca de 5 m de alternâncias
entre areias avermelhadas e níveis irregulares de cascalho. A sequência aluvial apoia sobre uma
superfície de discordância cortada no substrato pré-Quaternário e é truncada superiormente por
depósitos de vertente — embora seja ainda possível reconhecer um resíduo de paleossolo avermelhado
(que não foi possível descrever). Sedimentos de vertente no topo deste terraço foram observados
também noutros pontos de afloramento, ex. perto da Quinta da Seca, em posição mais a
montante da área examinada (Fig. 6).
Os sedimentos do terraço Q3 apresentam características que indicam uma diagénese mais intensa
do que os sedimentos dos terraços Q4a e Q4b. Ainda assim, surpreende a ausência de paleossolos ou
solos bem desenvolvidos (esta ausência foi também detectada nos terraços Q2 e Q1), que poderá relacionar-
se com os efeitos da erosão prolongada à qual esta unidade morfológica foi sujeita no curso do
tempo. É também de realçar o facto de não ter sido possível, pelas condições geomorfológicas, observar
afloramentos de espessura significativa relativos aos depósitos dos terraços Q1 e Q2.
4. O sítio arqueológico do Bernardo 1
4.1. Enquadramento do sítio
O sítio do Bernardo 1 foi identificado em 1996 e foi alvo de campanhas de sondagens arqueológicas
em 1998, 2003, 2004 e 2005. No local já era conhecido um monumento funerário escavado
por Leite de Vasconcellos em 1910, a anta do Bernardo. Existiam referências a recolhas de
materiais nos terrenos à volta da anta (Vasconcellos, 1910; Cruz, 1986), no entanto, não foram
associados a um local de habitat. Foram realizadas sete sondagens arqueológicas, de dimensões
variáveis, implantadas em diferentes zonas do povoado e que perfazem 25 m2 de área escavada.
O sítio localiza-se, geomorfologicamente, sobre uma superfície referente ao terraço Q3 (Fig.
7), cujos sedimentos são visíveis no talude da estrada junto do sítio. Nesta posição, o sedimento
aluvial consta de uma cascalheira formada por elementos rolados e sub-rolados, com suporte clástico,
tamanho médio entre 5-10 cm e matriz arenosa fina e média.
Fig. 7 Vista do sítio do Bernardo 1 e do terraço Q3 a partir da vertente a montante do Alminho.
Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 17
A superfície superior do terraço é convexa,
recortada lateralmente por duas linhas de água e
inclinada para o eixo do vale.
Os vestígios encontram-se dispersos por uma
área relativamente grande que se estende desde o
sopé da suave vertente a montante do terraço até a
zona aplanada correspondente a este, situada mais
a sul. O terreno é intensamente agricultado e a
seara foi substituída, mais recentemente, pela
plantação de tabaco, sendo também usado para
pastoreio de gado bovino e ovino.
4.2. Estratigrafia
A análise estratigráfica do Bernardo baseiase
em duas descrições efectuadas em 2003 e 2004
(a nomenclatura segue as designações das unidades
de escavação — ou camadas).
Bernardo - Perfil da sondagem U38 (2003)
Unidade de escavação (UE) A sup., 0-20 cm – Sedimento franco-limoso-arenoso com
escassas pedras (cascalho rolado e ocasionais fragmentos angulosos) heterométricas (até 5
cm), sem litologias carbonatadas, com padrão de distribuição (DP) e de orientação (OP)
aleatório e contendo uma fracção de cascalho muito fino - areão grosseiro (4-10 mm) bem
rolado; cor pardo-acinzentado-muito-escura (10YR 3/2, húmida), pardo-amarelada
(10YR 5/4, seca); maciço, resistente, ligeiramente orgânico; limite inferior nítido linear.
UE A inf., 20-40 cm – Sedimento franco-limoso-arenoso (a fracção siltosa parece ser
ligeiramente inferior do que na UE A sup.), com pedras como em A sup.; cor parda
(10YR 4/3, húmida), pardo-amarelada (10YR 5/5, seca); maciço, resistente, sem matéria
orgânica; actividade biológica comum (canais de raízes e pequenas tocas); limite nítido
irregular à pequena escala.
UE B, 40-65 cm – Areia com fracção minoritária de limo e argila, com escassas pedras
(cascalho fino e ocasionais fragmentos angulosos), com OP e OD aleatório (também há
elementos com orientação vertical); fracção 4-10 mm presente, mas em quantidade
ligeiramente inferior; cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/4, húmida) e pardo-pálida
(1Y 6/3, seca); resistente, empacotamento elevado; actividade biológica comum; matéria
orgânica ausente; limite claro pouco reconhecível.
