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Orfeu/Eurídice
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ORFEUPara o velho Eagro, o temido e admirado rei da Trácia, amante da guerra, homem das armas, a música é barulho e a educação do filho caçula, um fracasso.Esse é o seu desgosto: não conseguira educar Orfeu para a guerra.A sua belicosa pedagogia não conseguira sensibilizar para a guerra o jovem com alma de artista.Eagro sofre. É um rei, tem poder, mas perdera o próprio filho.Quando o chama, tem entre os dedos a última e desesperada tentativa de cativar o neto de Ares, deus da guerra, para o mundo do guerreiro. O filho o acompanha à sala. Na parede: elmos, armaduras e armas. "Quero que receba de seu velho pai este presente. Nele está depositado o meu coração" diz ao jovem. Quando Orfeu abre a caixa vê diante de si um arco e um par de flechas, banhados a ouro.Ao retesar a corda Orfeu produz um som encantador e repentinamente as coisas da sala parecem adquirir vida.Cadeiras balançam, armas caem da parede. Tudo parece se movimentar. O som flutua no palácio, sensibilizando os empregados.Eagro fica furioso. Seus olhos sangram, na voz palavras terríveis lançadas ao ar como chamas: - Vá embora! Desapareça! Não o quero mais aqui! Eu não o queria assim, um ... um cantador... um artista...um...um..." - mal consegue pronunciar as palavras: - "Você decepcionou seu pai". Eu o queria um guerreiro, um bravo, um amante das guerras, por isso vá embora"!Expulsa o próprio filho da sua casa, do seu reino.Ninguém pode penetrar na dor de Eagro, nem compreender a alma da música que invadiu o coração de Orfeu.Orfeu olha para Eagro, pensa em Calíope, sua mãe. Em seu pensamento dançam as lembranças das aventuras vividas na velha Trácia. Olha para o monte Olimpo, pois habitava perto dele. Mas é o fim. A sua música não seduziu o velho pai.Orfeu corre sem parar. Penetra cada vez mais na floresta. Verdes bailam em sua passagem, a ventania se esquiva, a floresta emudece, pássaros silenciam. A cacatua, a cotovia...Ao chegar na clareira da floresta, caiu ao chão e adormeceu. O cansaço o venceu. Quando desperta constrói para si um instrumento musical, uma cítara. Coloca nove cordas no instrumento.Seu enverdecido pensamento pensa que a música será a sua única companheira e então, ao tocar, inventa o antídoto do mal. Tem a imensa convicção de que a música espanta os males.Ninguém o seguirá, será o cantador solitário das florestas. Aonde ele for, a sua música estará com ele. "Sou Orfeu"! quer gritar, mas seu pensamento é transformado em terna melodia.Verdes o reverenciam, caules e flores abrem passagem para a sua música. Mas, ele se enganara, não segue solitário.Por onde passa, encontra amigos, todos o seguem para ouvi-lo, querem apreciar a sua música, que se mostra curativa da alma. A cada acorde seduz a natureza.Pássaros aperfeiçoam seus cantos com Orfeu, pardais, gralhas, rouxinóis, cotovias, melros. Ele entrelaça o seu canto com o dos pássaros.Animais esquecem a rivalidade natural e, com a natureza subvertida, passam a conviver em harmonia. Raposas, texugos, veados, leões, corças, javalis.Até os insetos o seguiam atraídos pela mágica sonora. Tomados pelo encantamento, borboletas, libélulas e gafanhotos o seguem.As flores adquirem novas cores, os girassóis se iluminam, verdes e azuis se renovam. A sua música opera milagres indescritíveis.Certa vez quando a floresta entardecia, Orfeu teve o pressentimento de que estava sendo observado.Sentiu olhos pelas frestas, e ficou apreensivo.Estaria sendo seguido? Teria invadido território sagrado? Teria ofendido aos deuses? Para espantar os males, decidiu cantar e seu canto revelou entre as folhagens a bela criatura que o espreitava.Surgiu diante dele, dançando, uma ninfa de cabelos longos e possuidores da cor da floresta. Ele, atônito, ficou paralisado diante da ninfa. Ela começou a falar. A voz penetrou no coração de Orfeu."Eu sei quem você é" - disse a ninfa, que se mostrou conhecedora das proezas de Orfeu, que, transformadas em lendas, percorriam as florestas e varavam os povos."Já ouvi