UE C, 65-90 cm - Areia com pouca argila e silte (a granulometria parece ligeiramente
mais grosseira do que na UE B), pedras como em B (mas parece haver uma quantidade
ligeiramente maior de seixos entre 4-6 cm); cor pardo-amarelado-escura (9YR 4/4,
húmida), pardo-amarelado-clara (1Y 6/4, seca); resistente, empacotamento elevado e
muito ligeira cimentação por enriquecimento em óxido de ferro; actividade biológica
comum; matéria orgânica ausente; limite inferior claro pouco reconhecível.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
Fig. 8 Bernardo 1. Corte N do quadrado H32 (a escala no
lado direito da imagem equivale a 1 m).
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
18 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Bernardo - Perfil da sondagem U38 (2003) [cont.]
UE D, 70-105 cm – As características são iguais às da camada C, excepto pelas seguintes:
granulometria ligeiramente mais grosseira; presença de estratificação de baixo ângulo
de inclinação para SW, escassamente reconhecível, marcada pelas variações granulométricas
e pela concentração diferencial de óxido de ferro; escassez dos elementos angulosos,
muito raros (estatisticamente ausentes); presença de manchas de cor 9YR 5/4 pelo
enriquecimento de óxido de Ferro; limite inferior claro pouco reconhecível.
UE E, > 105 cm – Apresenta características idênticas a D, com maior expressão pelas
tendência já observadas na transição entre as camadas C e D: estratificação, presença de
faixas cimentadas por óxido ferro-manganesiano etc.; limite inferior não observado.
Bernardo - Perfil da sondagem H32 (2004) (fig. 8)
UE A sup., 0-15 cm – Areia siltosa com pedras muito escassas (acerca de 2%) formadas
por cascalho rolado e ocasionais fragmentos angulosos, heterométricas (até 7 cm), sem
litologias carbonatadas (principalmente quartzo, quartzito e granito), com padrão de
distribuição (DP) e de orientação (OP) aleatório e contendo uma fracção de cascalho
muito fino - areão grosseiro (4-10 mm) bem rolado; selecção moderada, packing médioalto;
cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/2, húmida); maciço, com tendência a formar
torrões e alguma laminaridade na parte superior; resistente, discretamente orgânico;
limite inferior nítido, linear.
UE A inf., 15-40 cm – Sedimento franco-arenoso-siltoso com pedras como em A sup.;
cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/2); selecção moderada, packing médio-alto; maciço,
resistente, discretamente orgânico; limite inferior abrupto linear, com algumas pedras
com OP horizontal a definir uma stone-line descontínua.
UE B, 40-70 cm – Sedimento franco-arenoso-siltoso com pedras como na camada A; cor
parda (8YR 4/4); resistente, packing médio-alto; actividade biológica comum (canais de
raízes e tocas preenchidos com material da camada A); matéria orgânica ausente; limite
difuso, pouco reconhecível, com variação gradual das características numa espessura
acerca de 30 cm.
UE C, 70-100 cm – Areia com pouca argila e silte, pedras como antes mas com ligeiro
incremento da quantidade (em particular dos seixos 4-6 cm); cor parda (9YR 4/4); resistente,
packing elevado e ligeira cimentação por óxido de ferro; actividade biológica
comum; matéria orgânica ausente; limite inferior não observado.
A situação observada nas duas sondagens é quase idêntica, com pequenas variações laterais
referentes ao conteúdo de matéria orgânica na camada A sup. e ao grau de alteração da camada B.
Na sucessão observada reconhecem-se dois grupos de sedimentos diferenciados, que indicam
dois conjuntos com características e génese diferentes.
O conjunto superior inclui as camadas A, B e C. Estas patenteiam características homogéneas
(pese o remeximento recente da camada A), que são de diagnóstico para indicar a sua origem, nomeadamente:
a moderada selecção granulométrica que indicia um ambiente sedimentar pouco selectivo
(sedimento de vertente e não fluvial); o OP e o DP dos elementos grosseiros, aleatório; a ausência
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 19
de estruturas sedimentares; a presença, na fracção grosseira, de elementos com forma diferente, rolados
ou angulosos. Para além disso, outras características indicam, juntamente com as evidências de
actividade biológica actual e subactual, que o sedimento sofreu importantes processos de bioturbação,
de impacto antrópico recente (na camada A) e de dissolução química (relacionada com o normal
desenvolvimento da pedogénese) que levaram ao desaparecimento de eventuais restos de fauna.
Neste conjunto superior reconhece-se um horizonte pedogenético Ap (horizonte de lavra, camada A
sup.) sobreposto a um mais antigo horizonte de lavra (hor. 2Ap, camada A inf.) e um horizonte pedogenético
profundo (hor. B, camada B) que patenteia uma escassa meteorização (Figs. 8 e 10).
Entre os processos de modificação pós-deposicional destaca-se a presença de fenómenos de
piping bem visíveis nas camadas B e C, incentivados pela abertura da sondagem, com intenso fluxo
de água subsuperficial que determina erosão e arrastamento das partículas mais finas.
As unidades D e E formam o conjunto inferior e conservam ainda evidência da organização
anterior, herdada, que os processos pedogenéticos não conseguiram disfarçar por completo. Trata-
-se de um depósito de transição entre o sedimento de vertente do conjunto superior e o depósito
fluvial subjacente.
O material arqueológico localiza-se na camada B, correspondente ao homónimo horizonte
pedogenético. A presença de estruturas pétreas e a própria distribuição vertical do material indicam
que se trata de material in situ, e não trazido pela movimentação de massa de sedimento ao longo da
vertente. Ainda assim, o espólio arqueológico sofreu significativos efeitos pós-deposicionais devido
aos processos pedogenéticos acima mencionados, que levaram ao desaparecimento de algumas classes
de objectos arqueológicos (ex. a fauna) e a parcial deslocação vertical doutros objectos.
4.3. Observações arqueológicas
O estudo do espólio das
intervenções mais recentes está
ainda a decorrer pelo que os
dados aqui apresentados são
preliminares, resultando das
observações efectuadas até ao
momento.
Embora com algumas variações
dentro de cada sondagem,
e de um modo geral, estão
representados dois momentos
de ocupação, o primeiro atribuível
ao Neolítico Antigo/
Médio e o segundo ao Neolítico
Final/Calcolítico. Os elementos
enqua- dráveis no Calcolítico
(pratos de bordo espessado) são
mais escassos e surgem habitualmente
na camada A, a qual se
encontra totalmente revolvida
pelas lavras. Ao que tudo indica,
Fig. 9 Espólio cerâmico dos sítios de Bernardo 1 e Alminho 1. 1 e 2 - Bernardo 1,
recipiente com mamilo e fragmento com incisão abaixo do bordo; 3, 4 e 5 -
Alminho 1, fragmentos com decoração formando espiga e “punto y raya”.
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
20 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
a continuação do tratamento e do estudo do espólio irá permitir distinguir e caracterizar melhor os
diferentes momentos de ocupação ocorridos na jazida.
O conjunto cerâmico é composto, maioritariamente, por cerâmica lisa. A cerâmica decorada
é pouco frequente sendo de registar a presença de incisões, entre elas um fragmento com sulco
inciso abaixo do bordo (Fig. 9). Estão também presentes algumas carenas que poderão pertencer a
uma ocupação do final do Neolítico.
A indústria lítica é composta por um número significativo de artefactos de feição microlaminar
(lamelas, lâminas e alguns geométricos), estando assinaladas ao nível das matérias-primas o
sílex e materiais locais, dentro dos quais se destaca o quartzo. É ainda de registar a presença de
macro-utensilagem lítica, obtida maioritariamente a partir de seixos de quartzito, abundantes na
região.
A escavação detectou duas estruturas arqueológicas. A primeira foi identificada na camada C da
sondagem Q38 SW (que equivale à camada B da sondagem H32) e corresponde a uma estrutura de
combustão, em cuvette, de contorno irregular (planta mais ou menos circular), com 56 cm x 45 cm de
largura máxima e cerca de 12 cm de profundidade, sobre a qual existia uma concentração de elementos
pétreos e alguns termoclastos. O seu interior era preenchido por um sedimento de matriz arenosa
e de coloração cinzenta escura. Não preservava qualquer tipo de matéria orgânica nem continha
espólio arqueológico que lhe permita atribuir uma cronologia relativa.
A estrutura 2 foi identificada na quadrícula H32, o que obrigou ao alargamento da sondagem
e à realização de uma campanha suplementar em 2005. Trata-se de uma concentração de blocos de
média e grande dimensão, predominantemente de granito, que ocupa uma área de mais de 2 m2 e
que foi erguida na base da camada B.