muitas histórias sobre você. Você derrotou o leão montanhês, o seu canto abriu o rio, as águas se ergueram, o rio se dividiu. As ondas foram detidas, e você abriu uma passagem entre as águas. Formaram-se duas paredes de água e você caminhou pelo corredor entre essas paredes. Você fez rochas dançarem, enfrentou e acalmou o dragão de três cabeças que guardava o Velocino de Ouro. Também salvou os argonautas da sedução do canto das sereias. Você, que é um sedutor..."Realmente a ninfa sabia muita coisa sobre Orfeu. Conhecia as aventuras, sabia das lendárias histórias que se contavam sobre o cantador da floresta e enquanto falava essas coisas, deixava escapar que estava apaixonada pelo jovem."Qual o seu nome?" perguntou Orfeu, atordoado pela beleza da ninfa de cabelos florestais."Eurídice" respondeu."Sim, Eurídice. Agora eu sei quem é você. Você é a bela dançarina da floresta, e eu a quero a meu lado. Com você comigo sou mais forte, você com a sua dança aperfeiçoa o meu canto"E ali, naquele enternecido momento, entre verdes, animais, pássaros e flores, se tornaram amantes.Quis o destino que esse encontro trouxesse felicidade para a floresta, pois assim foi. Por onde passaram, a felicidade se espalhou. As frestas de sol invadiram as solidões da floresta, adeuses se afastaram, lamentos e dores, tragédias e tristezas, tudo desapareceu. Os prantos se dissolveram, as mágoas foram esquecidas, só alegria, amizade, ternura, felicidade...Os povos da floresta, animados e agradecidos pelo bem que a música de Orfeu e a dança de Eurídice trouxeram, resolveram preparar uma bonita festa de casamento. Todos participaram dessa preparação, animais e pessoas.Os animais enfeitando as árvores, os homens construindo um altar e as mulheres tecendo um pano maravilhoso para o vestido de noiva de Eurídice.Trabalharam dias seguidos na preparação desse significativo evento, a cada manhã, a cada entardecer e a cada noite, iluminados pelos candelabros naturais de milhares de vaga-lumes, e pela luz prateada da lua, que vagando no céu espreitava comovida a felicidade do casal.O casal continuava espalhando a felicidade com a bela união.Os habitantes da floresta ansiosamente aguardavam o grande dia, quando entre caules, galhos e rochas, percorreu a noticia aterrorizante de que terrível criatura se aproximava destruindo tudo, arrancando árvores, rochas despedaçando.A assombrosa criatura, uma fera medonha, enorme, incapaz de ser detida por um exército de guerreiros, já dizimara aldeias, aniquilara famílias inteiras, e rasgara ao meio os mais fortes animais selvagens. Nada poderia detê-la. A única esperança, o canto de Orfeu.Talvez, com a música, ele pudesse salvar da fatalidade, da desgraça e da tragédia os povos da floresta.Os povos da floresta imploraram para que ele fosse até a região montanhosa, onde estava a criatura medonha que se aproximava, para enfrentá-la.Os anciões, reunidos em conselho, convenceram Orfeu a partir na véspera do seu casamento para enfrentar a criatura. "Só você, com seu canto, conseguirá deter a criatura". disse um pastor.E assim ele se foi, deixando a visão esplendorosa da preparação do seu casamento. No caminho colheu uma flor lilás e entregou-a a Eurídice. "Fique em paz, eu retornarei. Guarde esta flor, ela simbolizará o meu canto até a minha volta". Partiu em direção ao perigo, não podia se negar a salvar a vida de tão preciosos amigos e sabia, mais do que ninguém, que a sua música nascera para beneficiar a humanidade.Sabia mais do que ninguém que, se o seu canto não conseguisse acalmar a estranha criatura, tudo estaria perdido e, tantos os habitantes das florestas, quanto os animais e as árvores, estariam arrasados, tudo estaria destruído."Eu voltarei"! - disse para a sua dançarina, que, cortada pelas lágrimas do temor, abraçou forte o seu guerreiro do canto e murmurando pediu proteção aos deuses, enquanto apertava o corpo ao de Orfeu, que emudecido num soluço, partiu para a arriscada missão.Eurídice ficou sozinha com a sua flor lilás na morada da floresta, mas dias depois, despertada pela curiosidade natural das fêmeas, se