Deverá corresponder a uma estrutura derrubada (no sentido N-S) que se encontra afectada
por processos pós-deposicionais. Apesar de ter sido totalmente escavada e levantada, colocam-se
ainda algumas questões sobre a sua morfologia e funcionalidade. Foram recolhidos vários termoclastos,
tanto na camada que embala a estrutura como nos intervalos das pedras que a compõe,
no entanto, com base nos dados actualmente disponíveis, considera-se que não se trata de
uma lareira e que os termoclastos poderão estar associados a estruturas de combustão desmanteladas.
5. O sítio arqueológico do Alminho 1
5.1. Enquadramento
O sítio arqueológico do Alminho 1 localiza-se, analogamente à estação do Bernardo 1, num
terraço do sistema Q3 parcialmente desmantelado pelos processos de erosão lateral e superficial.
Até ao momento, a intervenção no Alminho 1 resumiu-se à abertura das duas sondagens (2004),
localizadas em áreas distintas, e tinha como principais objectivos confirmar a localização do sítio,
conhecer a(s) cronologia(s) de ocupação e reconhecer a estratigrafia e o seu estado de conservação.
5.2. Estratigrafia
Descreveu-se, no Alminho, a sucessão estratigráfica da sondagem 2, localizada numa zona
com superfície horizontal, provavelmente regularizada por acção humana.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 21
Alminho 1 - Perfil da sondagem 2 (Fig.10)
UE A, 0 - 10/18 cm - Areia siltosa com escassas pedras (acerca de 5%) formadas por seixos
rolados de quartzo (diâmetro máximo 3 cm) e fragmento angulosos de anfibolito,
granito e quartzo (máx. 8 cm — a proporção entre seixos rolados e fragmentos angulosos
é sensivelmente a mesma), com OD e DP aleatório; cor parda (9YR 4/2); agregação granular
descontínua escassamente desenvolvida; porosidade moderada (por canais finos e
médios) e escassas raízes finas; pouca matéria orgânica; selecção e empacotamento
moderados; limite inferior nítido ligeiramente ondulado.
UE B, 10/18 - 30 cm - Areia siltosa, micácea, com pedras como na camada A (embora os
elementos rolados sejam um bocado mais representados do que na camada A, com proporção
entre de 2/1), com OP e DP aleatória; cor parda (7.5YR 4/4); maciço (single grain);
porosidade escassa e empacotamento médio-alto; sem matéria orgânica; actividade biológica
escassa (canais de fauna preenchidos); limite inferior claro linear pouco reconhecível,
marcado pela presença de um fragmento tabular anguloso (b ~ 12 cm) de anfibolito
em posição horizontal, de provável origem antrópica.
UE C, 30-50 cm - Características iguais à camada B, excepto pelo aumento relativo
(escasso) dos seixos rolados; limite inferior claro linear pouco reconhecível.
UE D, 50 - > 68 cm - Areia siltosa com características parecidas à camada B, excepto por:
as pedras são mais abundantes (aproximadamente 10%) e o seixo rolado é dominante;
cor parda (7.5YR 5/4); limite inferior não observado.
A sucessão observada é muito parecida com a de Bernardo, embora não seja aqui possível detectar
a presença do perfil de solo patente nesse sítio. Isto leva a pensar que a parte superior da sucessão
tenha sido removida antropicamente em tempos recentes, por nivelamento ou terraplanagem, o que
é também sugerido pela regularidade da superfície no ponto de abertura da sondagem.
Outra sondagem (sondagem 1) foi aberta algumas dezenas de metros mais a montante (para
N), já fora do terraço aluvial Q3. Nesta sondagem aflora, em toda a espessura, material homogéneo
formado por sedimento franco siltoso, micáceo, com comuns (aproximadamente 15-20%) fragmentos
angulosos heterométricos (até 15 cm, mas o tamanho médio é entre 1-2 cm) de xisto,
anfibolito e (pouco) quartzo; localmente reconhece-se uma agregação poliédrica angulosa pouco
desenvolvida e a cor é vermelho-amarelada (5YR 4/6); é pouco poroso, resistente, sem matéria
orgânica e apoia directamente sobre o substrato geológico local.
Trata-se de sedimento de vertente e de desagregação derivado do substrato que aflora localmente.
Mais uma vez, a ausência de um perfil de solo desenvolvido no topo do sedimento indica
uma fase de erosão ou a sua remoção em tempos recentes.
5.3. Características arqueológicas
Tal como sucede no Bernardo 1, não foram identificados, até ao momento, restos orgânicos,
situação que limita fortemente o tipo de abordagem efectuada no estudo da jazida e impede a
obtenção de datações numéricas.
Na área mais a norte (sondagem 1), os vestígios arqueológicos superficiais não têm expressão
estratigráfica, situação que poderá resultar dos fenómenos erosivos que actuaram nesta
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
22 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
parte da vertente a montante do terraço Q3 ou do facto de não ter existido uma efectiva ocupação
da zona.
A ocupação neolítica foi identificada mais a sul, na sondagem 2, que está situada no terraço
Q3. O sítio está parcialmente destruído devido à construção de um armazém agrícola e à abertura
de socalcos para plantação de um antigo laranjal. A sondagem foi implantada numa faixa de terreno
que existe entre o armazém e o primeiro socalco.
Na sondagem 2, o material arqueológico surge na camada B e reporta-se, até à data, exclusivamente
a um momento que podemos inserir no Neolítico Antigo evoluído. As únicas categorias
artefactuais representadas são a pedra lascada e a cerâmica de fabrico manual. Foi registada a presença
de uma indústria lítica lamelar, maioritariamente em sílex. O conjunto cerâmico está ainda
mal caracterizado do ponto de vista morfológico (devido também à reduzida área de escavação) e
é composto por cerâmica lisa e decorada. Entre esta regista-se a presença de fragmentos com decoração
“punto y raya” e com motivo em espiga.
Terminada a intervenção no Bernardo 1, os trabalhos arqueológicos concentrar-se-ão neste
sítio, em particular com a escavação em área da faixa de terreno onde foi implantada a sondagem 2.
6. Discussão
Este artigo aproxima-se de forma preliminar a uma série de problemas complexos, que necessitariam
de uma abordagem mais demorada e pormenorizada, com vista a compreender as questões
relativas à evolução morfológica do território no Quaternário recente, às relações entre assentamento
e fisiografia, aos processos de formação dos sítios localizados a baixa profundidade1. São,
como se disse, questões complexas e esta discussão não irá mais longe de uma primeira tomada de
contacto para fazer o ponto da situação.
6.1. A evolução morfológica
Os traços gerais da evolução morfológica quaternária da região estão bem delineados na
bibliografia anterior, em particular para as primeiras fases do processo de encaixe, analisadas
extensivamente por A. Martins (1995, 1999, 2001), e para a evolução recente da área vestibular do
Sorraia (Daveau 1984, 1996; Daveau e Gonçalves, 1985). No entanto, os processos de transformação
da paisagem durante o Plistocénico médio e superior e o Holocénico não são conhecidos de
forma pormenorizada. A abordagem preliminar deste artigo não consente alcançar conclusões
significativas, mas pode adicionar algumas observações e hipóteses de trabalho para o futuro.
No que diz respeito aos terraços, a evidência pedoestratigráfica observada no campo confirma
a sequência cronológica relativa estabelecida pelos autores anteriores, a partir de critérios
geomorfológicos. Para os terraços inferiores, que ainda não sofreram efeitos erosivos significativos,
depara-se o seguinte: o terraço Q4a apresenta um perfil de solo no seu topo que, embora truncado,
se articula nos horizontes Bt (subdivido em sub-horizontes e com desenvolvimento de cor
próxima ao hue 5YR) e BCt, com uma espessura mínima do solum superior a 50 cm (Fig. 10); o terraço
Q4b, pelo contrário, não apresenta horizonte B desenvolvido e a espessura do solum do perfil
no topo alcança 15 cm. No que se refere aos terraços superiores não é possível, a partir dos dados
apresentados, construir uma referência pedoestratigráfica, por efeito da intensa erosão a que estiveram
sujeitos.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 23
No entanto, os efeitos da erosão podem também ser considerados como elementos de cronologia
relativa, no que diz respeito à continuidade lateral dos depósitos aluviais e à morfologia
superficial dos terraços: os terraços Q1 e Q2 são marcadamente descontínuos (pela dissecação dos
afluentes laterais do Sor) e com superfícies convexas; o sistema Q3 é mais contínuo, apresenta
superfícies convexas e não possui solo no topo; os terraços Q4a e Q4b são contínuos, planos em
superfície e os seus depósitos ainda estão selados pelos solos que se desenvolveram após concluída
a acumulação aluvial (v. também Fig. 2).