dirigiu à clareira da floresta para ver como andava a preparação do seu casamento.Acompanhada pelos pássaros e os olhos dos animais amigos entre as verdes frestas, a doce ninfa seguiu seu rumo, quando alguém a agarrou.Pensando se tratar do amado que voltara, pronuncia o seu nome, mas logo descobre o engano fatal.Está diante do guerreiro agricultor, filho de Apolo, que sempre fora apaixonado por ela, mas como nunca conseguira conquistar o seu coração com o afeto e as armas naturais do amante, resolveu usar a força e covardemente a ataca.Como nunca conseguira transmitir encanto para Eurídice, queria violar sua própria paixão.- Solte-me Aristeu! Você não pode fazer isso! Ninguém manda no coração de uma mulher! Você sabe quem eu amo...Uma força maligna subiu ao coração de Aristeu, o seu sangue transformou-se em chamas, dos seus olhos o ódio e o desprezo invadiram o ar.Ele, o filho de um deus, ele, um forte, ser derrotado por um músico, ter perdido o amor de Eurídice por um artista, é uma humilhação sem fim...Furiosamente, dominado pelo ódio da perda, atirou Eurídice ao chão. Ela aproveitou e tentou se levantar e fugir, mas, mal dera alguns passos, foi picada por uma serpente. O veneno e a dor imediatamente atingiram seu sangue. Ela, se contorcendo, caiu ao chão. Aristeu, tão covarde como chegara, foge, abandonando-a.Quando o povo da floresta a encontrou, sua azulada alma já se dissolvia por entre as folhagens e se recompunha no ar, voando como que levada pelos ventos em direção ao mundo dos mortos.Dois lenhadores a ergueram com cuidado e um deles, com a voz trêmula e encharcada pela dor, disse:- "Não há nada a fazer! O veneno penetrou em seu coração. A sua alma já não está entre nós. Vamos levá-la para o altar".E assim quando o sol se recolhia entre as frestas das folhas, o povo da floresta entristecido, levava o corpo de Eurídice, enquanto a sua alma já se aproximava dos enormes portões do mundo dos mortos.Entre os gravetos do caminho, uma flor lilás murchava...Quando Orfeu retornou vitorioso após ter acalmado a horrenda criatura com o seu canto, numa feroz batalha entre a arte e a fera, e assim ter salvado os amigos da floresta, foi invadido por uma súbita felicidade ao avistar ao longe a multidão ao redor do altar.Pensou se tratar da animação dos últimos preparativos do seu casamento. Sorriu.Ao chegar perto do altar, ao ver a tristeza infinita nos animais e também nos olhos do povo da floresta, pressentiu que algo estava errado e cautelosamente se aproximou da multidão.Ao deparar com o corpo de Eurídice estendido no altar e ver o seu rosto pálido como a cera,gelado, sem vida, caiu em prantos e abraçou desesperado o seu corpo.Seu choro varou a floresta, atravessou árvores, e transformado em melodia voou sobre lagos e rios. Levado por uma forte e repentina ventania subiu aos O mais dolorido dos choros, transformado na mais triste melodia, chegou ao monte Olimpo, a morada dos deuses.Zeus, comovido pelo tom plangente da melodia, ordenou a Hermes, o mensageiro dos deuses, que descesse a terra e levasse Orfeu ao mundo dos mortos. Hermes chegou à floresta de Orfeu, e transmitiu ao músico a mensagem do deus dos deuses.Zeus, convencido da força da melodia de Orfeu, acreditou que talvez ele pudesse enternecer o coração de Hades, o senhor dos infernos.Ninguém jamais conseguira tocar o coração de Hades, mas Zeus, diante da dor de Orfeu, resolveu se arriscar. Se o músico conseguisse comover ou pelo menos sensibilizar o senhor dos infernos, ele permitiria que levasse a sua amada de volta para o mundo dos vivos.Hermes acompanhou Orfeu até o barco de Caronte, o terrível barqueiro que levava as almas para o mundo subterrâneo. Orfeu levou consigo a lira, o presente de casamento que lhe daria o povo da floresta.Ao chegarem, enormes portões foram abertos.Demônios e almas medonhas guardavam a entrada daquele lugar assustador, mas Orfeu só tinha uma coisa no pensamento: reencontrar Eurídice e levar a sua alma de volta para o mundo dos vivos.Entrou.O poeta dos verdes inicia a sua descida aos infernos.Então surge diante dele, a esplendorosa visão