A intensidade da erosão foi avaliada calculando a área média de afloramento dos terraços de
cada sistema e confrontando-a com a extensão do fundo vale aluvial actual (Quadro II). Embora
este parâmetro possa ser susceptível de erros (ex. a área examinada é limitada e alguns terraços
estão representado só parcialmente), ainda assim fornece uma indicação do grau de conservação
dos terraços dos diferentes sistemas: é evidente (ver quadro II) que os terraços mais recentes se
organizam em afloramentos de superfície mais extensa, não tendo sido dissecados pela erosão dos
cursos de água tributários do Sor, enquanto os terraços mais altos (e mais antigos) afloram em
áreas limitadas, por efeito da intensa erosão a que foram sujeitos.
Fig. 10 Colunas estratigráficas simplificadas dos perfis do areeiro de Casas Novas e do afloramento do terraço Q4a (as letras
ao pé das colunas indicam os horizontes pedogenéticos) e dos sítios arqueológicos do Alminho 1 e do Bernardo 1 (as letras
indicam as unidades arqueológicas utilizadas na escavação). A largura das colunas é proporcional à granulometria das unidades
(A - argila, L - limo, S - areia, B - balastro) e a intensidade do tom de cinza indica a actuação da pedogénese. Legenda:
1 - horizontes Ap, com impacte agrário; 2 - incorporação de matéria orgânica; 3 - actividade biológica; 4 - hidromorfismo;
5 - meteorização; 6 - acumulação iluvial de argila; 7 - piping; 8 - estratificação ou laminação; 9 - posição do espólio arqueológico;
10 - posição das estruturas arqueológicas.
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
24 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Quadro II. Sistemas de terraços aluviais do Rio Sor.
sistema perfil de solo no topo área média terraço
sigla cota relativa horizontes solum (km²) cfr f. vale actual
Q1 75 - 95 m não observado ?
0,131
5,65
Q2 50 - 70 m não observado ?
Q3 25 - 40 m não observado ? 0,095 4,10
Q4a 14 - 20 m Bt1-Bt2-Bct-C 55 cm 0,321 13,8
Q4b 6 - 8 m A-C 15 cm 0,872 37,9
a – O-C 0 cm (2,320) (100)
Apesar desta informação estratigráfica e cronológica relativa, faltam ainda elementos cronométricos
para a datação dos sucessivos processos de acumulação aluvial e de erosão que levaram à génese
do sistema de terraços escalonados da bacia do Sorraia. Neste sentido, os processos parecem ser mais
complexos do que a simples alternância entre fases de enchimento aluvial e de erosão, como é
demonstrado pelo “corte canal Sorraia” (Fig. 4) no caso do terraço Q4a, onde não há correspondência
entre a evidência morfológica e a estratigráfica por causa de uma reactivação com consequente reincisão
dos sedimentos, e pelo afloramento de Casas Novas (terraço Q4b), onde se observa evidência
de uma reactivação fluvial (fig. 10). Estamos assim perante uma situação complexa, em que à alternância
de fases de erosão e acumulação, controladas de forma primordial pelo levantamento tectónico,
se sobrepõem factores neotectónicos e relacionados com as mudanças climáticas.
6.2. As relações entre paisagem e assentamento
A relativa escassez de dados geomorfológicos impede, para já, desenvolver modelos diacrónicos
para inter-relacionar o sistema de assentamento e utilização do território com a paisagem na
região considerada. Não obstante, é possível adiantar algumas observações.
Na área considerada é possível diferenciar, grosso modo, algumas unidades de paisagem principais,
que são as seguintes: (1) os fundos de vale; (2) os terraços quaternários escalonados; (3) as
zonas embutidas relativas ao “Nível Mora Lamarosa” (ver supra); (4) os resíduos da superfície culminante;
(5) as áreas afeiçoadas em rochas do Maciço Hespérico. De acordo com os dados recolhidos
até ao momento, os sítios arqueológicos que podemos enquadrar no intervalo de tempo entre
Neolítico Antigo e Calcolítico, localizam-se geralmente a baixa altitude, na base do afloramento
relacionado com o maciço antigo de Montargil, numa estreita faixa que corresponde aos terrenos
cenozóicos que o contornam e em terraços do sistema Q3. É evidente que esta relação não se prende
apenas com as características geológicas e litológicas, mas sobretudo com as formas que se desenvolveram
a partir destas formações geológicas. Estas dão preferencialmente origem a superfícies
com baixo declive, em posição próxima das linhas de águas e com solos de textura relativamente
fina e, eventualmente, pedregosidade superficial baixa — factores que poderão ter orientado as
escolhas das comunidades de agricultores e pastores. Uma avaliação da organização do território
(ex. com o método da land evaluation da FAO-UNESCO, 1994) apoiada em SIG poderá levar à confirmação
ou rejeição desta hipótese preliminar. No entanto, os padrões de assentamento poderão
ser mais complexos do que parece (ver PONTIS 1999), sendo que existem sítios onde não há qualquer
correspondência entre os materiais de superfície e a evidência estratigráfica — como no caso
da sondagem 1 no Alminho 1 — ou áreas onde, perante contextos geomorfológicos semelhantes
aos descritos acima, não se observa uma distribuição análoga dos sítios — caso do terraço Q3 no
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 25
trecho entre Ponte de Sor e a actual barragem de Montargil, onde não há registo de sítios neolíticos
ou calcolíticos em situação sub-superficial mas, por outro lado, encontram-se objectos de feição
paleolítica incorporados nas cascalheiras.