de Hades, ao lado da esposa e companheira Perséfone, a do triste destino.Orfeu fica momentaneamente paralisado diante de tão rara e impressionante visão, pois nenhuma alma viva jamais vira Hades, porém logo em seguida começa a entoar a mais doce e profunda melodia que jamais então se ouvira.E algo estranho aconteceu.O coração de Hades foi atingido. O senhor do mundo dos mortos se comoveu. De seus olhos uma lágrima surge, imediatamente evaporada pelo calor daquele horrível lugar. Perséfone, a do triste destino, ouve em silêncio o esposo perguntar a Orfeu o que ele queria: - "Fale meu jovem, o que você quer de mim"?- "Eu vim buscar a minha amada. Quero levar de volta a alma de Eurídice para o mundo dos vivos"! disse Orfeu com determinação."Eu consinto"! - disse Hades, enquanto fazia um gesto para um demônio, para que buscasse a alma de Eurídice.- "Mas tem uma condição. Você não poderá em nenhum momento olhar para trás. Isso é um acordo. Se você olhar para trás, perderá para sempre a sua amada".Orfeu concordou e começou a caminhar em direção ao mundo dos vivos. Do lado de fora dos portões, o barco esperava por ele.Atormentada por demônios e almas prisioneiras, atrás vinha a sua Eurídice, gritando.Também demônios o atormentavam, tentavam arrancar a sua lira e o chicoteavam. Mas Orfeu seguia corajosamente, sem hesitar, e quanto mais subia em direção aos grandes portões, mais se aproximava da certeza de que breve teria de volta em seus braços a doce dançarina.Mas a sua vontade começou a fraquejar.A dúvida começou a invadir o seu coração, a incerteza começou a abalar os seus passos. Estaria realmente sendo seguido por Eurídice? Aqueles gritos não seriam apenas alucinações? A dúvida instalada em seu coração o colocou diante do precipício do perigo de se romper um acordo, e despedaçado pela dúvida, olhou para trás.No mesmo instante a alma de Eurídice se dissolveu. Em pó ao mundo dos mortos retornou.Desesperado quis voltar, tentar segurar a sua amada que desaparecia para sempre no mundo subterrâneo.Aos gritos, foi levado pelos demônios de volta para o mundo dos vivos e então se entregou ao abandono. Nunca mais quis saber do canto, entrou na mais triste solidão e se esqueceu, deitado, na mesma rocha da floresta onde um dia se sentou para construir a sua cítara, e lá ficou.Orfeu abandonado não quis ouvir ninguém, o pastor do povo da floresta tentou reanimá-lo, mas não conseguiu. Disse o pastor: "Todos nós participamos da sua dor, mas só depende de você que a tristeza se transforme em canto", mas Orfeu nada respondeu, continuou no seu silêncio gelado de pedra, deitado na rocha, transformada em leito de morte.O jovem amante cantor das florestas, decretou a eternidade do seu amor e a ele devotou seus últimos dias.Folhas choraram orvalhadas diante da sua fragilidade.Orfeu para sempre esperaria pela sua amada, na certeza de que a teria novamente nos braços e, a cada dia, foi perdendo o interesse por tudo.O jovem que com o seu canto suavizava a dor, que desceu ao mundo das trevas, passou a viver para a eternidade do seu amor.Um grupo de mulheres da Trácia, as bacantes, seguidoras da alegria, seguidoras do vinho, não suportavam a fidelidade de Orfeu para com a sua amada.Como era muito difícil para elas suportarem a fidelidade do homem Orfeu, armadas com paus e pedras mutilaram o cantor das florestas.Retalharam, trucidaram, despedaçaram atrozmente o jovem fiel.Jogaram os pedaços ao rio, e junto, a lira, que Orfeu nunca mais tocara.Seus restos, sua cabeça e a lira chegaram à ilha de Lesbos.Os poéticos habitantes da ilha prestaram-lhe as homenagens fúnebres.Edificaram um túmulo. O músico, que não conhecia fronteiras entre a vida e a morte, descansou na ilha onde a poesia habitava.Quando anoiteceu, o povo da floresta ao olhar para o céu, encontrou pela primeira vez a Constelação de Lira.
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ORFEU, recontado por MarcianoVasques
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Fonte:http://www.riototal.com.br/coojornal/lendas001.htm
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