Quaisquer que sejam as razões destas aparentes assimetrias na distribuição dos sítios ou diferenças
entre registo arqueológico e evidência superficial não é dado saber até ao momento, e só a
análise atenta do contexto geomorfológico — que possa evidenciar eventuais acções diferenciais de
sedimentação ou erosão no âmbito de uma mesma unidade morfológica ou efeitos relacionados
com a neotectónica — e da situação arqueológica poderão, no futuro, revelar quais as escolhas efectuadas
pelos nossos antecessores e quais os efeitos de bias referentes às dinâmicas morfológicas.
6.3. Observações sobre os processos de formação em sítios de baixa profundidade
Evidência superficial, registo arqueológico, integridade e conservação do espólio dependem, em
primeira instância, dos processos responsáveis pela formação dos sítios arqueológicos, quer sejam
antrópicos ou naturais. Os casos do Alminho 1 e do Bernardo 1 representam situações quase paradigmáticas
de posições desfavoráveis para a conservação do registo arqueológico, pelas seguintes razões:
• a unidade morfológica (terraço Q3) onde os sítios se implantam é constituída por superfícies
relativamente antigas, sujeitas a processos de erosão lateral e superficial;
• trata-se de posições sem acumulação sedimentar significativa que leva peças estruturas
arqueológicas a ficar em posição próxima da superfície topográfica por intervalos de tempo
prolongados, sujeitando-as à acção continuada da pedogénese;
• a configuração morfológica dos terraços faz deles localizações preferenciais para a actividade
agrária, pelas mesmas razões que os fizeram apetecíveis para o assentamento pré-histórico:
baixo declive, vizinhança à água, baixa pedregosidade superficial, textura do solo
relativamente fina, etc. — o impacto das actividades antrópicas é assim intenso;
• o parent material sobre o qual se desenvolveram os solos destes sítios é formado principalmente
por cascalheira ou areia de composição siliciosa, com consequente rápida acidificação
do solo e condições de boa drenagem, ou seja oxidantes e secas — prejudiciais para a
conservação de restos ósseos e de malacofauna.
Portanto, o conjunto de evidências de processos pós-deposicionais observado nas estratificações
dos sítios examinados é de alguma forma intrínseco à sua localização e ao seu contexto. Entre as
evidências detectadas, podemos recordar: o desaparecimento da fauna devida aos processos de pedogénese;
a translocação de produtos solúveis no perfil; a bioturbação resultantes da acção das raízes e
da fauna edáfica; o piping; o impacte agrário pela acção da lavra. Este conjunto de processos não constitui,
infelizmente, uma excepção, mas sim a regra de muitos sítios arqueológicos desta cronologia
situados no mesmo contexto climático-ambiental e em unidades morfológicas análogas.
Agradecimentos
Diego E. Angelucci quer agradecer a todas as pessoas que colaboraram no reconhecimento de
campo, em particular a João Pedro Araújo Gomes, que participou activamente na campanha geoarqueológica
de 2005.
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
26 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
NOTAS
* Instituto Português de Arqueologia
diego@ipa.min-cultura.pt
** Instituto Português de Arqueologia
mdeus@ipa.min-cultura.pt
1 Após a entrega deste artigo, integrou-se no IPA a Dra. Ana Costa,
em qualidade de estagiária do PEPAP, que irá desenvolver um
projecto para a criação de um SIG de âmbito geoarqueológico sobre
a região aqui examinada.
BIBLIOGRAFIA
ANGELUCCI, D. E. (2003) - A partir da terra: a contribuição da Geoarqueologia. In MATEUS, J.; MORENO-GARCÍA, M., eds. - Paleoecologia Humana
e Arqueociências. Um programa multidisciplinar para a Arqueologia sob a tutela da cultura. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia (Trabalhos de
Arqueologia; 29), p. 35-84.
CANCELA D’ABREU, A.; CORREIA, T. P.; OLIVEIRA, R., eds. (2004) - Contributos para a identificação e caracterização da paisagem em Portugal Continental.
Vol. IV. Lisboa: Direcção Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano e Universidade de Évora.
CARVALHO, A. M. G. de; ZBYSZEWSKI, G.; CARVALHOSA, A. B.; FERREIRA, O. da V. (1981) - Carta Geológica de Portugal. Folha 32-A (Ponte de Sôr).
Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal.
CARVALHO, A. M. G.; CARVALHOSA, A. B. (1984) - Notícia Explicativa da Folha 32-A (Ponte de Sor). Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal.
CRUZ, M. D. G. (1986) - Carta Arqueológica de Montargil. Policopiado existente na Biblioteca Municipal Calouste Gulbenkian. Ponte de Sor.
DAVEAU, S. (1984) - Géographie historique du site de Coruche, étape sur les itinéraires entre Évora et le Ribatejo. Separata da Revista da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa. 5ª série. 2, p. 115-135.
DAVEAU, S. (1996) - The Sorraia valley. Topics for a guided visit. In FERREIRA, A. B.; VIEIRA, G., eds. - Fifth European Intensive Course on Applied
Geomorphology. Mediterranean and Urban Areas (Lisbon - Algarve, 17-24 June 1996). Lisboa: Universidade, p. 185-189.
DAVEAU, S.; GONÇALVES, V. (1985) - A evolução holocénica do Vale do Sorraia e as particularidades da sua antropização (Neolítico e Calcolítico).
In Actas da I Reunião do Quaternário Ibérico. Lisboa: Centro de Estudos Geográficos, 2, p. 187-197.
FAO-UNESCO (1994) - Soil map of the world. Revised legend with corrections. ISRIC [Technical Paper; 20], Wageningen.
MARTINS, A. (1995) - Paisagem da superfície culminante da bacia do Tejo aos primeiros terraços (Área da Chamusca e Entrocamento, Portugal).
In Actas da III Reunião do Quaternário Ibérico. Coimbra: Universidade, p. 157-164.
MARTINS, A. (1999) - O relevo da Região de Ponte de Sor. In PONTIS (Grupo de Estudos Arqueológicos de Ponte de Sor) - Carta arqueológica de Ponte
de Sor. Ponte de Sor: Câmara Municipal, p. 19-25.
MARTINS, A. (2001) - O nível de Mora-Lamarosa e os primeiros terraços (T1) no troço E-W do Tejo. Enquadramento geomorfológico e estratigráfico.
Estudos do Quaternário. Lisboa. 4, p. 15-27.
MARTINS, A.; BARBOSA, B. (1992) - Planaltos do Nordeste da Bacia Terciária do Tejo (Portugal). Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal.
Lisboa. 78:1, p. 13-22.
PONTIS (Grupo de Estudos Arqueológicos de Ponte de Sor) (1999) - Carta Arqueológica de Ponte de Sor. Ponte de Sor: Câmara Municipal.
RIBEIRO, O. (1970) - Génèse et diversité des montagnes portugaises. In LAUER, W., ed. - Argumenta Geographica. Festschrift Carl Troll zum 70. Geburtstag
(24. Dezember 1969). Sankt Augustin: Asgard Verlag (Colloquium Geographicum; 12), p. 214-224.
TEIXEIRA, C. (1979) - Plio-Plistocénico de Portugal. Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal. Lisboa. 65, p. 35-46.
VASCONCELLOS, J. L. (1910) - Chronica. Excursão archeológica — escavações — acquisições. O Archeologo Português. Lisboa. 15:1-12, p. 247-252.
ZBYSZEWSKI, G. (1953) - Notícia explicativa da Folha 31-A (Santarém). Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal.
ZBYSZEWSKI, G.; CARVALHOSA, A. B. (1983) - Carta Geológica de Portugal. Folha 31-D (Montargil). Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal.
ZBYSZEWSKI, G.; CARVALHOSA, A. B. (1984) - Notícia explicativa da Folha 31-D (Montargil). Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal.
Autores:
DIEGO E. ANGELUCCI
MANUELA DE DEUS
Fonte:http://www.ipa.min-cultura.pt/pubs/R...er/005-026.pdf
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment