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EU - Ego
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Não escolho, não rejeito;
nada isoladamente
existe, tudo aceito,
p' ra vero melhoramento.
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Ego é separação,
se é que tal é possível;
mas se há sua aceitação
leve, mágica é visível.
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Ego é social,
evolui, é integrado
no Eu mui eternal:
cuidado com não sagrado!
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Ego tem bom e tem mau:
mau não é p' ra integrar,
é p' ra bom realçar, Dao,
para 'fraco' ensinar!
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Tuesday, September 30, 2008
OSHO: O EGO (e o Eu) -
sex, 6 de dezembro, 2002
Um texto muito bom de Osho, ser que atingiu a iluminação aos 21 anos. Se você busca eliminar aquele que é o último apego, o último desejo, enfim, o eu inferior, então leia até o fim:
EGO, O FALSO CENTRO
O primeiro ponto a ser compreendido é o ego.
Uma criança nasce sem qualquer conhecimento, sem qualquer consciência de seu próprio eu. E quando uma criança nasce, a primeira coisa da qual ela se torna consciente não é ela mesma; a primeira coisa da qual ela se torna consciente é o outro. Isso é natural, porque os olhos se abrem para fora, as mãos tocam os outros, os ouvidos escutam os outros, a língua saboreia a comida e o nariz cheira o exterior. Todos esses sentidos abrem-se para fora. O nascimento é isso.
Nascimento significa vir a este mundo, o mundo exterior. Assim, quando uma criança nasce, ela nasce neste mundo. Ela abre seus olhos, vê aos outros. O "outro" significa o tu. Ela primeiro se torna consciente da mãe. Então, pouco a pouco, ela se torna consciente de seu próprio corpo. Este também é o outro, também pertence ao mundo. Ela está com fome e passa a sentir o corpo; quando sua necessidade é satisfeita, ela esquece o corpo.
É desta maneira que a criança cresce.
Primeiro ela se torna consciente do você, do tu, do outro, e então, pouco a pouco, contrastando com você, tu, ela se torna consciente de si mesma. Essa consciência é uma consciência refletida. Ela não está consciente de quem ela é. Ela está simplesmente consciente da mãe e do que esta pensa a seu respeito. Se a mãe sorri, se ela aprecia a criança, se diz: "Você é bonita", se ela a abraça e a beija, a criança sente-se bem a respeito de si mesma. Agora um ego está nascendo. Através da apreciação, do amor, do cuidado, ela sente que é boa, ela sente que tem valor, ela sente que tem importância. Um centro está nascendo. Mas esse centro é um centro refletido. Ela não é o ser verdadeiro. A criança não sabe quem ela é; ela simplesmente sabe o que os outros pensam a seu respeito.
E esse é o ego: o reflexo, aquilo que os outros pensam. Se ninguém pensa que ela tem alguma utilidade, se ninguém a aprecia, se ninguém lhe sorri, então, também, um ego nasce - um ego doente, triste, rejeitado, como uma ferida; sentindo-se inferior, sem valor. Isso também é o ego. Isso também é um reflexo.
Primeiro a mãe - e mãe, no início, significa o mundo. Depois os outros se juntarão à mãe, e o mundo irá crescendo. E quanto mais o mundo cresce, mais complexo o ego se torna, porque muitas opiniões dos outros são refletidas. O ego é um fenômeno acumulativo, um subproduto do viver com os outros. Se uma criança vive totalmente sozinha, ela nunca chegará a desenvolver um ego. Mas isso não vai ajudar. Ela permanecerá como um animal. Isso não significa que ela virá a conhecer o seu verdadeiro eu, não. O verdadeiro pode ser conhecido somente através do falso, portanto, o ego é uma necessidade. Temos que passar por ele. Ela é uma disciplina. O verdadeiro pode ser conhecido somente através da ilusão. Você não pode conhecer a verdade diretamente. Primeiro você tem que conhecer aquilo que não é verdadeiro. Primeiro você tem que encontrar o falso. Através desse encontro, você se torna capaz de conhecer a verdade. Se você conhece o falso como falso, a verdade nascerá em você.
O ego é uma necessidade; é uma necessidade social, é um subproduto social. A sociedade significa tudo o que está ao seu redor, não você, mas tudo aquilo que o rodeia. Tudo, menos você, é a sociedade. E todos refletem. Você irá para a escola e o professor refletirá quem você é. Você fará amizade com outras crianças e elas refletirão quem você é. Pouco a pouco, todos estão adicionando algo ao seu ego, e todos estão tentando modificá-lo, de tal forma que você não se torne um problema para a sociedade.
Eles não estão interessados em você. Eles estão interessados na sociedade.A sociedade está interessada nela mesma, e é assim que deveria ser. Ela não está interessada no fato de que você deveria se tornar um conhecedor de si mesmo. Interessa-lhe que você se torne uma peça eficiente no mecanismo da sociedade. Você deveria ajustar-se ao padrão. Assim, estão tentando dar-lhe um ego que se ajuste à sociedade. Ensinam-lhe a moralidade. Moralidade significa dar-lhe um ego que se ajustará à sociedade. Se você for imoral, você será sempre um desajustado em um lugar ou outro.
É por isso que colocamos os criminosos nas prisões - não que eles tenham feito alguma coisa errada, não que ao colocá-los nas prisões iremos melhorá-los, não. Eles simplesmente não se ajustam. Eles criam problemas. Eles têm certos tipos de egos que a sociedade não aprova. Se a sociedade aprova, tudo está bem.
Um homem mata alguém - ele é um assassino. E o mesmo homem, durante a guerra, mata milhares - e torna-se um grande herói. A sociedade não está preocupada com o homicídio, mas o homicídio deveria ser praticado para a sociedade - então tudo está bem. A sociedade não se preocupa com moralidade.
Moralidade significa simplesmente que você deve se ajustar à sociedade.
Se a sociedade estiver em guerra, a moralidade muda. Se a sociedade estiver em paz, existe uma moralidade diferente. A moralidade é uma política social. É diplomacia. E toda criança deve ser educada de tal forma que ela se ajuste à sociedade; e isso é tudo, porque a sociedade está interessada em membros eficientes. A sociedade não está interessada no fato de que você deveria chegar ao autoconhecimento. A sociedade cria um ego porque o ego pode ser controlado e manipulado. O eu nunca pode ser controlado e manipulado. Nunca se ouviu dizer que a sociedade estivesse controlando o eu - não é possível. E a criança necessita de um centro; a criança está absolutamente inconsciente de seu próprio centro. A sociedade lhe dá um centro e a criança pouco a pouco fica convencida de que este é o seu centro, o ego dado pela sociedade.
Uma criança volta para casa - se ela foi o primeiro aluno de sua classe, a família inteira fica feliz. Você a abraça e a beija, e você coloca a criança no colo e começa a dançar e diz: "Que linda criança! Você é um motivo de orgulho para nós." Você está dando um ego a ela. Um ego sutil. E se a criança chega em casa abatida, fracassada, um fiasco - ela não pode passar, ou ela tirou o último lugar - então ninguém a aprecia e a criança sente-se rejeitada. Ela tentará com mais afinco na próxima vez, porque o centro se sente abalado. O ego está sempre abalado, sempre à procura de alimento, de alguém que o aprecie. É por isso que você está continuamente pedindo atenção.
Ouvi contar:Mulla Nasrudin e sua esposa estavam saindo de uma festa, e Mulla disse:"Querida, alguma vez alguém já lhe disse que você é fascinante, linda, maravilhosa?"
Sua esposa sentiu-se muito, muito bem, ficou muito feliz. Ela disse: "Eu me pergunto por que ninguém jamais me disse isso."Nasrudin disse: "Mas então de onde você tirou essa idéia?"
Você obtém dos outros a idéia de quem você é. Não é uma experiência direta. É dos outros que você obtém a idéia de quem você é. Eles modelam o seu centro.
Esse centro é falso, porque você contém o seu centro verdadeiro. Este não é da conta de ninguém. Ninguém o modela, você vem com ele. Você nasce com ele. Assim, você tem dois centros. Um centro com o qual você vem, que lhe é dado pela própria existência. Este é o eu. E o outro centro, que lhe é dado pela sociedade - o ego. Ele é algo falso - e é um grande truque. Através do ego a sociedade está controlando você. Você tem que se comportar de uma certa maneira, porque somente então a sociedade o aprecia. Você tem que caminhar de uma certa maneira: você tem que rir de uma certa maneira; você tem que seguir determinadas condutas, uma moralidade, um código. Somente então a sociedade o apreciará, e se ela não o fizer, o seu ego ficará abalado. E quando o ego fica abalado, você já não sabe onde está, quem você é. Os outros lhe deram a idéia.
Essa idéia é o ego.
Tente entendê-lo o mais profundamente possível, porque ele tem que ser jogado fora. E a menos que você o jogue fora, nunca será capaz de alcançar o eu. Por estar viciado no centro, você não pode se mover, e você não pode olhar para o eu. E lembre-se, vai haver um período intermediário, um intervalo, quando o ego estará despedaçado, quando você não saberá quem você é, quando você não saberá para onde está indo, quando todos os limites se dissolverão. Você estará simplesmente confuso, um caos.
Devido a esse caos, você tem medo de perder o ego. Mas tem que ser assim. Temos que passar através do caos antes de atingir o centro verdadeiro. E se você for ousado, o período será curto. Se você for medroso e novamente cair no ego, e novamente começar a ajeitá-lo, então, o período pode ser muito, muito longo; muitas vidas podem ser desperdiçadas.
Ouvi dizer:Uma criancinha estava visitando seus avós. Ela tinha apenas quatro anos de idade. De noite, quando a avó a estava fazendo dormir, ela de repente começou a chorar e a gritar:"Eu quero ir para casa. Estou com medo do escuro."Mas a avó disse:"Eu sei muito bem que em sua casa você também dorme no escuro; eu nunca vi a luz acesa: Então por que você está com medo aqui?"O menino disse:"Sim, é verdade - mas aquela é a minha escuridão. Esta escuridão é completamente desconhecida."
Até mesmo com a escuridão você sente: "Esta é minha."
Do lado de fora - uma escuridão desconhecida. Com o ego você sente: "Esta é a minha escuridão." Pode ser problemática, pode criar muitos tormentos, mas ainda assim, é minha. Alguma coisa em que se segurar, alguma coisa em que se agarrar, alguma coisa sob os pés; você não está em um vácuo, não está em um vazio. Você pode ser infeliz, mas pelo menos você é.
Até mesmo o ser infeliz lhe dá uma sensação de "eu sou". Afastando-se disso, o medo toma conta; você começa a sentir medo da escuridão desconhecida e do caos - porque a sociedade conseguiu clarear uma pequena parte do seu ser... É o mesmo que penetrar em uma floresta. Você faz uma pequena clareira, você limpa um pedaço de terra, você faz um cercado, você faz uma pequena cabana; você faz um pequeno jardim, um gramado, e você sente-se bem. Além de sua cerca - a floresta, a selva. Aqui tudo está bem; você planejou tudo. Foi assim que aconteceu. A sociedade abriu uma pequena clareira em sua consciência. Ela limpou apenas uma pequena parte completamente e cercou-a. Tudo está bem ali. Todas as suas universidades estão fazendo isso. Toda a cultura e todo o condicionamento visam apenas limpar uma parte, para que você possa se sentir em casa ali.
E então você passa a sentir medo. Além da cerca existe perigo. Além da cerca você é, tal como dentro da cerca você é - e sua mente consciente é apenas uma parte, um décimo de todo o seu ser. Nove décimos estão aguardando no escuro. E dentro desses nove décimos, em algum lugar, o seu centro verdadeiro está oculto.
Precisamos ser ousados, corajosos. Precisamos dar um passo para o desconhecido.
Por um certo tempo, todos os limites ficarão perdidos.
Por um certo tempo, você vai sentir-se atordoado.
Por um certo tempo, você vai sentir-se muito amedrontado e abalado, como se tivesse havido um terremoto.
Mas se você for corajoso e não voltar para trás, se você não voltar a cair no ego, mas for sempre em frente, existe um centro oculto dentro de você, um centro que você tem carregado por muitas vidas.
Esta é a sua alma, o eu.
Uma vez que você se aproxime dele, tudo muda, tudo volta a se assentar novamente. Mas agora esse assentamento não é feito pela sociedade. Agora, tudo se torna um cosmos e não um caos; nasce uma nova ordem. Mas esta não é a ordem da sociedade - é a própria ordem da existência. É o que Buda chama de Dharma, Lao Tsé chama de Tao, Heráclito chama de Logos. Não é feita pelo homem. É a própria ordem da existência.
Então, de repente tudo volta a ficar belo, e pela primeira vez, realmente belo, porque as coisas feitas pelo homem não podem ser belas. No máximo você pode esconder a feiúra delas, isso é tudo. Você pode enfeitá-las, mas elas nunca podem ser belas. A diferença é a mesma que existe entre uma flor verdadeira e uma flor de plástico ou de papel. O ego é uma flor de plástico, morta. Não é uma flor, apenas parece com uma flor. Até mesmo lingüisticamente, chamá-la de flor está errado, porque uma flor é algo que floresce. E essa coisa de plástico é apenas uma coisa e não um florescer. Ela está morta. Não há vida nela. Você tem um centro que floresce dentro de você. Por isso os hindus o chamam de lótus - é um florescer. Chamam-no de o lótus das mil pétalas. Mil significa infinitas pétalas. O centro floresce continuamente, nunca para, nunca morre. Mas você está satisfeito com um ego de plástico. Existem algumas razões para que você esteja satisfeito. Com uma coisa morta, existem muitas vantagens. Uma é que a coisa morta nunca morre. Não pode - nunca esteve viva. Assim você pode ter flores de plástico, e de certa forma elas são boas. Elas são permanentes; não são eternas, mas são permanentes. A flor verdadeira, a flor que está lá fora no jardim, é eterna, mas não é permanente. E o eterno tem uma maneira própria de ser eterno. A maneira do eterno é nascer muitas e muitas vezes... e morrer. Através da morte, o eterno se renova, rejuvenesce.
Para nós, parece que a flor morreu - ela nunca morre. Ela simplesmente troca de corpo, assim está sempre fresca. Ela deixa o velho corpo e entra em um novo corpo. Ela floresce em algum outro lugar, nunca deixa de estar florescendo.
Mas não podemos ver a continuidade porque a continuidade é invisível. Vemos somente uma flor, outra flor; nunca vemos a continuidade. Trata-se da mesma flor que floresceu ontem. Trata-se do mesmo sol, mas em um traje diferente.
O ego tem uma certa qualidade - ele está morto. É de plástico. E é muito fácil obtê-lo, porque os outros o dão a você. Você não o precisa procurar; a busca não é necessária para ele. Por isso, a menos que você se torne um buscador à procura do desconhecido, você ainda não terá se tornado um indivíduo. Você é simplesmente uma parte da multidão. Você é apenas uma turba. Quando você não tem um centro autêntico, como você pode ser um indivíduo? O ego não é individual. O ego é um fenômeno social - ele é a sociedade, não é você. Mas ele lhe dá um papel na sociedade, uma posição na sociedade. E se você ficar satisfeito com ele, você perderá toda a oportunidade de encontrar o eu.
E por isso você é tão infeliz.
Com uma vida de plástico, como você pode ser feliz? Com uma vida falsa, como você pode ser extático e bem-aventurado? E esse ego cria muitos tormentos, milhões deles. Você não pode ver, porque se trata da sua escuridão. Você está em harmonia com ela. Você nunca reparou que todos os tipos de tormentos acontecem através do ego? Ele não o pode tornar abençoado; ele pode somente torná-lo infeliz.
O ego é o inferno.
Sempre que você estiver sofrendo, tente simplesmente observar e analisar, e você descobrirá que, em algum lugar, o ego é a causa do sofrimento. E o ego continua encontrando motivos para sofrer.
Uma vez eu estava hospedado na casa de Mulla Nasrudin. A esposa estava dizendo coisas muito desagradáveis a respeito de Mulla Nasrudin, com muita raiva, aspereza, agressividade, muito violenta, a ponto de explodir. E Mulla Nasrudin estava apenas sentado em silêncio, ouvindo. Então, de repente, ela se voltou para ele e disse: "Então, mais uma vez você está discutindo comigo!" Mulla disse: "Mas eu não disse uma única palavra!"
A esposa replicou: "Sei disso - mas você está ouvindo muito agressivamente." Você é um egoísta, como todos são. Alguns são muito grosseiros, evidentes, e estes não são tão difíceis. Outros são muito sutis, profundos, e estes são os verdadeiros problemas.
O ego entra em conflito com outros continuamente porque cada ego está extremamente inseguro de si mesmo. Tem que estar - ele é uma coisa falsa. Quando você nada tem nas mãos, mas acredita ter algo, então haverá um problema. Se alguém disser: "Não há nada", imediatamente começa a briga porque você também sente que não há nada. O outro o torna consciente desse fato. O ego é falso, ele não é nada.
E você também sabe isso.
Como você pode deixar de saber isso? É impossível! Um ser consciente - como pode ele deixar de saber que o ego é simplesmente falso? E então os outros dizem que não existe nada - e sempre que os outros dizem que não existe nada, eles batem numa ferida, eles dizem uma verdade - e nada fere tanto quanto a verdade. Você tem que se defender, porque se você não se defende, se não se torna defensivo, onde estará você?
Você estará perdido. A identidade estará rompida.
Assim, você tem que se defender e lutar - este é o conflito. Um homem que alcança o eu nunca se encontra em conflito algum. Outros podem vir e entrar em choque com ele, mas ele nunca está em conflito com ninguém.
Aconteceu de um mestre Zen estar passando por uma rua. Um homem veio correndo e o golpeou duramente. O mestre caiu. Logo se levantou e voltou a caminhar na mesma direção na qual estava indo antes, sem nem ao menos olhar para trás. Um discípulo estava com o mestre. Ele ficou simplesmente chocado. Ele disse:"Quem é esse homem? O que significa isso? Se a gente vive desta maneira, qualquer um pode vir e nos matar. E você nem ao menos olhou para aquela pessoa, quem é ela, e por que ela fez isso?"
O mestre disse: "Isso é problema dela, não meu."
Você pode entrar em choque com um iluminado, mas esse é seu problema, não dele. E se você fica ferido nesse choque, isso também é problema seu. Ele não o pode ferir. É como bater contra uma parede - você ficará machucado, mas a parede não o machucou.
O ego sempre está procurando por algum problema. Por quê?
Porque se ninguém lhe dá atenção o ego sente fome. Ele vive de atenção.
Assim, mesmo se alguém estiver brigando e com raiva de você, mesmo isso é bom, pois pelo menos você está recebendo atenção. Se alguém o ama, isso está bem. Se alguém não o está amando, então até mesmo a raiva servirá. Pelo menos a atenção chega até você. Mas se ninguém estiver lhe dando qualquer atenção, se ninguém pensa que você é alguém importante, digno de nota, então como você vai alimentar o seu ego?
A atenção dos outros é necessária.
Você atrai a atenção dos outros de milhões de maneiras; veste-se de um certo jeito, tenta parecer bonito, comporta-se bem, torna-se muito educado, transforma-se. Quando você sente o tipo de situação que está ocorrendo, você imediatamente se transforma para que as pessoas lhe dêem atenção. Esta é uma forma profunda de mendicância. Um verdadeiro mendigo é aquele que pede e exige atenção. Um verdadeiro imperador é aquele que vive em sua interioridade; ele tem um centro próprio, não depende de mais ninguém.
Buda sentado sob sua árvore Bodhi... Se o mundo inteiro de repente vier a desaparecer, isso fará alguma diferença para Buda? - nenhuma. Não fará diferença alguma, absolutamente. Se o mundo inteiro desaparecer, não fará diferença alguma porque ele atingiu o centro.
Mas você, se sua esposa foge, se ela pede divórcio, se ela o deixa por outro, você fica totalmente em pedaços - porque ela lhe dava atenção, carinho, amor, estava sempre à sua volta, ajudando-o a sentir-se alguém. Todo o seu império está perdido, você está simplesmente despedaçado. Você começa a pensar em suicídio. Por quê? Por que, se a esposa o deixa, você deveria cometer suicídio? Por que, se o marido a deixa, você deveria cometer suicídio? Porque você não tem um centro próprio. A esposa estava lhe dando o centro; o marido estava lhe dando o centro.
É assim que as pessoas existem. É assim que as pessoas se tornam dependentes umas das outras. É uma profunda escravidão. O ego tem que ser um escravo. Ele depende dos outros. E somente uma pessoa que não tenha ego é, pela primeira vez, um mestre; ela deixa de ser uma escrava. Tente entender isso. E comece a procurar o ego - não nos outros, isso não é da sua conta, mas em você. Toda vez que se sentir infeliz, imediatamente feche os olhos e tente descobrir de onde a infelicidade está vindo, e você sempre descobrirá que é o falso centro que entrou em choque com alguém.
Você esperava algo e isso não aconteceu. Você esperava algo e justamente o contrário aconteceu - seu ego fica estremecido, você fica infeliz. Simplesmente olhe, sempre que estiver infeliz, tente descobrir a razão.
As causas não estão fora de você.
A causa básica está dentro de você - mas você sempre olha para fora, você sempre pergunta:Quem está me tornando infeliz?Quem está causando minha raiva?Quem está causando minha angústia?
E se olhar para fora, você não perceberá. Simplesmente feche os olhos e olhe para dentro. A origem de toda a infelicidade, a raiva, a angústia, está oculta dentro de você; é o seu ego.
E se você encontrar a origem, será fácil ir além dela. Se você puder ver que é o seu próprio ego que lhe causa problemas, você vai preferir abandoná-lo - porque ninguém é capaz de carregar a origem da infelicidade, uma vez que a tenha entendido.
E lembre-se, não há necessidade de abandonar o ego.
Você não o pode abandonar.
Se você o tentar abandonar, estará apenas conseguindo um outro ego mais sutil, que diz: "Tornei-me humilde". Não tente ser humilde. Isso é o ego novamente; às escondidas, mas não morto.
Não tente ser humilde.
Ninguém pode tentar ser humilde e ninguém pode criar a humildade através do próprio esforço - não. Quando o ego já não existe, uma humildade vem até você. Ela não é uma criação. É uma sombra do seu verdadeiro centro.
E um homem realmente humilde não é nem humilde nem egoísta. Ele é simplesmente simples.
Ele nem ao menos se dá conta de que é humilde.
Se você se dá conta de que é humilde, o ego continua existindo. Olhe para as pessoas humildes... Existem milhões que acreditam ser muito humildes. Eles se curvam com facilidade, mas observe-as - elas são os egoístas mais sutis. Agora a humildade é a sua fonte de alimento. Elas dizem: "Eu sou humilde", e olham para você esperando que você as valorize. Gostariam que você dissesse: "Você é realmente humilde, na verdade, você é o homem mais humilde do mundo; ninguém é tão humilde quanto você." E então observe o sorriso que surge em seus rostos.
O que é o ego? O ego é uma hierarquia que diz: "Ninguém se compara a mim." Ele pode se alimentar da humildade - "Ninguém se compara a mim, sou o homem mais humilde.
Aconteceu certa vez:Um faquir - um mendigo - estava orando em uma mesquita, de madrugada, enquanto ainda estava escuro. Era um dia religioso qualquer para os muçulmanos, e ele estava orando e dizendo:"Eu não sou ninguém, eu sou o mais pobre dos pobres, o maior pecador entre os pecadores."
De repente havia mais uma pessoa orando. Era o imperador daquele país, e ele não havia percebido que havia mais alguém ali orando - estava escuro e o imperador também estava dizendo:"Eu não sou ninguém. Eu não sou nada. Eu sou apenas um vazio, um mendigo à sua porta."Quando ouviu que mais alguém estava dizendo a mesma coisa, o imperador disse:"Pare! Quem está tentando me superar? Quem é você? Como ousa dizer, diante do imperador, que você não é ninguém, quando ele está dizendo que não é ninguém?"
É assim que o ego funciona. Ele é tão sutil! Suas maneiras são tão sutis e astutas; você deve estar muito, muito alerta, somente então você o perceberá. Não tente ser humilde. Apenas tente ver que todo o tormento, toda a angústia vem através dele.
Apenas observe! Não há necessidade de o abandonar. Você não o pode abandonar. Quem o abandonará? Então o abandonador se tornará o ego. Ele sempre volta. Faça o que fizer, fique de fora, olhe, e observe. Qualquer coisa que você faça - modéstia, humildade, simplicidade - nada vai ajudar. Somente uma coisa é possível, e esta é simplesmente observar e ver que o ego é a origem de toda a infelicidade. Não diga isso. Não repita isso.
Observe.
Porque se eu disser que ele é a origem de toda a infelicidade e você repetir isso, então será inútil. Você tem que chegar a esse entendimento. Sempre que você estiver infeliz, apenas feche os olhos e não tente encontrar alguma causa externa. Tente perceber de onde está vindo essa miséria. Ela está vindo do seu próprio ego.
Se você continuamente percebe e compreende, e a compreensão de que o ego é a causa chega a se tornar profundamente enraizada, um dia você repentinamente verá que ele desapareceu. Ninguém o abandona - ninguém o pode abandonar. Você simplesmente vê; ele simplesmente desapareceu, porque a própria compreensão de que o ego é a causa de toda a infelicidade, se torna o abandonar. A própria compreensão significa o desaparecimento do ego. E você é tão brilhante em perceber o ego nos outros. Qualquer um pode ver o ego do outro. Mas quando se trata do seu, surge o problema - porque você não conhece o território, você nunca viajou por ele. Todo o caminho em direção ao divino, ao supremo, tem que passar através desse território do ego. O falso tem que ser entendido como falso. A origem da miséria tem que ser entendida como a origem da miséria - então ela simplesmente desaparece.
Quando você sabe que ele é o veneno, ele desaparece.
Quando você sabe que ele é o fogo, ele desaparece.
Quando você sabe que este é o inferno, ele desaparece.
E então você nunca diz: "Eu abandonei o ego." Então você simplesmente ri de toda esta história, dessa piada, pois você era o criador de toda a infelicidade.
Eu estava olhando alguns desenhos de Charlie Brown. Em uma cena ele está brincando com blocos, construindo uma casa com blocos de brinquedo. Ele está sentado no meio dos blocos, levantando as paredes. Chega um momento em que ele está cercado: ele levantou paredes em toda a volta. E ele começa a gritar:
"Socorro, socorro!"
Ela fez a coisa toda! Agora ele está cercado, preso. Isso é infantil, mas é justamente o que você fez. Você fez uma casa em toda a sua volta, e agora você está gritando: "Socorro, socorro!" E o tormento se torna um milhão de vezes maior - porque há os que socorrem, estando eles próprios no mesmo barco.
Aconteceu de uma mulher muito atraente ir ao psiquiatra pela primeira vez. O psiquiatra disse:"Aproxime-se, por favor."Quando ela chegou mais perto, ele simplesmente deu um salto, abraçou e beijou a mulher.Ela ficou chocada.Então ele disse:"Agora sente-se. Isso resolve o meu problema, agora, qual é o seu?"
O problema se multiplica, porque há pessoas que querem ajudar, estando no mesmo barco. E elas gostariam de ajudar, porque quando você ajuda alguém, o ego se sente muito bem, porque você é um grande salvador, um grande guru, um mestre; você está ajudando tantas pessoas! Quanto maior a multidão de seus seguidores, melhor você se sente.
Mas você está no mesmo barco - você não pode ajudar.
Pelo contrário, você prejudicará.
Pessoas que ainda têm os seus próprios problemas não podem ser de muita ajuda. Somente alguém que não tenha problemas próprios o pode ajudar. Somente então existe a clareza para ver, para ver através de você. Uma mente que não tem problemas próprios pode vê-lo, você se torna transparente. Uma mente que não tem problemas próprios pode ver através de si mesma; por isso ela torna-se capaz de ver através dos outros.
No ocidente existem muitas escolas de psicanálise, muitas escolas, e nenhuma ajuda está chegando às pessoas, mas em vez disso, causam danos. Porque as pessoas que estão ajudando as outras, ou tentando ajudar, ou pretendendo ser de ajuda, encontram-se no mesmo barco.
É difícil ver o próprio ego.
É muito fácil ver o ego dos outros. Mas esse não é o ponto, você não os pode ajudar.
Tente ver o seu próprio ego. Simplesmente observe.
Não tenha pressa de o abandonar, simplesmente observe. Quanto mais você observa, mais capaz você se torna. De repente, um dia, você simplesmente percebe que ele desapareceu. E quando ele desaparece por si mesmo, somente então ele realmente desaparece. Não existe outra maneira. Você não o pode abandonar prematuramente.
Ele cai exatamente como uma folha seca.
A árvore não está fazendo nada - apenas uma brisa, uma situação, e a folha seca simplesmente cai. A árvore nem mesmo percebe que a folha seca caiu. Ela não faz qualquer barulho, ela não faz qualquer anúncio - nada. A folha seca simplesmente cai e se despedaça no chão, apenas isso. Quando você tiver amadurecido através da compreensão, da consciência, e tiver sentido com totalidade que o ego é a causa de toda a sua infelicidade, um dia você simplesmente vê a folha seca caindo. Ela pousa no chão e morre por si mesma. Você não fez nada, portanto você não pode afirmar que você a deixou cair. Você vê que ela simplesmente desapareceu, e então o verdadeiro centro surge.
E este centro verdadeiro é a alma, o eu, o deus, a verdade, ou como o quiser chamar.
Ele é inominável, assim todos os nomes são bons.
Você pode lhe dar qualquer nome, aquele que preferir.
Extraído do livro "Além das Fronteiras da Mente"
Referência: Biografia de Osho;Osho world
Fonte:http://www.saindodamatrix.com.br/archives/2002/12/o_ego_1.html
sex, 6 de dezembro, 2002
Um texto muito bom de Osho, ser que atingiu a iluminação aos 21 anos. Se você busca eliminar aquele que é o último apego, o último desejo, enfim, o eu inferior, então leia até o fim:
EGO, O FALSO CENTRO
O primeiro ponto a ser compreendido é o ego.
Uma criança nasce sem qualquer conhecimento, sem qualquer consciência de seu próprio eu. E quando uma criança nasce, a primeira coisa da qual ela se torna consciente não é ela mesma; a primeira coisa da qual ela se torna consciente é o outro. Isso é natural, porque os olhos se abrem para fora, as mãos tocam os outros, os ouvidos escutam os outros, a língua saboreia a comida e o nariz cheira o exterior. Todos esses sentidos abrem-se para fora. O nascimento é isso.
Nascimento significa vir a este mundo, o mundo exterior. Assim, quando uma criança nasce, ela nasce neste mundo. Ela abre seus olhos, vê aos outros. O "outro" significa o tu. Ela primeiro se torna consciente da mãe. Então, pouco a pouco, ela se torna consciente de seu próprio corpo. Este também é o outro, também pertence ao mundo. Ela está com fome e passa a sentir o corpo; quando sua necessidade é satisfeita, ela esquece o corpo.
É desta maneira que a criança cresce.
Primeiro ela se torna consciente do você, do tu, do outro, e então, pouco a pouco, contrastando com você, tu, ela se torna consciente de si mesma. Essa consciência é uma consciência refletida. Ela não está consciente de quem ela é. Ela está simplesmente consciente da mãe e do que esta pensa a seu respeito. Se a mãe sorri, se ela aprecia a criança, se diz: "Você é bonita", se ela a abraça e a beija, a criança sente-se bem a respeito de si mesma. Agora um ego está nascendo. Através da apreciação, do amor, do cuidado, ela sente que é boa, ela sente que tem valor, ela sente que tem importância. Um centro está nascendo. Mas esse centro é um centro refletido. Ela não é o ser verdadeiro. A criança não sabe quem ela é; ela simplesmente sabe o que os outros pensam a seu respeito.
E esse é o ego: o reflexo, aquilo que os outros pensam. Se ninguém pensa que ela tem alguma utilidade, se ninguém a aprecia, se ninguém lhe sorri, então, também, um ego nasce - um ego doente, triste, rejeitado, como uma ferida; sentindo-se inferior, sem valor. Isso também é o ego. Isso também é um reflexo.
Primeiro a mãe - e mãe, no início, significa o mundo. Depois os outros se juntarão à mãe, e o mundo irá crescendo. E quanto mais o mundo cresce, mais complexo o ego se torna, porque muitas opiniões dos outros são refletidas. O ego é um fenômeno acumulativo, um subproduto do viver com os outros. Se uma criança vive totalmente sozinha, ela nunca chegará a desenvolver um ego. Mas isso não vai ajudar. Ela permanecerá como um animal. Isso não significa que ela virá a conhecer o seu verdadeiro eu, não. O verdadeiro pode ser conhecido somente através do falso, portanto, o ego é uma necessidade. Temos que passar por ele. Ela é uma disciplina. O verdadeiro pode ser conhecido somente através da ilusão. Você não pode conhecer a verdade diretamente. Primeiro você tem que conhecer aquilo que não é verdadeiro. Primeiro você tem que encontrar o falso. Através desse encontro, você se torna capaz de conhecer a verdade. Se você conhece o falso como falso, a verdade nascerá em você.
O ego é uma necessidade; é uma necessidade social, é um subproduto social. A sociedade significa tudo o que está ao seu redor, não você, mas tudo aquilo que o rodeia. Tudo, menos você, é a sociedade. E todos refletem. Você irá para a escola e o professor refletirá quem você é. Você fará amizade com outras crianças e elas refletirão quem você é. Pouco a pouco, todos estão adicionando algo ao seu ego, e todos estão tentando modificá-lo, de tal forma que você não se torne um problema para a sociedade.
Eles não estão interessados em você. Eles estão interessados na sociedade.A sociedade está interessada nela mesma, e é assim que deveria ser. Ela não está interessada no fato de que você deveria se tornar um conhecedor de si mesmo. Interessa-lhe que você se torne uma peça eficiente no mecanismo da sociedade. Você deveria ajustar-se ao padrão. Assim, estão tentando dar-lhe um ego que se ajuste à sociedade. Ensinam-lhe a moralidade. Moralidade significa dar-lhe um ego que se ajustará à sociedade. Se você for imoral, você será sempre um desajustado em um lugar ou outro.
É por isso que colocamos os criminosos nas prisões - não que eles tenham feito alguma coisa errada, não que ao colocá-los nas prisões iremos melhorá-los, não. Eles simplesmente não se ajustam. Eles criam problemas. Eles têm certos tipos de egos que a sociedade não aprova. Se a sociedade aprova, tudo está bem.
Um homem mata alguém - ele é um assassino. E o mesmo homem, durante a guerra, mata milhares - e torna-se um grande herói. A sociedade não está preocupada com o homicídio, mas o homicídio deveria ser praticado para a sociedade - então tudo está bem. A sociedade não se preocupa com moralidade.
Moralidade significa simplesmente que você deve se ajustar à sociedade.
Se a sociedade estiver em guerra, a moralidade muda. Se a sociedade estiver em paz, existe uma moralidade diferente. A moralidade é uma política social. É diplomacia. E toda criança deve ser educada de tal forma que ela se ajuste à sociedade; e isso é tudo, porque a sociedade está interessada em membros eficientes. A sociedade não está interessada no fato de que você deveria chegar ao autoconhecimento. A sociedade cria um ego porque o ego pode ser controlado e manipulado. O eu nunca pode ser controlado e manipulado. Nunca se ouviu dizer que a sociedade estivesse controlando o eu - não é possível. E a criança necessita de um centro; a criança está absolutamente inconsciente de seu próprio centro. A sociedade lhe dá um centro e a criança pouco a pouco fica convencida de que este é o seu centro, o ego dado pela sociedade.
Uma criança volta para casa - se ela foi o primeiro aluno de sua classe, a família inteira fica feliz. Você a abraça e a beija, e você coloca a criança no colo e começa a dançar e diz: "Que linda criança! Você é um motivo de orgulho para nós." Você está dando um ego a ela. Um ego sutil. E se a criança chega em casa abatida, fracassada, um fiasco - ela não pode passar, ou ela tirou o último lugar - então ninguém a aprecia e a criança sente-se rejeitada. Ela tentará com mais afinco na próxima vez, porque o centro se sente abalado. O ego está sempre abalado, sempre à procura de alimento, de alguém que o aprecie. É por isso que você está continuamente pedindo atenção.
Ouvi contar:Mulla Nasrudin e sua esposa estavam saindo de uma festa, e Mulla disse:"Querida, alguma vez alguém já lhe disse que você é fascinante, linda, maravilhosa?"
Sua esposa sentiu-se muito, muito bem, ficou muito feliz. Ela disse: "Eu me pergunto por que ninguém jamais me disse isso."Nasrudin disse: "Mas então de onde você tirou essa idéia?"
Você obtém dos outros a idéia de quem você é. Não é uma experiência direta. É dos outros que você obtém a idéia de quem você é. Eles modelam o seu centro.
Esse centro é falso, porque você contém o seu centro verdadeiro. Este não é da conta de ninguém. Ninguém o modela, você vem com ele. Você nasce com ele. Assim, você tem dois centros. Um centro com o qual você vem, que lhe é dado pela própria existência. Este é o eu. E o outro centro, que lhe é dado pela sociedade - o ego. Ele é algo falso - e é um grande truque. Através do ego a sociedade está controlando você. Você tem que se comportar de uma certa maneira, porque somente então a sociedade o aprecia. Você tem que caminhar de uma certa maneira: você tem que rir de uma certa maneira; você tem que seguir determinadas condutas, uma moralidade, um código. Somente então a sociedade o apreciará, e se ela não o fizer, o seu ego ficará abalado. E quando o ego fica abalado, você já não sabe onde está, quem você é. Os outros lhe deram a idéia.
Essa idéia é o ego.
Tente entendê-lo o mais profundamente possível, porque ele tem que ser jogado fora. E a menos que você o jogue fora, nunca será capaz de alcançar o eu. Por estar viciado no centro, você não pode se mover, e você não pode olhar para o eu. E lembre-se, vai haver um período intermediário, um intervalo, quando o ego estará despedaçado, quando você não saberá quem você é, quando você não saberá para onde está indo, quando todos os limites se dissolverão. Você estará simplesmente confuso, um caos.
Devido a esse caos, você tem medo de perder o ego. Mas tem que ser assim. Temos que passar através do caos antes de atingir o centro verdadeiro. E se você for ousado, o período será curto. Se você for medroso e novamente cair no ego, e novamente começar a ajeitá-lo, então, o período pode ser muito, muito longo; muitas vidas podem ser desperdiçadas.
Ouvi dizer:Uma criancinha estava visitando seus avós. Ela tinha apenas quatro anos de idade. De noite, quando a avó a estava fazendo dormir, ela de repente começou a chorar e a gritar:"Eu quero ir para casa. Estou com medo do escuro."Mas a avó disse:"Eu sei muito bem que em sua casa você também dorme no escuro; eu nunca vi a luz acesa: Então por que você está com medo aqui?"O menino disse:"Sim, é verdade - mas aquela é a minha escuridão. Esta escuridão é completamente desconhecida."
Até mesmo com a escuridão você sente: "Esta é minha."
Do lado de fora - uma escuridão desconhecida. Com o ego você sente: "Esta é a minha escuridão." Pode ser problemática, pode criar muitos tormentos, mas ainda assim, é minha. Alguma coisa em que se segurar, alguma coisa em que se agarrar, alguma coisa sob os pés; você não está em um vácuo, não está em um vazio. Você pode ser infeliz, mas pelo menos você é.
Até mesmo o ser infeliz lhe dá uma sensação de "eu sou". Afastando-se disso, o medo toma conta; você começa a sentir medo da escuridão desconhecida e do caos - porque a sociedade conseguiu clarear uma pequena parte do seu ser... É o mesmo que penetrar em uma floresta. Você faz uma pequena clareira, você limpa um pedaço de terra, você faz um cercado, você faz uma pequena cabana; você faz um pequeno jardim, um gramado, e você sente-se bem. Além de sua cerca - a floresta, a selva. Aqui tudo está bem; você planejou tudo. Foi assim que aconteceu. A sociedade abriu uma pequena clareira em sua consciência. Ela limpou apenas uma pequena parte completamente e cercou-a. Tudo está bem ali. Todas as suas universidades estão fazendo isso. Toda a cultura e todo o condicionamento visam apenas limpar uma parte, para que você possa se sentir em casa ali.
E então você passa a sentir medo. Além da cerca existe perigo. Além da cerca você é, tal como dentro da cerca você é - e sua mente consciente é apenas uma parte, um décimo de todo o seu ser. Nove décimos estão aguardando no escuro. E dentro desses nove décimos, em algum lugar, o seu centro verdadeiro está oculto.
Precisamos ser ousados, corajosos. Precisamos dar um passo para o desconhecido.
Por um certo tempo, todos os limites ficarão perdidos.
Por um certo tempo, você vai sentir-se atordoado.
Por um certo tempo, você vai sentir-se muito amedrontado e abalado, como se tivesse havido um terremoto.
Mas se você for corajoso e não voltar para trás, se você não voltar a cair no ego, mas for sempre em frente, existe um centro oculto dentro de você, um centro que você tem carregado por muitas vidas.
Esta é a sua alma, o eu.
Uma vez que você se aproxime dele, tudo muda, tudo volta a se assentar novamente. Mas agora esse assentamento não é feito pela sociedade. Agora, tudo se torna um cosmos e não um caos; nasce uma nova ordem. Mas esta não é a ordem da sociedade - é a própria ordem da existência. É o que Buda chama de Dharma, Lao Tsé chama de Tao, Heráclito chama de Logos. Não é feita pelo homem. É a própria ordem da existência.
Então, de repente tudo volta a ficar belo, e pela primeira vez, realmente belo, porque as coisas feitas pelo homem não podem ser belas. No máximo você pode esconder a feiúra delas, isso é tudo. Você pode enfeitá-las, mas elas nunca podem ser belas. A diferença é a mesma que existe entre uma flor verdadeira e uma flor de plástico ou de papel. O ego é uma flor de plástico, morta. Não é uma flor, apenas parece com uma flor. Até mesmo lingüisticamente, chamá-la de flor está errado, porque uma flor é algo que floresce. E essa coisa de plástico é apenas uma coisa e não um florescer. Ela está morta. Não há vida nela. Você tem um centro que floresce dentro de você. Por isso os hindus o chamam de lótus - é um florescer. Chamam-no de o lótus das mil pétalas. Mil significa infinitas pétalas. O centro floresce continuamente, nunca para, nunca morre. Mas você está satisfeito com um ego de plástico. Existem algumas razões para que você esteja satisfeito. Com uma coisa morta, existem muitas vantagens. Uma é que a coisa morta nunca morre. Não pode - nunca esteve viva. Assim você pode ter flores de plástico, e de certa forma elas são boas. Elas são permanentes; não são eternas, mas são permanentes. A flor verdadeira, a flor que está lá fora no jardim, é eterna, mas não é permanente. E o eterno tem uma maneira própria de ser eterno. A maneira do eterno é nascer muitas e muitas vezes... e morrer. Através da morte, o eterno se renova, rejuvenesce.
Para nós, parece que a flor morreu - ela nunca morre. Ela simplesmente troca de corpo, assim está sempre fresca. Ela deixa o velho corpo e entra em um novo corpo. Ela floresce em algum outro lugar, nunca deixa de estar florescendo.
Mas não podemos ver a continuidade porque a continuidade é invisível. Vemos somente uma flor, outra flor; nunca vemos a continuidade. Trata-se da mesma flor que floresceu ontem. Trata-se do mesmo sol, mas em um traje diferente.
O ego tem uma certa qualidade - ele está morto. É de plástico. E é muito fácil obtê-lo, porque os outros o dão a você. Você não o precisa procurar; a busca não é necessária para ele. Por isso, a menos que você se torne um buscador à procura do desconhecido, você ainda não terá se tornado um indivíduo. Você é simplesmente uma parte da multidão. Você é apenas uma turba. Quando você não tem um centro autêntico, como você pode ser um indivíduo? O ego não é individual. O ego é um fenômeno social - ele é a sociedade, não é você. Mas ele lhe dá um papel na sociedade, uma posição na sociedade. E se você ficar satisfeito com ele, você perderá toda a oportunidade de encontrar o eu.
E por isso você é tão infeliz.
Com uma vida de plástico, como você pode ser feliz? Com uma vida falsa, como você pode ser extático e bem-aventurado? E esse ego cria muitos tormentos, milhões deles. Você não pode ver, porque se trata da sua escuridão. Você está em harmonia com ela. Você nunca reparou que todos os tipos de tormentos acontecem através do ego? Ele não o pode tornar abençoado; ele pode somente torná-lo infeliz.
O ego é o inferno.
Sempre que você estiver sofrendo, tente simplesmente observar e analisar, e você descobrirá que, em algum lugar, o ego é a causa do sofrimento. E o ego continua encontrando motivos para sofrer.
Uma vez eu estava hospedado na casa de Mulla Nasrudin. A esposa estava dizendo coisas muito desagradáveis a respeito de Mulla Nasrudin, com muita raiva, aspereza, agressividade, muito violenta, a ponto de explodir. E Mulla Nasrudin estava apenas sentado em silêncio, ouvindo. Então, de repente, ela se voltou para ele e disse: "Então, mais uma vez você está discutindo comigo!" Mulla disse: "Mas eu não disse uma única palavra!"
A esposa replicou: "Sei disso - mas você está ouvindo muito agressivamente." Você é um egoísta, como todos são. Alguns são muito grosseiros, evidentes, e estes não são tão difíceis. Outros são muito sutis, profundos, e estes são os verdadeiros problemas.
O ego entra em conflito com outros continuamente porque cada ego está extremamente inseguro de si mesmo. Tem que estar - ele é uma coisa falsa. Quando você nada tem nas mãos, mas acredita ter algo, então haverá um problema. Se alguém disser: "Não há nada", imediatamente começa a briga porque você também sente que não há nada. O outro o torna consciente desse fato. O ego é falso, ele não é nada.
E você também sabe isso.
Como você pode deixar de saber isso? É impossível! Um ser consciente - como pode ele deixar de saber que o ego é simplesmente falso? E então os outros dizem que não existe nada - e sempre que os outros dizem que não existe nada, eles batem numa ferida, eles dizem uma verdade - e nada fere tanto quanto a verdade. Você tem que se defender, porque se você não se defende, se não se torna defensivo, onde estará você?
Você estará perdido. A identidade estará rompida.
Assim, você tem que se defender e lutar - este é o conflito. Um homem que alcança o eu nunca se encontra em conflito algum. Outros podem vir e entrar em choque com ele, mas ele nunca está em conflito com ninguém.
Aconteceu de um mestre Zen estar passando por uma rua. Um homem veio correndo e o golpeou duramente. O mestre caiu. Logo se levantou e voltou a caminhar na mesma direção na qual estava indo antes, sem nem ao menos olhar para trás. Um discípulo estava com o mestre. Ele ficou simplesmente chocado. Ele disse:"Quem é esse homem? O que significa isso? Se a gente vive desta maneira, qualquer um pode vir e nos matar. E você nem ao menos olhou para aquela pessoa, quem é ela, e por que ela fez isso?"
O mestre disse: "Isso é problema dela, não meu."
Você pode entrar em choque com um iluminado, mas esse é seu problema, não dele. E se você fica ferido nesse choque, isso também é problema seu. Ele não o pode ferir. É como bater contra uma parede - você ficará machucado, mas a parede não o machucou.
O ego sempre está procurando por algum problema. Por quê?
Porque se ninguém lhe dá atenção o ego sente fome. Ele vive de atenção.
Assim, mesmo se alguém estiver brigando e com raiva de você, mesmo isso é bom, pois pelo menos você está recebendo atenção. Se alguém o ama, isso está bem. Se alguém não o está amando, então até mesmo a raiva servirá. Pelo menos a atenção chega até você. Mas se ninguém estiver lhe dando qualquer atenção, se ninguém pensa que você é alguém importante, digno de nota, então como você vai alimentar o seu ego?
A atenção dos outros é necessária.
Você atrai a atenção dos outros de milhões de maneiras; veste-se de um certo jeito, tenta parecer bonito, comporta-se bem, torna-se muito educado, transforma-se. Quando você sente o tipo de situação que está ocorrendo, você imediatamente se transforma para que as pessoas lhe dêem atenção. Esta é uma forma profunda de mendicância. Um verdadeiro mendigo é aquele que pede e exige atenção. Um verdadeiro imperador é aquele que vive em sua interioridade; ele tem um centro próprio, não depende de mais ninguém.
Buda sentado sob sua árvore Bodhi... Se o mundo inteiro de repente vier a desaparecer, isso fará alguma diferença para Buda? - nenhuma. Não fará diferença alguma, absolutamente. Se o mundo inteiro desaparecer, não fará diferença alguma porque ele atingiu o centro.
Mas você, se sua esposa foge, se ela pede divórcio, se ela o deixa por outro, você fica totalmente em pedaços - porque ela lhe dava atenção, carinho, amor, estava sempre à sua volta, ajudando-o a sentir-se alguém. Todo o seu império está perdido, você está simplesmente despedaçado. Você começa a pensar em suicídio. Por quê? Por que, se a esposa o deixa, você deveria cometer suicídio? Por que, se o marido a deixa, você deveria cometer suicídio? Porque você não tem um centro próprio. A esposa estava lhe dando o centro; o marido estava lhe dando o centro.
É assim que as pessoas existem. É assim que as pessoas se tornam dependentes umas das outras. É uma profunda escravidão. O ego tem que ser um escravo. Ele depende dos outros. E somente uma pessoa que não tenha ego é, pela primeira vez, um mestre; ela deixa de ser uma escrava. Tente entender isso. E comece a procurar o ego - não nos outros, isso não é da sua conta, mas em você. Toda vez que se sentir infeliz, imediatamente feche os olhos e tente descobrir de onde a infelicidade está vindo, e você sempre descobrirá que é o falso centro que entrou em choque com alguém.
Você esperava algo e isso não aconteceu. Você esperava algo e justamente o contrário aconteceu - seu ego fica estremecido, você fica infeliz. Simplesmente olhe, sempre que estiver infeliz, tente descobrir a razão.
As causas não estão fora de você.
A causa básica está dentro de você - mas você sempre olha para fora, você sempre pergunta:Quem está me tornando infeliz?Quem está causando minha raiva?Quem está causando minha angústia?
E se olhar para fora, você não perceberá. Simplesmente feche os olhos e olhe para dentro. A origem de toda a infelicidade, a raiva, a angústia, está oculta dentro de você; é o seu ego.
E se você encontrar a origem, será fácil ir além dela. Se você puder ver que é o seu próprio ego que lhe causa problemas, você vai preferir abandoná-lo - porque ninguém é capaz de carregar a origem da infelicidade, uma vez que a tenha entendido.
E lembre-se, não há necessidade de abandonar o ego.
Você não o pode abandonar.
Se você o tentar abandonar, estará apenas conseguindo um outro ego mais sutil, que diz: "Tornei-me humilde". Não tente ser humilde. Isso é o ego novamente; às escondidas, mas não morto.
Não tente ser humilde.
Ninguém pode tentar ser humilde e ninguém pode criar a humildade através do próprio esforço - não. Quando o ego já não existe, uma humildade vem até você. Ela não é uma criação. É uma sombra do seu verdadeiro centro.
E um homem realmente humilde não é nem humilde nem egoísta. Ele é simplesmente simples.
Ele nem ao menos se dá conta de que é humilde.
Se você se dá conta de que é humilde, o ego continua existindo. Olhe para as pessoas humildes... Existem milhões que acreditam ser muito humildes. Eles se curvam com facilidade, mas observe-as - elas são os egoístas mais sutis. Agora a humildade é a sua fonte de alimento. Elas dizem: "Eu sou humilde", e olham para você esperando que você as valorize. Gostariam que você dissesse: "Você é realmente humilde, na verdade, você é o homem mais humilde do mundo; ninguém é tão humilde quanto você." E então observe o sorriso que surge em seus rostos.
O que é o ego? O ego é uma hierarquia que diz: "Ninguém se compara a mim." Ele pode se alimentar da humildade - "Ninguém se compara a mim, sou o homem mais humilde.
Aconteceu certa vez:Um faquir - um mendigo - estava orando em uma mesquita, de madrugada, enquanto ainda estava escuro. Era um dia religioso qualquer para os muçulmanos, e ele estava orando e dizendo:"Eu não sou ninguém, eu sou o mais pobre dos pobres, o maior pecador entre os pecadores."
De repente havia mais uma pessoa orando. Era o imperador daquele país, e ele não havia percebido que havia mais alguém ali orando - estava escuro e o imperador também estava dizendo:"Eu não sou ninguém. Eu não sou nada. Eu sou apenas um vazio, um mendigo à sua porta."Quando ouviu que mais alguém estava dizendo a mesma coisa, o imperador disse:"Pare! Quem está tentando me superar? Quem é você? Como ousa dizer, diante do imperador, que você não é ninguém, quando ele está dizendo que não é ninguém?"
É assim que o ego funciona. Ele é tão sutil! Suas maneiras são tão sutis e astutas; você deve estar muito, muito alerta, somente então você o perceberá. Não tente ser humilde. Apenas tente ver que todo o tormento, toda a angústia vem através dele.
Apenas observe! Não há necessidade de o abandonar. Você não o pode abandonar. Quem o abandonará? Então o abandonador se tornará o ego. Ele sempre volta. Faça o que fizer, fique de fora, olhe, e observe. Qualquer coisa que você faça - modéstia, humildade, simplicidade - nada vai ajudar. Somente uma coisa é possível, e esta é simplesmente observar e ver que o ego é a origem de toda a infelicidade. Não diga isso. Não repita isso.
Observe.
Porque se eu disser que ele é a origem de toda a infelicidade e você repetir isso, então será inútil. Você tem que chegar a esse entendimento. Sempre que você estiver infeliz, apenas feche os olhos e não tente encontrar alguma causa externa. Tente perceber de onde está vindo essa miséria. Ela está vindo do seu próprio ego.
Se você continuamente percebe e compreende, e a compreensão de que o ego é a causa chega a se tornar profundamente enraizada, um dia você repentinamente verá que ele desapareceu. Ninguém o abandona - ninguém o pode abandonar. Você simplesmente vê; ele simplesmente desapareceu, porque a própria compreensão de que o ego é a causa de toda a infelicidade, se torna o abandonar. A própria compreensão significa o desaparecimento do ego. E você é tão brilhante em perceber o ego nos outros. Qualquer um pode ver o ego do outro. Mas quando se trata do seu, surge o problema - porque você não conhece o território, você nunca viajou por ele. Todo o caminho em direção ao divino, ao supremo, tem que passar através desse território do ego. O falso tem que ser entendido como falso. A origem da miséria tem que ser entendida como a origem da miséria - então ela simplesmente desaparece.
Quando você sabe que ele é o veneno, ele desaparece.
Quando você sabe que ele é o fogo, ele desaparece.
Quando você sabe que este é o inferno, ele desaparece.
E então você nunca diz: "Eu abandonei o ego." Então você simplesmente ri de toda esta história, dessa piada, pois você era o criador de toda a infelicidade.
Eu estava olhando alguns desenhos de Charlie Brown. Em uma cena ele está brincando com blocos, construindo uma casa com blocos de brinquedo. Ele está sentado no meio dos blocos, levantando as paredes. Chega um momento em que ele está cercado: ele levantou paredes em toda a volta. E ele começa a gritar:
"Socorro, socorro!"
Ela fez a coisa toda! Agora ele está cercado, preso. Isso é infantil, mas é justamente o que você fez. Você fez uma casa em toda a sua volta, e agora você está gritando: "Socorro, socorro!" E o tormento se torna um milhão de vezes maior - porque há os que socorrem, estando eles próprios no mesmo barco.
Aconteceu de uma mulher muito atraente ir ao psiquiatra pela primeira vez. O psiquiatra disse:"Aproxime-se, por favor."Quando ela chegou mais perto, ele simplesmente deu um salto, abraçou e beijou a mulher.Ela ficou chocada.Então ele disse:"Agora sente-se. Isso resolve o meu problema, agora, qual é o seu?"
O problema se multiplica, porque há pessoas que querem ajudar, estando no mesmo barco. E elas gostariam de ajudar, porque quando você ajuda alguém, o ego se sente muito bem, porque você é um grande salvador, um grande guru, um mestre; você está ajudando tantas pessoas! Quanto maior a multidão de seus seguidores, melhor você se sente.
Mas você está no mesmo barco - você não pode ajudar.
Pelo contrário, você prejudicará.
Pessoas que ainda têm os seus próprios problemas não podem ser de muita ajuda. Somente alguém que não tenha problemas próprios o pode ajudar. Somente então existe a clareza para ver, para ver através de você. Uma mente que não tem problemas próprios pode vê-lo, você se torna transparente. Uma mente que não tem problemas próprios pode ver através de si mesma; por isso ela torna-se capaz de ver através dos outros.
No ocidente existem muitas escolas de psicanálise, muitas escolas, e nenhuma ajuda está chegando às pessoas, mas em vez disso, causam danos. Porque as pessoas que estão ajudando as outras, ou tentando ajudar, ou pretendendo ser de ajuda, encontram-se no mesmo barco.
É difícil ver o próprio ego.
É muito fácil ver o ego dos outros. Mas esse não é o ponto, você não os pode ajudar.
Tente ver o seu próprio ego. Simplesmente observe.
Não tenha pressa de o abandonar, simplesmente observe. Quanto mais você observa, mais capaz você se torna. De repente, um dia, você simplesmente percebe que ele desapareceu. E quando ele desaparece por si mesmo, somente então ele realmente desaparece. Não existe outra maneira. Você não o pode abandonar prematuramente.
Ele cai exatamente como uma folha seca.
A árvore não está fazendo nada - apenas uma brisa, uma situação, e a folha seca simplesmente cai. A árvore nem mesmo percebe que a folha seca caiu. Ela não faz qualquer barulho, ela não faz qualquer anúncio - nada. A folha seca simplesmente cai e se despedaça no chão, apenas isso. Quando você tiver amadurecido através da compreensão, da consciência, e tiver sentido com totalidade que o ego é a causa de toda a sua infelicidade, um dia você simplesmente vê a folha seca caindo. Ela pousa no chão e morre por si mesma. Você não fez nada, portanto você não pode afirmar que você a deixou cair. Você vê que ela simplesmente desapareceu, e então o verdadeiro centro surge.
E este centro verdadeiro é a alma, o eu, o deus, a verdade, ou como o quiser chamar.
Ele é inominável, assim todos os nomes são bons.
Você pode lhe dar qualquer nome, aquele que preferir.
Extraído do livro "Além das Fronteiras da Mente"
Referência: Biografia de Osho;Osho world
Fonte:http://www.saindodamatrix.com.br/archives/2002/12/o_ego_1.html
A perequação compensatória dos encargos e benefícios do planeamento urbanístico:
http://www.vscf.net/docs/036EHSF1.pdf
http://www.vscf.net/docs/036EHSF1.pdf
Monday, September 29, 2008
Sunday, September 28, 2008
Friday, September 26, 2008
.
VITÁLIA
.
Uma energia vital,
a extinguir ou a vitalizar,
é o que nós somos: imortal,
se, perfeita, se entronizar!
.
Um misto de tudo, não é
o que temos de ser, Grácia?
Se na mercearia farmácia
há, nesta haja Metagripe, Zé!
.
CONSERVEMOS!
.
"Vistoria ad perpetuam
rei memoriam", presidente,
lembra, regista, mui previdente,
objecto da discórdia: actuam
.
assim os superiores, agradando
a ambos(as), mas, haja dinâmica:
capital p' rá Coimbra adâmica,
inferiores! A todos amando!
.
Tão bom recordar doces momentos,
em verdes, regados locais...
Em aconchegadas paredes, sem ais...
Conservemos! Não aos esquecimentos!
.
Dom vem com apurada atenção
primordial, a inteligência
verdadeira: não temas, Paciência;
nem desmanches prazeres, oh Sião!
VITÁLIA
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Uma energia vital,
a extinguir ou a vitalizar,
é o que nós somos: imortal,
se, perfeita, se entronizar!
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Um misto de tudo, não é
o que temos de ser, Grácia?
Se na mercearia farmácia
há, nesta haja Metagripe, Zé!
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CONSERVEMOS!
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"Vistoria ad perpetuam
rei memoriam", presidente,
lembra, regista, mui previdente,
objecto da discórdia: actuam
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assim os superiores, agradando
a ambos(as), mas, haja dinâmica:
capital p' rá Coimbra adâmica,
inferiores! A todos amando!
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Tão bom recordar doces momentos,
em verdes, regados locais...
Em aconchegadas paredes, sem ais...
Conservemos! Não aos esquecimentos!
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Dom vem com apurada atenção
primordial, a inteligência
verdadeira: não temas, Paciência;
nem desmanches prazeres, oh Sião!
Sabedoria
" A mente racional pode ser um instrumento útil e extraordinário, mas também muito limitativo quando se apodera completamente da vida e o impede de ver que a mente não passa de um aspecto bastante diminuto da consciência que nós somos. A sabedoria não é um produto do pensamento. A sabedoria é o conhecimento profundo que advém do simples gesto de se dar toda a atenção a alguém ou a alguma coisa. A atenção é a inteligência primordial, a própria consciência. Derruba as barreiras criadas pelo pensamento conceptual e, assim, surge o reconhecimento de que nada existe em si e por si mesmo. Reúne aquele que percebe e aquilo(aquela) que é percebido, o sujeito e o objecto do conhecimento, num campo unificado de consciência, curando essa separação.Sempre que nos enredamos em pensamentos compulsivos, estamos a evitar aquilo que é, a realidade tal como ela é. Não queremos estar onde estamos. Aqui, Agora.Os dogmas - religiosos, políticos ou científicos - surgem da crença errada de que o pensamento pode enclausurar a realidade ou a verdade. Os dogmas são prisões conceptuais colectivas. E o mais estranho é que as pessoas adoram as suas celas, porque elas lhe oferecem uma sensação de segurança e uma falsa impressão de que 'sabem'.Não há nada que tenha infligido mais sofrimento à humanidade do que os dogmas (verdades consideradas absolutas e imutáveis). É verdade que, mais tarde ou mais cedo, acabam todos por se desmoronar, porque, nalgum momento, a realidade irá desmascarar a sua falsidade; contudo, os dogmas acabarão por ser substituídos por outros, a não ser que sejam vistos como o erro básico que são.Qual é o erro básico? A identificação com o pensamento racional.O despertar espiritual é o acordar da sonho da racionalidade.O domínio da consciência é muito mais vasto do que aquilo que o pensamento poderá alcançar. Quando deixar de acreditar em todos os seus pensamentos, sairá dessa esfera de racionalidade e perceberá inequivocamente que aquele ser que pensa não corresponde à sua verdadeira identidade.Para a mente nada é suficiente e, por isso, ela encontra-se sempre ávida de mais alguma coisa. Quando nos identificamos com a mente, ficamos entediados ou irrequietos com muita facilidade. O tédio significa que a mente está faminta de mais estímulos, de mais alimento para o pensamento, e que a sua fome não está a ser saciada.Quando se sentir aborrecido(a) poderá satisfazer o apetite da sua mente pegando numa revista, fazendo um telefonema, ligando a televisão, navegando na net, indo às compras, ou - o que não é invulgar, transferindo para o corpo essa impressão mental de carência e de necessidade de MAIS, e satisfazendo-as momentaneamente ingerindo mais comida.Ou, então, poderá continuar entediada(o) e irrequieto, e ver qual é a sensação de se estar assim. Logo que tomar consciência desses sentimentos, passará a haver subitamente algum espaço e serenidade em redor deles, por assim dizer. Apenas um pouco no princípio, mas, à medida que a sensação de espaço interor cresce, o enfadamento começará a perder intensidade e importância. Deste modo, até mesmo o tédio poderá ajudá-lo a saber qual é a sua verdadeira identidade e qual não é. (não é portanto bem: 'penso, logo existo', mas muito mais: 'penso, sinto, vejo, ouço, saboreio, cheiro..., logo existo' ). O tédio é simplesmente um impulso condiconado de energia dentro de si. Não é uma pessoa zangada, nem triste, nem amedrontada. O tédio, a raiva, a tristeza ou o medo não nos pertecem, não são nossos exclusivos. São caraterísticas da mente humana. Vão e vêm...."
In: pgs. 27 a 31 de: A VOZ DA SERENIDADE, de Echart Tolle, da Pergaminho, Lisboa
" A mente racional pode ser um instrumento útil e extraordinário, mas também muito limitativo quando se apodera completamente da vida e o impede de ver que a mente não passa de um aspecto bastante diminuto da consciência que nós somos. A sabedoria não é um produto do pensamento. A sabedoria é o conhecimento profundo que advém do simples gesto de se dar toda a atenção a alguém ou a alguma coisa. A atenção é a inteligência primordial, a própria consciência. Derruba as barreiras criadas pelo pensamento conceptual e, assim, surge o reconhecimento de que nada existe em si e por si mesmo. Reúne aquele que percebe e aquilo(aquela) que é percebido, o sujeito e o objecto do conhecimento, num campo unificado de consciência, curando essa separação.Sempre que nos enredamos em pensamentos compulsivos, estamos a evitar aquilo que é, a realidade tal como ela é. Não queremos estar onde estamos. Aqui, Agora.Os dogmas - religiosos, políticos ou científicos - surgem da crença errada de que o pensamento pode enclausurar a realidade ou a verdade. Os dogmas são prisões conceptuais colectivas. E o mais estranho é que as pessoas adoram as suas celas, porque elas lhe oferecem uma sensação de segurança e uma falsa impressão de que 'sabem'.Não há nada que tenha infligido mais sofrimento à humanidade do que os dogmas (verdades consideradas absolutas e imutáveis). É verdade que, mais tarde ou mais cedo, acabam todos por se desmoronar, porque, nalgum momento, a realidade irá desmascarar a sua falsidade; contudo, os dogmas acabarão por ser substituídos por outros, a não ser que sejam vistos como o erro básico que são.Qual é o erro básico? A identificação com o pensamento racional.O despertar espiritual é o acordar da sonho da racionalidade.O domínio da consciência é muito mais vasto do que aquilo que o pensamento poderá alcançar. Quando deixar de acreditar em todos os seus pensamentos, sairá dessa esfera de racionalidade e perceberá inequivocamente que aquele ser que pensa não corresponde à sua verdadeira identidade.Para a mente nada é suficiente e, por isso, ela encontra-se sempre ávida de mais alguma coisa. Quando nos identificamos com a mente, ficamos entediados ou irrequietos com muita facilidade. O tédio significa que a mente está faminta de mais estímulos, de mais alimento para o pensamento, e que a sua fome não está a ser saciada.Quando se sentir aborrecido(a) poderá satisfazer o apetite da sua mente pegando numa revista, fazendo um telefonema, ligando a televisão, navegando na net, indo às compras, ou - o que não é invulgar, transferindo para o corpo essa impressão mental de carência e de necessidade de MAIS, e satisfazendo-as momentaneamente ingerindo mais comida.Ou, então, poderá continuar entediada(o) e irrequieto, e ver qual é a sensação de se estar assim. Logo que tomar consciência desses sentimentos, passará a haver subitamente algum espaço e serenidade em redor deles, por assim dizer. Apenas um pouco no princípio, mas, à medida que a sensação de espaço interor cresce, o enfadamento começará a perder intensidade e importância. Deste modo, até mesmo o tédio poderá ajudá-lo a saber qual é a sua verdadeira identidade e qual não é. (não é portanto bem: 'penso, logo existo', mas muito mais: 'penso, sinto, vejo, ouço, saboreio, cheiro..., logo existo' ). O tédio é simplesmente um impulso condiconado de energia dentro de si. Não é uma pessoa zangada, nem triste, nem amedrontada. O tédio, a raiva, a tristeza ou o medo não nos pertecem, não são nossos exclusivos. São caraterísticas da mente humana. Vão e vêm...."
In: pgs. 27 a 31 de: A VOZ DA SERENIDADE, de Echart Tolle, da Pergaminho, Lisboa
Thursday, September 25, 2008
.
MAGUI
.
Algo de verdadeiramente
novo, bom, mesmo excelente,
todos queremos: casa quente
no Inverno, fresca no Quente!
.
Povoamento, entendimento,
dependências, equipamento,
sedentarismo e movimento,
criação, comemoramento!
.
Atenção é presença, Magui:
mais do que de grande Q. I.,
precisamos também de ti,
para a não distracção, F.M.I!
MAGUI
.
Algo de verdadeiramente
novo, bom, mesmo excelente,
todos queremos: casa quente
no Inverno, fresca no Quente!
.
Povoamento, entendimento,
dependências, equipamento,
sedentarismo e movimento,
criação, comemoramento!
.
Atenção é presença, Magui:
mais do que de grande Q. I.,
precisamos também de ti,
para a não distracção, F.M.I!
.
ORIGINALIDADE
.
No que sabemos e fazemos
que outros não sabem
nem fazem é onde nós temos
originalidade: cabem
.
todas as coisas em tais acções
que, são por isso bem perfeitas.
Não têm eu, vêm das visões
do Todo, não alimentam seitas.
.
São produto do todo, não
de nós, e, ao todo amparam.
Vêm da Fonte eterna, são
belas, nada há que não sarem!
.
Planos de ordenamento,
de 'stabilidade, crescimento,
da terra e do cimento,
e do ar: haja entendimento!
.
Tu, oh verde, que não me largas,
olha que há muitas mais cores:
a mim me ganhas, mas mais amargas
cores te esperam ao me depores!
.
Aprender é estar atento,
muito atento; mas, malvados
viram, torcem tudo, oh Bento;
mas, se mudam são perdoados.
.
Somos parte do todo que sexo
também é, e, é cor e som
e sabor... Que falta de nexo
ser desmancha prazeres, Tom!
.
Coitados, querem interferir
em tudo, e, não têm nada,
não cuidam de ninguém: ir
à perdição é seu ir, Ada.
.
Echart, Buda, Cristo... Não
basta eliminar dor... Sim,
é preciso prazer total, são,
da Vida, não da morte, Quim!
.
ORIGINALIDADE
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No que sabemos e fazemos
que outros não sabem
nem fazem é onde nós temos
originalidade: cabem
.
todas as coisas em tais acções
que, são por isso bem perfeitas.
Não têm eu, vêm das visões
do Todo, não alimentam seitas.
.
São produto do todo, não
de nós, e, ao todo amparam.
Vêm da Fonte eterna, são
belas, nada há que não sarem!
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Planos de ordenamento,
de 'stabilidade, crescimento,
da terra e do cimento,
e do ar: haja entendimento!
.
Tu, oh verde, que não me largas,
olha que há muitas mais cores:
a mim me ganhas, mas mais amargas
cores te esperam ao me depores!
.
Aprender é estar atento,
muito atento; mas, malvados
viram, torcem tudo, oh Bento;
mas, se mudam são perdoados.
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Somos parte do todo que sexo
também é, e, é cor e som
e sabor... Que falta de nexo
ser desmancha prazeres, Tom!
.
Coitados, querem interferir
em tudo, e, não têm nada,
não cuidam de ninguém: ir
à perdição é seu ir, Ada.
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Echart, Buda, Cristo... Não
basta eliminar dor... Sim,
é preciso prazer total, são,
da Vida, não da morte, Quim!
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Wednesday, September 24, 2008
.
AGORA.
.
Que momento!
Sem fermento,
constantemente atento,
totalmente inteligente,
unido 'té com indigente,
a fim de, ricamente,
(ah, que belo, amigo,
aquele pequenino formigo!),
satisfatoriamente,
orgasticamente,
numa só mente,
não reactivamente,
em cooperação,
não em oposição,
a fim de, instituir
convosco, e intuir,
o bem estar geral:
não vais a hospital:
médico quer cura
também, como cura!
Não vamos criticar!
Não nos vamos queixar!
Vamo-nos libertar
da prisão conceptual
do eu extremista!
AGORA.
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Que momento!
Sem fermento,
constantemente atento,
totalmente inteligente,
unido 'té com indigente,
a fim de, ricamente,
(ah, que belo, amigo,
aquele pequenino formigo!),
satisfatoriamente,
orgasticamente,
numa só mente,
não reactivamente,
em cooperação,
não em oposição,
a fim de, instituir
convosco, e intuir,
o bem estar geral:
não vais a hospital:
médico quer cura
também, como cura!
Não vamos criticar!
Não nos vamos queixar!
Vamo-nos libertar
da prisão conceptual
do eu extremista!
Tuesday, September 23, 2008
.
FAGULHA!
.
Sejamos nós mesmos,
nada de imitações:
comboio dos torresmos,
electrificações!
.
Gloriosa Fagulha
dor há-de vencer!
E toda a vã bulha
há-de fenecer!
.
Unidos ao todo
vemos preciosa
emergir de novo.
Que maravilhosa!
.
Não nos impeçamos
de fazer em grande!
Tão só não firamos.
Vá, connosco ande!
.
Preciosa é
a feliz Presença:
feliz até
ovelha mé-mé!
.
Vamos para lá
dos custos, das leis:
que se passa cá
mesmo, oh bom Reis?
.
Não pensamos nada,
José. Não paremos
comunicar, Ada.
Comportar mudemos.
.
Vida preciosa
é, pura e santa.
Não é vergonhosa
Ana, nem se espanta.
FAGULHA!
.
Sejamos nós mesmos,
nada de imitações:
comboio dos torresmos,
electrificações!
.
Gloriosa Fagulha
dor há-de vencer!
E toda a vã bulha
há-de fenecer!
.
Unidos ao todo
vemos preciosa
emergir de novo.
Que maravilhosa!
.
Não nos impeçamos
de fazer em grande!
Tão só não firamos.
Vá, connosco ande!
.
Preciosa é
a feliz Presença:
feliz até
ovelha mé-mé!
.
Vamos para lá
dos custos, das leis:
que se passa cá
mesmo, oh bom Reis?
.
Não pensamos nada,
José. Não paremos
comunicar, Ada.
Comportar mudemos.
.
Vida preciosa
é, pura e santa.
Não é vergonhosa
Ana, nem se espanta.
.
LADRÕES
.
Se não tiver nada
para roubar, não
me roubam, boa fada
da 'nha protecção!
.
O que p'ra roubar
e dar tenho, poucos
querem, Guiomar
dos ouvidos moucos!
.
Dissimulação,
a quanto obrigas!
Que faz ambição
desmedida? Brigas!
.
Deus é a justiça,
imparcialidade,
que cão não atiça:
imortalidade!
.
Chega-te ao ser,
cessa procurar:
porque há-de ser
melhor outro lugar?
LADRÕES
.
Se não tiver nada
para roubar, não
me roubam, boa fada
da 'nha protecção!
.
O que p'ra roubar
e dar tenho, poucos
querem, Guiomar
dos ouvidos moucos!
.
Dissimulação,
a quanto obrigas!
Que faz ambição
desmedida? Brigas!
.
Deus é a justiça,
imparcialidade,
que cão não atiça:
imortalidade!
.
Chega-te ao ser,
cessa procurar:
porque há-de ser
melhor outro lugar?
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INTELIGÊNCIA(Quem somos)
.
Somos muitíssimo mais e menos do que a mente, mesmo em termos de inteligência. Somos todo o nosso corpo, todo o nosso ser. Somos até o chão que pisamos, a água em que flutuamos, a cadeira onde nos sentamos, o computador em que comunicamos, todos os seres que nos rodeiam (perto e longe), o ar em que nos deslocamos ou que respiramos, o que comemos e bebemos.
Somos tudo isto e podemos ser tão pouco: um ser que dorme sem sonhar nem pensar, quase totalmente indefeso e dependente, um punhado de coinza, um espírito desencarnado a vagar, ou, até uma pessoa extremamente apaixonada, por um ente, uma causa, uma terra...
Mesmo em termos de inteligência, se excluirmos o sentir, a intuição, o chamado sexto sentido das mulheres, por maior que seja o nosso Q. I. (quociente intelectual, não quem indica!), dificilmente iremos mostrar tal Q. I. de forma bela, completa e efectiva.
INTELIGÊNCIA(Quem somos)
.
Somos muitíssimo mais e menos do que a mente, mesmo em termos de inteligência. Somos todo o nosso corpo, todo o nosso ser. Somos até o chão que pisamos, a água em que flutuamos, a cadeira onde nos sentamos, o computador em que comunicamos, todos os seres que nos rodeiam (perto e longe), o ar em que nos deslocamos ou que respiramos, o que comemos e bebemos.
Somos tudo isto e podemos ser tão pouco: um ser que dorme sem sonhar nem pensar, quase totalmente indefeso e dependente, um punhado de coinza, um espírito desencarnado a vagar, ou, até uma pessoa extremamente apaixonada, por um ente, uma causa, uma terra...
Mesmo em termos de inteligência, se excluirmos o sentir, a intuição, o chamado sexto sentido das mulheres, por maior que seja o nosso Q. I. (quociente intelectual, não quem indica!), dificilmente iremos mostrar tal Q. I. de forma bela, completa e efectiva.
Monday, September 22, 2008
.
Orfeu/Eurídice
.
ORFEUPara o velho Eagro, o temido e admirado rei da Trácia, amante da guerra, homem das armas, a música é barulho e a educação do filho caçula, um fracasso.Esse é o seu desgosto: não conseguira educar Orfeu para a guerra.A sua belicosa pedagogia não conseguira sensibilizar para a guerra o jovem com alma de artista.Eagro sofre. É um rei, tem poder, mas perdera o próprio filho.Quando o chama, tem entre os dedos a última e desesperada tentativa de cativar o neto de Ares, deus da guerra, para o mundo do guerreiro. O filho o acompanha à sala. Na parede: elmos, armaduras e armas. "Quero que receba de seu velho pai este presente. Nele está depositado o meu coração" diz ao jovem. Quando Orfeu abre a caixa vê diante de si um arco e um par de flechas, banhados a ouro.Ao retesar a corda Orfeu produz um som encantador e repentinamente as coisas da sala parecem adquirir vida.Cadeiras balançam, armas caem da parede. Tudo parece se movimentar. O som flutua no palácio, sensibilizando os empregados.Eagro fica furioso. Seus olhos sangram, na voz palavras terríveis lançadas ao ar como chamas: - Vá embora! Desapareça! Não o quero mais aqui! Eu não o queria assim, um ... um cantador... um artista...um...um..." - mal consegue pronunciar as palavras: - "Você decepcionou seu pai". Eu o queria um guerreiro, um bravo, um amante das guerras, por isso vá embora"!Expulsa o próprio filho da sua casa, do seu reino.Ninguém pode penetrar na dor de Eagro, nem compreender a alma da música que invadiu o coração de Orfeu.Orfeu olha para Eagro, pensa em Calíope, sua mãe. Em seu pensamento dançam as lembranças das aventuras vividas na velha Trácia. Olha para o monte Olimpo, pois habitava perto dele. Mas é o fim. A sua música não seduziu o velho pai.Orfeu corre sem parar. Penetra cada vez mais na floresta. Verdes bailam em sua passagem, a ventania se esquiva, a floresta emudece, pássaros silenciam. A cacatua, a cotovia...Ao chegar na clareira da floresta, caiu ao chão e adormeceu. O cansaço o venceu. Quando desperta constrói para si um instrumento musical, uma cítara. Coloca nove cordas no instrumento.Seu enverdecido pensamento pensa que a música será a sua única companheira e então, ao tocar, inventa o antídoto do mal. Tem a imensa convicção de que a música espanta os males.Ninguém o seguirá, será o cantador solitário das florestas. Aonde ele for, a sua música estará com ele. "Sou Orfeu"! quer gritar, mas seu pensamento é transformado em terna melodia.Verdes o reverenciam, caules e flores abrem passagem para a sua música. Mas, ele se enganara, não segue solitário.Por onde passa, encontra amigos, todos o seguem para ouvi-lo, querem apreciar a sua música, que se mostra curativa da alma. A cada acorde seduz a natureza.Pássaros aperfeiçoam seus cantos com Orfeu, pardais, gralhas, rouxinóis, cotovias, melros. Ele entrelaça o seu canto com o dos pássaros.Animais esquecem a rivalidade natural e, com a natureza subvertida, passam a conviver em harmonia. Raposas, texugos, veados, leões, corças, javalis.Até os insetos o seguiam atraídos pela mágica sonora. Tomados pelo encantamento, borboletas, libélulas e gafanhotos o seguem.As flores adquirem novas cores, os girassóis se iluminam, verdes e azuis se renovam. A sua música opera milagres indescritíveis.Certa vez quando a floresta entardecia, Orfeu teve o pressentimento de que estava sendo observado.Sentiu olhos pelas frestas, e ficou apreensivo.Estaria sendo seguido? Teria invadido território sagrado? Teria ofendido aos deuses? Para espantar os males, decidiu cantar e seu canto revelou entre as folhagens a bela criatura que o espreitava.Surgiu diante dele, dançando, uma ninfa de cabelos longos e possuidores da cor da floresta. Ele, atônito, ficou paralisado diante da ninfa. Ela começou a falar. A voz penetrou no coração de Orfeu."Eu sei quem você é" - disse a ninfa, que se mostrou conhecedora das proezas de Orfeu, que, transformadas em lendas, percorriam as florestas e varavam os povos."Já ouvi muitas histórias sobre você. Você derrotou o leão montanhês, o seu canto abriu o rio, as águas se ergueram, o rio se dividiu. As ondas foram detidas, e você abriu uma passagem entre as águas. Formaram-se duas paredes de água e você caminhou pelo corredor entre essas paredes. Você fez rochas dançarem, enfrentou e acalmou o dragão de três cabeças que guardava o Velocino de Ouro. Também salvou os argonautas da sedução do canto das sereias. Você, que é um sedutor..."Realmente a ninfa sabia muita coisa sobre Orfeu. Conhecia as aventuras, sabia das lendárias histórias que se contavam sobre o cantador da floresta e enquanto falava essas coisas, deixava escapar que estava apaixonada pelo jovem."Qual o seu nome?" perguntou Orfeu, atordoado pela beleza da ninfa de cabelos florestais."Eurídice" respondeu."Sim, Eurídice. Agora eu sei quem é você. Você é a bela dançarina da floresta, e eu a quero a meu lado. Com você comigo sou mais forte, você com a sua dança aperfeiçoa o meu canto"E ali, naquele enternecido momento, entre verdes, animais, pássaros e flores, se tornaram amantes.Quis o destino que esse encontro trouxesse felicidade para a floresta, pois assim foi. Por onde passaram, a felicidade se espalhou. As frestas de sol invadiram as solidões da floresta, adeuses se afastaram, lamentos e dores, tragédias e tristezas, tudo desapareceu. Os prantos se dissolveram, as mágoas foram esquecidas, só alegria, amizade, ternura, felicidade...Os povos da floresta, animados e agradecidos pelo bem que a música de Orfeu e a dança de Eurídice trouxeram, resolveram preparar uma bonita festa de casamento. Todos participaram dessa preparação, animais e pessoas.Os animais enfeitando as árvores, os homens construindo um altar e as mulheres tecendo um pano maravilhoso para o vestido de noiva de Eurídice.Trabalharam dias seguidos na preparação desse significativo evento, a cada manhã, a cada entardecer e a cada noite, iluminados pelos candelabros naturais de milhares de vaga-lumes, e pela luz prateada da lua, que vagando no céu espreitava comovida a felicidade do casal.O casal continuava espalhando a felicidade com a bela união.Os habitantes da floresta ansiosamente aguardavam o grande dia, quando entre caules, galhos e rochas, percorreu a noticia aterrorizante de que terrível criatura se aproximava destruindo tudo, arrancando árvores, rochas despedaçando.A assombrosa criatura, uma fera medonha, enorme, incapaz de ser detida por um exército de guerreiros, já dizimara aldeias, aniquilara famílias inteiras, e rasgara ao meio os mais fortes animais selvagens. Nada poderia detê-la. A única esperança, o canto de Orfeu.Talvez, com a música, ele pudesse salvar da fatalidade, da desgraça e da tragédia os povos da floresta.Os povos da floresta imploraram para que ele fosse até a região montanhosa, onde estava a criatura medonha que se aproximava, para enfrentá-la.Os anciões, reunidos em conselho, convenceram Orfeu a partir na véspera do seu casamento para enfrentar a criatura. "Só você, com seu canto, conseguirá deter a criatura". disse um pastor.E assim ele se foi, deixando a visão esplendorosa da preparação do seu casamento. No caminho colheu uma flor lilás e entregou-a a Eurídice. "Fique em paz, eu retornarei. Guarde esta flor, ela simbolizará o meu canto até a minha volta". Partiu em direção ao perigo, não podia se negar a salvar a vida de tão preciosos amigos e sabia, mais do que ninguém, que a sua música nascera para beneficiar a humanidade.Sabia mais do que ninguém que, se o seu canto não conseguisse acalmar a estranha criatura, tudo estaria perdido e, tantos os habitantes das florestas, quanto os animais e as árvores, estariam arrasados, tudo estaria destruído."Eu voltarei"! - disse para a sua dançarina, que, cortada pelas lágrimas do temor, abraçou forte o seu guerreiro do canto e murmurando pediu proteção aos deuses, enquanto apertava o corpo ao de Orfeu, que emudecido num soluço, partiu para a arriscada missão.Eurídice ficou sozinha com a sua flor lilás na morada da floresta, mas dias depois, despertada pela curiosidade natural das fêmeas, se dirigiu à clareira da floresta para ver como andava a preparação do seu casamento.Acompanhada pelos pássaros e os olhos dos animais amigos entre as verdes frestas, a doce ninfa seguiu seu rumo, quando alguém a agarrou.Pensando se tratar do amado que voltara, pronuncia o seu nome, mas logo descobre o engano fatal.Está diante do guerreiro agricultor, filho de Apolo, que sempre fora apaixonado por ela, mas como nunca conseguira conquistar o seu coração com o afeto e as armas naturais do amante, resolveu usar a força e covardemente a ataca.Como nunca conseguira transmitir encanto para Eurídice, queria violar sua própria paixão.- Solte-me Aristeu! Você não pode fazer isso! Ninguém manda no coração de uma mulher! Você sabe quem eu amo...Uma força maligna subiu ao coração de Aristeu, o seu sangue transformou-se em chamas, dos seus olhos o ódio e o desprezo invadiram o ar.Ele, o filho de um deus, ele, um forte, ser derrotado por um músico, ter perdido o amor de Eurídice por um artista, é uma humilhação sem fim...Furiosamente, dominado pelo ódio da perda, atirou Eurídice ao chão. Ela aproveitou e tentou se levantar e fugir, mas, mal dera alguns passos, foi picada por uma serpente. O veneno e a dor imediatamente atingiram seu sangue. Ela, se contorcendo, caiu ao chão. Aristeu, tão covarde como chegara, foge, abandonando-a.Quando o povo da floresta a encontrou, sua azulada alma já se dissolvia por entre as folhagens e se recompunha no ar, voando como que levada pelos ventos em direção ao mundo dos mortos.Dois lenhadores a ergueram com cuidado e um deles, com a voz trêmula e encharcada pela dor, disse:- "Não há nada a fazer! O veneno penetrou em seu coração. A sua alma já não está entre nós. Vamos levá-la para o altar".E assim quando o sol se recolhia entre as frestas das folhas, o povo da floresta entristecido, levava o corpo de Eurídice, enquanto a sua alma já se aproximava dos enormes portões do mundo dos mortos.Entre os gravetos do caminho, uma flor lilás murchava...Quando Orfeu retornou vitorioso após ter acalmado a horrenda criatura com o seu canto, numa feroz batalha entre a arte e a fera, e assim ter salvado os amigos da floresta, foi invadido por uma súbita felicidade ao avistar ao longe a multidão ao redor do altar.Pensou se tratar da animação dos últimos preparativos do seu casamento. Sorriu.Ao chegar perto do altar, ao ver a tristeza infinita nos animais e também nos olhos do povo da floresta, pressentiu que algo estava errado e cautelosamente se aproximou da multidão.Ao deparar com o corpo de Eurídice estendido no altar e ver o seu rosto pálido como a cera,gelado, sem vida, caiu em prantos e abraçou desesperado o seu corpo.Seu choro varou a floresta, atravessou árvores, e transformado em melodia voou sobre lagos e rios. Levado por uma forte e repentina ventania subiu aos O mais dolorido dos choros, transformado na mais triste melodia, chegou ao monte Olimpo, a morada dos deuses.Zeus, comovido pelo tom plangente da melodia, ordenou a Hermes, o mensageiro dos deuses, que descesse a terra e levasse Orfeu ao mundo dos mortos. Hermes chegou à floresta de Orfeu, e transmitiu ao músico a mensagem do deus dos deuses.Zeus, convencido da força da melodia de Orfeu, acreditou que talvez ele pudesse enternecer o coração de Hades, o senhor dos infernos.Ninguém jamais conseguira tocar o coração de Hades, mas Zeus, diante da dor de Orfeu, resolveu se arriscar. Se o músico conseguisse comover ou pelo menos sensibilizar o senhor dos infernos, ele permitiria que levasse a sua amada de volta para o mundo dos vivos.Hermes acompanhou Orfeu até o barco de Caronte, o terrível barqueiro que levava as almas para o mundo subterrâneo. Orfeu levou consigo a lira, o presente de casamento que lhe daria o povo da floresta.Ao chegarem, enormes portões foram abertos.Demônios e almas medonhas guardavam a entrada daquele lugar assustador, mas Orfeu só tinha uma coisa no pensamento: reencontrar Eurídice e levar a sua alma de volta para o mundo dos vivos.Entrou.O poeta dos verdes inicia a sua descida aos infernos.Então surge diante dele, a esplendorosa visão de Hades, ao lado da esposa e companheira Perséfone, a do triste destino.Orfeu fica momentaneamente paralisado diante de tão rara e impressionante visão, pois nenhuma alma viva jamais vira Hades, porém logo em seguida começa a entoar a mais doce e profunda melodia que jamais então se ouvira.E algo estranho aconteceu.O coração de Hades foi atingido. O senhor do mundo dos mortos se comoveu. De seus olhos uma lágrima surge, imediatamente evaporada pelo calor daquele horrível lugar. Perséfone, a do triste destino, ouve em silêncio o esposo perguntar a Orfeu o que ele queria: - "Fale meu jovem, o que você quer de mim"?- "Eu vim buscar a minha amada. Quero levar de volta a alma de Eurídice para o mundo dos vivos"! disse Orfeu com determinação."Eu consinto"! - disse Hades, enquanto fazia um gesto para um demônio, para que buscasse a alma de Eurídice.- "Mas tem uma condição. Você não poderá em nenhum momento olhar para trás. Isso é um acordo. Se você olhar para trás, perderá para sempre a sua amada".Orfeu concordou e começou a caminhar em direção ao mundo dos vivos. Do lado de fora dos portões, o barco esperava por ele.Atormentada por demônios e almas prisioneiras, atrás vinha a sua Eurídice, gritando.Também demônios o atormentavam, tentavam arrancar a sua lira e o chicoteavam. Mas Orfeu seguia corajosamente, sem hesitar, e quanto mais subia em direção aos grandes portões, mais se aproximava da certeza de que breve teria de volta em seus braços a doce dançarina.Mas a sua vontade começou a fraquejar.A dúvida começou a invadir o seu coração, a incerteza começou a abalar os seus passos. Estaria realmente sendo seguido por Eurídice? Aqueles gritos não seriam apenas alucinações? A dúvida instalada em seu coração o colocou diante do precipício do perigo de se romper um acordo, e despedaçado pela dúvida, olhou para trás.No mesmo instante a alma de Eurídice se dissolveu. Em pó ao mundo dos mortos retornou.Desesperado quis voltar, tentar segurar a sua amada que desaparecia para sempre no mundo subterrâneo.Aos gritos, foi levado pelos demônios de volta para o mundo dos vivos e então se entregou ao abandono. Nunca mais quis saber do canto, entrou na mais triste solidão e se esqueceu, deitado, na mesma rocha da floresta onde um dia se sentou para construir a sua cítara, e lá ficou.Orfeu abandonado não quis ouvir ninguém, o pastor do povo da floresta tentou reanimá-lo, mas não conseguiu. Disse o pastor: "Todos nós participamos da sua dor, mas só depende de você que a tristeza se transforme em canto", mas Orfeu nada respondeu, continuou no seu silêncio gelado de pedra, deitado na rocha, transformada em leito de morte.O jovem amante cantor das florestas, decretou a eternidade do seu amor e a ele devotou seus últimos dias.Folhas choraram orvalhadas diante da sua fragilidade.Orfeu para sempre esperaria pela sua amada, na certeza de que a teria novamente nos braços e, a cada dia, foi perdendo o interesse por tudo.O jovem que com o seu canto suavizava a dor, que desceu ao mundo das trevas, passou a viver para a eternidade do seu amor.Um grupo de mulheres da Trácia, as bacantes, seguidoras da alegria, seguidoras do vinho, não suportavam a fidelidade de Orfeu para com a sua amada.Como era muito difícil para elas suportarem a fidelidade do homem Orfeu, armadas com paus e pedras mutilaram o cantor das florestas.Retalharam, trucidaram, despedaçaram atrozmente o jovem fiel.Jogaram os pedaços ao rio, e junto, a lira, que Orfeu nunca mais tocara.Seus restos, sua cabeça e a lira chegaram à ilha de Lesbos.Os poéticos habitantes da ilha prestaram-lhe as homenagens fúnebres.Edificaram um túmulo. O músico, que não conhecia fronteiras entre a vida e a morte, descansou na ilha onde a poesia habitava.Quando anoiteceu, o povo da floresta ao olhar para o céu, encontrou pela primeira vez a Constelação de Lira.
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ORFEU, recontado por MarcianoVasques
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Fonte:http://www.riototal.com.br/coojornal/lendas001.htm
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Orfeu/Eurídice
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ORFEUPara o velho Eagro, o temido e admirado rei da Trácia, amante da guerra, homem das armas, a música é barulho e a educação do filho caçula, um fracasso.Esse é o seu desgosto: não conseguira educar Orfeu para a guerra.A sua belicosa pedagogia não conseguira sensibilizar para a guerra o jovem com alma de artista.Eagro sofre. É um rei, tem poder, mas perdera o próprio filho.Quando o chama, tem entre os dedos a última e desesperada tentativa de cativar o neto de Ares, deus da guerra, para o mundo do guerreiro. O filho o acompanha à sala. Na parede: elmos, armaduras e armas. "Quero que receba de seu velho pai este presente. Nele está depositado o meu coração" diz ao jovem. Quando Orfeu abre a caixa vê diante de si um arco e um par de flechas, banhados a ouro.Ao retesar a corda Orfeu produz um som encantador e repentinamente as coisas da sala parecem adquirir vida.Cadeiras balançam, armas caem da parede. Tudo parece se movimentar. O som flutua no palácio, sensibilizando os empregados.Eagro fica furioso. Seus olhos sangram, na voz palavras terríveis lançadas ao ar como chamas: - Vá embora! Desapareça! Não o quero mais aqui! Eu não o queria assim, um ... um cantador... um artista...um...um..." - mal consegue pronunciar as palavras: - "Você decepcionou seu pai". Eu o queria um guerreiro, um bravo, um amante das guerras, por isso vá embora"!Expulsa o próprio filho da sua casa, do seu reino.Ninguém pode penetrar na dor de Eagro, nem compreender a alma da música que invadiu o coração de Orfeu.Orfeu olha para Eagro, pensa em Calíope, sua mãe. Em seu pensamento dançam as lembranças das aventuras vividas na velha Trácia. Olha para o monte Olimpo, pois habitava perto dele. Mas é o fim. A sua música não seduziu o velho pai.Orfeu corre sem parar. Penetra cada vez mais na floresta. Verdes bailam em sua passagem, a ventania se esquiva, a floresta emudece, pássaros silenciam. A cacatua, a cotovia...Ao chegar na clareira da floresta, caiu ao chão e adormeceu. O cansaço o venceu. Quando desperta constrói para si um instrumento musical, uma cítara. Coloca nove cordas no instrumento.Seu enverdecido pensamento pensa que a música será a sua única companheira e então, ao tocar, inventa o antídoto do mal. Tem a imensa convicção de que a música espanta os males.Ninguém o seguirá, será o cantador solitário das florestas. Aonde ele for, a sua música estará com ele. "Sou Orfeu"! quer gritar, mas seu pensamento é transformado em terna melodia.Verdes o reverenciam, caules e flores abrem passagem para a sua música. Mas, ele se enganara, não segue solitário.Por onde passa, encontra amigos, todos o seguem para ouvi-lo, querem apreciar a sua música, que se mostra curativa da alma. A cada acorde seduz a natureza.Pássaros aperfeiçoam seus cantos com Orfeu, pardais, gralhas, rouxinóis, cotovias, melros. Ele entrelaça o seu canto com o dos pássaros.Animais esquecem a rivalidade natural e, com a natureza subvertida, passam a conviver em harmonia. Raposas, texugos, veados, leões, corças, javalis.Até os insetos o seguiam atraídos pela mágica sonora. Tomados pelo encantamento, borboletas, libélulas e gafanhotos o seguem.As flores adquirem novas cores, os girassóis se iluminam, verdes e azuis se renovam. A sua música opera milagres indescritíveis.Certa vez quando a floresta entardecia, Orfeu teve o pressentimento de que estava sendo observado.Sentiu olhos pelas frestas, e ficou apreensivo.Estaria sendo seguido? Teria invadido território sagrado? Teria ofendido aos deuses? Para espantar os males, decidiu cantar e seu canto revelou entre as folhagens a bela criatura que o espreitava.Surgiu diante dele, dançando, uma ninfa de cabelos longos e possuidores da cor da floresta. Ele, atônito, ficou paralisado diante da ninfa. Ela começou a falar. A voz penetrou no coração de Orfeu."Eu sei quem você é" - disse a ninfa, que se mostrou conhecedora das proezas de Orfeu, que, transformadas em lendas, percorriam as florestas e varavam os povos."Já ouvi muitas histórias sobre você. Você derrotou o leão montanhês, o seu canto abriu o rio, as águas se ergueram, o rio se dividiu. As ondas foram detidas, e você abriu uma passagem entre as águas. Formaram-se duas paredes de água e você caminhou pelo corredor entre essas paredes. Você fez rochas dançarem, enfrentou e acalmou o dragão de três cabeças que guardava o Velocino de Ouro. Também salvou os argonautas da sedução do canto das sereias. Você, que é um sedutor..."Realmente a ninfa sabia muita coisa sobre Orfeu. Conhecia as aventuras, sabia das lendárias histórias que se contavam sobre o cantador da floresta e enquanto falava essas coisas, deixava escapar que estava apaixonada pelo jovem."Qual o seu nome?" perguntou Orfeu, atordoado pela beleza da ninfa de cabelos florestais."Eurídice" respondeu."Sim, Eurídice. Agora eu sei quem é você. Você é a bela dançarina da floresta, e eu a quero a meu lado. Com você comigo sou mais forte, você com a sua dança aperfeiçoa o meu canto"E ali, naquele enternecido momento, entre verdes, animais, pássaros e flores, se tornaram amantes.Quis o destino que esse encontro trouxesse felicidade para a floresta, pois assim foi. Por onde passaram, a felicidade se espalhou. As frestas de sol invadiram as solidões da floresta, adeuses se afastaram, lamentos e dores, tragédias e tristezas, tudo desapareceu. Os prantos se dissolveram, as mágoas foram esquecidas, só alegria, amizade, ternura, felicidade...Os povos da floresta, animados e agradecidos pelo bem que a música de Orfeu e a dança de Eurídice trouxeram, resolveram preparar uma bonita festa de casamento. Todos participaram dessa preparação, animais e pessoas.Os animais enfeitando as árvores, os homens construindo um altar e as mulheres tecendo um pano maravilhoso para o vestido de noiva de Eurídice.Trabalharam dias seguidos na preparação desse significativo evento, a cada manhã, a cada entardecer e a cada noite, iluminados pelos candelabros naturais de milhares de vaga-lumes, e pela luz prateada da lua, que vagando no céu espreitava comovida a felicidade do casal.O casal continuava espalhando a felicidade com a bela união.Os habitantes da floresta ansiosamente aguardavam o grande dia, quando entre caules, galhos e rochas, percorreu a noticia aterrorizante de que terrível criatura se aproximava destruindo tudo, arrancando árvores, rochas despedaçando.A assombrosa criatura, uma fera medonha, enorme, incapaz de ser detida por um exército de guerreiros, já dizimara aldeias, aniquilara famílias inteiras, e rasgara ao meio os mais fortes animais selvagens. Nada poderia detê-la. A única esperança, o canto de Orfeu.Talvez, com a música, ele pudesse salvar da fatalidade, da desgraça e da tragédia os povos da floresta.Os povos da floresta imploraram para que ele fosse até a região montanhosa, onde estava a criatura medonha que se aproximava, para enfrentá-la.Os anciões, reunidos em conselho, convenceram Orfeu a partir na véspera do seu casamento para enfrentar a criatura. "Só você, com seu canto, conseguirá deter a criatura". disse um pastor.E assim ele se foi, deixando a visão esplendorosa da preparação do seu casamento. No caminho colheu uma flor lilás e entregou-a a Eurídice. "Fique em paz, eu retornarei. Guarde esta flor, ela simbolizará o meu canto até a minha volta". Partiu em direção ao perigo, não podia se negar a salvar a vida de tão preciosos amigos e sabia, mais do que ninguém, que a sua música nascera para beneficiar a humanidade.Sabia mais do que ninguém que, se o seu canto não conseguisse acalmar a estranha criatura, tudo estaria perdido e, tantos os habitantes das florestas, quanto os animais e as árvores, estariam arrasados, tudo estaria destruído."Eu voltarei"! - disse para a sua dançarina, que, cortada pelas lágrimas do temor, abraçou forte o seu guerreiro do canto e murmurando pediu proteção aos deuses, enquanto apertava o corpo ao de Orfeu, que emudecido num soluço, partiu para a arriscada missão.Eurídice ficou sozinha com a sua flor lilás na morada da floresta, mas dias depois, despertada pela curiosidade natural das fêmeas, se dirigiu à clareira da floresta para ver como andava a preparação do seu casamento.Acompanhada pelos pássaros e os olhos dos animais amigos entre as verdes frestas, a doce ninfa seguiu seu rumo, quando alguém a agarrou.Pensando se tratar do amado que voltara, pronuncia o seu nome, mas logo descobre o engano fatal.Está diante do guerreiro agricultor, filho de Apolo, que sempre fora apaixonado por ela, mas como nunca conseguira conquistar o seu coração com o afeto e as armas naturais do amante, resolveu usar a força e covardemente a ataca.Como nunca conseguira transmitir encanto para Eurídice, queria violar sua própria paixão.- Solte-me Aristeu! Você não pode fazer isso! Ninguém manda no coração de uma mulher! Você sabe quem eu amo...Uma força maligna subiu ao coração de Aristeu, o seu sangue transformou-se em chamas, dos seus olhos o ódio e o desprezo invadiram o ar.Ele, o filho de um deus, ele, um forte, ser derrotado por um músico, ter perdido o amor de Eurídice por um artista, é uma humilhação sem fim...Furiosamente, dominado pelo ódio da perda, atirou Eurídice ao chão. Ela aproveitou e tentou se levantar e fugir, mas, mal dera alguns passos, foi picada por uma serpente. O veneno e a dor imediatamente atingiram seu sangue. Ela, se contorcendo, caiu ao chão. Aristeu, tão covarde como chegara, foge, abandonando-a.Quando o povo da floresta a encontrou, sua azulada alma já se dissolvia por entre as folhagens e se recompunha no ar, voando como que levada pelos ventos em direção ao mundo dos mortos.Dois lenhadores a ergueram com cuidado e um deles, com a voz trêmula e encharcada pela dor, disse:- "Não há nada a fazer! O veneno penetrou em seu coração. A sua alma já não está entre nós. Vamos levá-la para o altar".E assim quando o sol se recolhia entre as frestas das folhas, o povo da floresta entristecido, levava o corpo de Eurídice, enquanto a sua alma já se aproximava dos enormes portões do mundo dos mortos.Entre os gravetos do caminho, uma flor lilás murchava...Quando Orfeu retornou vitorioso após ter acalmado a horrenda criatura com o seu canto, numa feroz batalha entre a arte e a fera, e assim ter salvado os amigos da floresta, foi invadido por uma súbita felicidade ao avistar ao longe a multidão ao redor do altar.Pensou se tratar da animação dos últimos preparativos do seu casamento. Sorriu.Ao chegar perto do altar, ao ver a tristeza infinita nos animais e também nos olhos do povo da floresta, pressentiu que algo estava errado e cautelosamente se aproximou da multidão.Ao deparar com o corpo de Eurídice estendido no altar e ver o seu rosto pálido como a cera,gelado, sem vida, caiu em prantos e abraçou desesperado o seu corpo.Seu choro varou a floresta, atravessou árvores, e transformado em melodia voou sobre lagos e rios. Levado por uma forte e repentina ventania subiu aos O mais dolorido dos choros, transformado na mais triste melodia, chegou ao monte Olimpo, a morada dos deuses.Zeus, comovido pelo tom plangente da melodia, ordenou a Hermes, o mensageiro dos deuses, que descesse a terra e levasse Orfeu ao mundo dos mortos. Hermes chegou à floresta de Orfeu, e transmitiu ao músico a mensagem do deus dos deuses.Zeus, convencido da força da melodia de Orfeu, acreditou que talvez ele pudesse enternecer o coração de Hades, o senhor dos infernos.Ninguém jamais conseguira tocar o coração de Hades, mas Zeus, diante da dor de Orfeu, resolveu se arriscar. Se o músico conseguisse comover ou pelo menos sensibilizar o senhor dos infernos, ele permitiria que levasse a sua amada de volta para o mundo dos vivos.Hermes acompanhou Orfeu até o barco de Caronte, o terrível barqueiro que levava as almas para o mundo subterrâneo. Orfeu levou consigo a lira, o presente de casamento que lhe daria o povo da floresta.Ao chegarem, enormes portões foram abertos.Demônios e almas medonhas guardavam a entrada daquele lugar assustador, mas Orfeu só tinha uma coisa no pensamento: reencontrar Eurídice e levar a sua alma de volta para o mundo dos vivos.Entrou.O poeta dos verdes inicia a sua descida aos infernos.Então surge diante dele, a esplendorosa visão de Hades, ao lado da esposa e companheira Perséfone, a do triste destino.Orfeu fica momentaneamente paralisado diante de tão rara e impressionante visão, pois nenhuma alma viva jamais vira Hades, porém logo em seguida começa a entoar a mais doce e profunda melodia que jamais então se ouvira.E algo estranho aconteceu.O coração de Hades foi atingido. O senhor do mundo dos mortos se comoveu. De seus olhos uma lágrima surge, imediatamente evaporada pelo calor daquele horrível lugar. Perséfone, a do triste destino, ouve em silêncio o esposo perguntar a Orfeu o que ele queria: - "Fale meu jovem, o que você quer de mim"?- "Eu vim buscar a minha amada. Quero levar de volta a alma de Eurídice para o mundo dos vivos"! disse Orfeu com determinação."Eu consinto"! - disse Hades, enquanto fazia um gesto para um demônio, para que buscasse a alma de Eurídice.- "Mas tem uma condição. Você não poderá em nenhum momento olhar para trás. Isso é um acordo. Se você olhar para trás, perderá para sempre a sua amada".Orfeu concordou e começou a caminhar em direção ao mundo dos vivos. Do lado de fora dos portões, o barco esperava por ele.Atormentada por demônios e almas prisioneiras, atrás vinha a sua Eurídice, gritando.Também demônios o atormentavam, tentavam arrancar a sua lira e o chicoteavam. Mas Orfeu seguia corajosamente, sem hesitar, e quanto mais subia em direção aos grandes portões, mais se aproximava da certeza de que breve teria de volta em seus braços a doce dançarina.Mas a sua vontade começou a fraquejar.A dúvida começou a invadir o seu coração, a incerteza começou a abalar os seus passos. Estaria realmente sendo seguido por Eurídice? Aqueles gritos não seriam apenas alucinações? A dúvida instalada em seu coração o colocou diante do precipício do perigo de se romper um acordo, e despedaçado pela dúvida, olhou para trás.No mesmo instante a alma de Eurídice se dissolveu. Em pó ao mundo dos mortos retornou.Desesperado quis voltar, tentar segurar a sua amada que desaparecia para sempre no mundo subterrâneo.Aos gritos, foi levado pelos demônios de volta para o mundo dos vivos e então se entregou ao abandono. Nunca mais quis saber do canto, entrou na mais triste solidão e se esqueceu, deitado, na mesma rocha da floresta onde um dia se sentou para construir a sua cítara, e lá ficou.Orfeu abandonado não quis ouvir ninguém, o pastor do povo da floresta tentou reanimá-lo, mas não conseguiu. Disse o pastor: "Todos nós participamos da sua dor, mas só depende de você que a tristeza se transforme em canto", mas Orfeu nada respondeu, continuou no seu silêncio gelado de pedra, deitado na rocha, transformada em leito de morte.O jovem amante cantor das florestas, decretou a eternidade do seu amor e a ele devotou seus últimos dias.Folhas choraram orvalhadas diante da sua fragilidade.Orfeu para sempre esperaria pela sua amada, na certeza de que a teria novamente nos braços e, a cada dia, foi perdendo o interesse por tudo.O jovem que com o seu canto suavizava a dor, que desceu ao mundo das trevas, passou a viver para a eternidade do seu amor.Um grupo de mulheres da Trácia, as bacantes, seguidoras da alegria, seguidoras do vinho, não suportavam a fidelidade de Orfeu para com a sua amada.Como era muito difícil para elas suportarem a fidelidade do homem Orfeu, armadas com paus e pedras mutilaram o cantor das florestas.Retalharam, trucidaram, despedaçaram atrozmente o jovem fiel.Jogaram os pedaços ao rio, e junto, a lira, que Orfeu nunca mais tocara.Seus restos, sua cabeça e a lira chegaram à ilha de Lesbos.Os poéticos habitantes da ilha prestaram-lhe as homenagens fúnebres.Edificaram um túmulo. O músico, que não conhecia fronteiras entre a vida e a morte, descansou na ilha onde a poesia habitava.Quando anoiteceu, o povo da floresta ao olhar para o céu, encontrou pela primeira vez a Constelação de Lira.
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ORFEU, recontado por MarcianoVasques
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Fonte:http://www.riototal.com.br/coojornal/lendas001.htm
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Geomorfologia e ocupação
pré-histórica no baixo curso
do rio Sor: primeiras observações
geoarqueológicas
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R E S U M O
Apresenta-se aqui uma primeira abordagem para a compreensão das relações entre morfogénese
quaternária e assentamento pré-histórico a nível regional e em contextos controlados principalmente
por processos aluviais de idade plistocénica e holocénica. O estudo de caso analisado
corresponde ao baixo curso do rio Sor, no trecho entre a barragem de Montargil e a confluência
com o Raia, e apresenta um relevo relativamente suave, afeiçoado em sedimentos terciários e em
afloramentos isolados do Maciço Hespérico. A característica mais vincada da fisiografia regional
é o sistema de terraços aluviais escalonados, que revestem as encostas do vale do Sor e que
constituem pontos de assentamento preferencial para sítios pré-históricos, como as estações
neolíticas de Bernardo 1 e Alminho 1, aqui examinadas. Apresentam-se os dados geoarqueológicos
relativos a estes sítios e ao seu território, discutindo, a partir deles, as questões referentes à
evolução quaternária da paisagem, às inter-relações entre relevo e sistema de assentamento pré-
-histórico e aos processos formativos dos sítios arqueológicos de baixa profundidade.
A B S T R A C T The paper presents a first approach for analysing the relationships between
Quaternary morfogenesis and prehistoric settlement system at a regional scale, in a context
that is mainly controlled by Pleistocene and Holocene alluvial processes. The case study analysed
corresponds to the lower part of the River Sor’s drainage basin — in the reach included from
the Montargil dam to its confluence into the River Raia. The area’s relief is gentle and modelled
in Tertiary sediments, with isolated outcrops of the Hesperic Massif. The most obvious regional
physiographic feature is the staircase of alluvial terraces that exists along the hill slopes of
the Sor Valley, which represented favourite locations for prehistoric sites — as the Neolithic
ones examined here, Bernardo 1 and Alminho 1. We here present the geoarchaeological data
referred to these sites and to their territory and discuss, from this information, the features
related to the Quaternary evolution of the landscape, the inferences between relief and prehistoric
settlement system and the formation processes in shallow-stratified archaeological sites.
Geomorfologia e ocupação
pré-histórica no baixo curso
do rio Sor: primeiras observações
geoarqueológicas
DIEGO E. ANGELUCCI*
MANUELA DE DEUS**
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
6 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
1. Introdução
1.1. Objecto do artigo
O sistema de ocupação está intimamente relacionado com a paisagem e com as suas componentes
fisiográficas e geológicas. A compreensão das inter-relações entre o sistema natural e o
cultural é um dos elementos centrais da Geoarqueologia, disciplina que permite analisar, simultaneamente
e sob uma perspectiva diacrónica, as características do relevo, das rochas, dos sedimentos
e dos solos e o registo arqueológico de um dado território.
Este artigo pretende analisar, de forma preliminar e através da abordagem geoarqueológica, a
relação entre a organização do relevo e a ocupação pré-histórica da região delimitada pelo baixo
curso do Sor, ou seja, entre a barragem de Montargil e a confluência com o Raia. Não se trata de
um estudo exaustivo, mas de uma primeira abordagem que apresenta dados provenientes do trabalho
de campo, integrando-os no quadro dos conhecimentos actuais e propondo algumas hipóteses
de trabalho a desenvolver eventualmente em pesquisas futuras.
Parte das bacias dos rios Sor e Sorraia já foram objecto de análises geoarqueológicas no passado.
A região em redor de Ponte de Sor foi analisada por A. Martins (1999) e o vale do Sorraia foi
objecto de estudo por S. Daveau (1984, 1996), também em colaboração com V. Gonçalves (Daveau
e Gonçalves, 1985). Nesta contribuição concentraremos as nossas atenções no baixo curso do rio
Sor, nomeadamente no trecho incluído entre a barragem de Montargil e a confluência com o rio
Raia, onde se localizam dois dos sítios arqueológicos (Bernardo 1 e Alminho 1) sobre os quais têm
incidido os trabalhos do projecto PONTIS em anos recentes.
1.2. Notas metodológicas
Este trabalho insere-se no âmbito da colaboração celebrada entre IPA e PNTA com vista a
desenvolver estudos de cariz paleoambiental e geoarqueológico em sítios arqueológicos portugueses,
sendo enquadrado pelo projecto PNTA Neolitização do Médio e Baixo Vale do Sor (Acrónimo:
PONTIS III), apresentado em 2003 e que tem sido financiado — em termos logísticos e infraestruturais
— pela Câmara Municipal de Ponte de Sor.
O projecto geoarqueológico arrancou em 2003 com a finalidade de analisar a estratigrafia
dos sítios do Bernardo 1 e do Alminho 1. No entanto, logo se percebeu que a compreensão da situação
geomorfológica e quaternária da região era elemento primordial para explicar a génese do
registo arqueológico observado nos sítios, levando à realização de três curtas campanhas geoarqueológicas
para esse efeito. O reconhecimento geoarqueológico foi realizado em 2003 e 2004
(respectivamente durante dois fins-de-semana no mês de Setembro) e em 2005 (de 13 a 18 de
Setembro). O trabalho de campo centrou-se principalmente no levantamento e na descrição das
sucessões estratigráficas dos sítios de Bernardo 1 e Alminho 1 e no reconhecimento geomorfológico
preliminar dos arredores. Não admira, tendo em conta o tempo até agora dedicado para o
trabalho de campo, que os resultados obtidos sejam preliminares. Ainda assim cremos que mereçam
publicação, pelas questões arqueológicas e geoarqueológicas levantadas.
Do ponto de vista metodológico, o trabalho foi realizado com referência às técnicas clássicas da
geoarqueologia (v. Angelucci, 2003). As estratificações foram levantadas tendo em conta as principais
características pedológicas, sedimentológicas, estratigráficas e arqueológicas dos depósitos,
através da utilização da ficha de descrição de sedimentos e solos arqueológicos em uso no IPA.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 7
A paisagem à volta dos sítios foi objecto de reconhecimento geomorfológico expedito, com compilação
de um esboço preliminar que não segue as normativas da cartografia geomorfológica, representando
só uma primeira abordagem qualitativa à análise do relevo da região. Os dados geológicos foram
retirados da cartografia geológica disponível e averiguados durante o reconhecimento de campo.
2. Contexto geológico, geomorfológico e quaternário
Do ponto de vista administrativo, os
sítios arqueológicos localizam-se no Norte
alentejano, distrito de Portalegre, concelho de
Ponte de Sor e freguesia de Montargil (Fig. 1).
No entanto, a fisionomia da paisagem torna
evidente que se trata de uma área de transição
do Ribatejo para o Alentejo.
A área examinada é integrada na unidade
de paisagem da charneca ribatejana (Cancela
d’Abreu et al., 2004), que é considerada uma
extensa charneca, delimitada a Norte pelo
“Médio Tejo”, prolongando-se para Sul até
Vendas Novas e Pegões, delimitada a Oeste
pela “Lezíria do Tejo” e a Este pela peneplanície
alentejana, e que, na opinião dos mesmos
autores, é interrompida pelo vale do Sorraia,
unidade de paisagem claramente diferente
devido ao seu uso agrícola intensivo, controlada
pelo sistema morfodinâmico relacionado
com o rio Sorraia e seus afluentes.
A bacia hidrográfica do Sorraia é, em termos
de extensão, a maior entre as tributárias do
rio Tejo, do qual o Sorraia é afluente esquerdo.
Do ponto de vista fisiográfico, a região
de Ponte de Sor é recortada por uma densa rede de linhas de água tributárias das bacias hidrográficas
do rio Sor e, mais próximo de Montargil, do Sorraia.
Com a excepção das áreas de cabeceiras do rio Sor e da ribeira da Seda (e seus tributários), que
se localizam em áreas de afloramento do soco do Maciço Hespérico, a bacia do Sorraia desenvolve-se
principalmente nas coberturas sedimentares tardo-cenozóicas da bacia do Tejo, com afloramentos
locais do soco paleozóico (ex. em redor de Montargil, Touris e Mora — Zbyszewski e Carvalhosa,
1984; Martins, 1999). Esta situação geral reflecte-se na região abrangida por este trabalho, onde afloram
predominantemente sedimentos cenozóicos (terciários e quaternários) e, só de forma subordinada
nos arredores de Montargil, os terrenos paleozóicos pertencentes ao basamento (Figs. 1 e 2).
O sistema hidrográfico do Sorraia articula-se num conjunto de vales embutidos a partir da
superfície culminante da bacia do Tejo, cuja expressão sedimentar corresponde a um manto de
areias e conglomerados, formalizado com diferentes designações (v. Martins, 1999, p. 19 e bibliografia
mencionada), que define uma superfície planáltica. Os vales da bacia do Sorraia apresentam-se
embutidos nesta superfície culminante e as suas encostas articulam-se em terraços morfológicos
Fig. 1 Localização da área de estudo (rectângulo). A base
cartográfica é o esquema morfoestrutural de Portugal (Ribeiro,
1970). Legenda: 1 - maciços montanhosos e planaltos elevados;
2 - falhas / fracturas; 3 - granito; 4 - xisto; 5 - cristas de
quartzito; 6 - calcário paleozóico; 7 - depressão periférica;
8 - calcário jurássico; 9 - outras rochas sedimentares
mesozóicas; 10 - bacias e rochas sedimentares terciárias.
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
8 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Fig. 2 Esboço geomorfológico do baixo curso do Rio Sor (modificado a partir do folha Montargil da CGP refx). Legenda: 1 - zona de afloramento dos terrenos do Maciço Hespérico; 2 - zona
de afloramento de sedimentos cenozóicos; 3 - terraços Q1 e Q2; 4 - terraços Q3; 5 - terraços Q4a; 6 - terraços Q4b; 7 - formações aluviais actuais e sub-actuais; 8 - curso de água; 9 - canais de
origem antrópica; 10 - curvas de nível (equidistância 50 m); 11 - localidades mencionadas no texto (Afl - afloramento no terraço Q4a 300 m SSE do Alminho; Alm - Alminho 1; Brn - Bernardo 1;
CS - corte do Canal do Sorraia; CN - Casas Novas).
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 9
escalonados que constituem a evidência do embutimento da rede hidrográfica, processo que caracterizou
de forma marcante a evolução morfológica desta região durante o Quaternário.
O processo de encaixe começou a partir da mencionada superfície culminante, que sofreu uma
primeira fase de embutimento, provavelmente nas fases iniciais do Quaternário, originando o “Nível
Mora-Lamarosa” (NML — Teixeira, 1979; Martins e Barbosa, 1992; Martins, 1999). Tanto a superfície
culminante como o NML são reconhecíveis numa vasta área que abrange o baixo curso do Tejo e as
bacias dos seus principais afluentes (Martins, 1995). O sucessivo processo de embutimento da rede
hidrográfica, com formação de terraços aluviais, iniciou-se a partir do NML e continuou durante
todo o Quaternário, embora com alternância entre fases de erosão, estabilidade e acumulação.
A folha Montargil da Carta Geológica de Portugal (CGP — Zbyszewski e Carvalhosa, 1983),
indica a existência de cinco ordens de terraços aluviais, cujas características estão indicadas no
Quadro I (“cota relativa” indica o desnível a partir do rio).
Quadro I. Sistemas de terraços aluviais na bacia do Rio Sor.
CGP - Folha 31-D (Montargil) CGP - Folha 32-A (Ponte de Sor) Em redor de Ponte de Sor
(Zbyszewki e Carvalhosa, 1984) (Carvalho e Carvalhosa, 1982) (Martins, 1999, p. 22)
sigla cota relativa cronologia cota relativa cota absoluta
Q1 75 - 95 m Siciliano I 75 - 95 m
Q2 50 - 70 m Siciliano II 50 - 65 m 160 - 170 m
Q3 25 - 40 m Tirreniano I 25 - 40 m 130 m
Q4a 14 - 20 m Tirreniano II 8 - 15 m (Q4) 100 - 110 m
Q4b 6 - 8 m
Escassas são as informações sobre a cronologia dos terraços, assim como sobre a presença de
paleossolos ou a espessura máxima do sedimento aluvial — a notícia explicativa da CGP Montargil
indica que a espessura do depósito do terraço mais recente alcança 12 m (Zbyszewski e Carvalhosa,
1984, p. 37). Ainda assim, a sequência dos terraços parece correctamente interpretada e a sua representação
no mapa geológico é boa. Como indica a própria CGP, todo os terraços estão formados
por sedimentos tipicamente fluviais — cascalheiras com elementos bem rolados e areias mais ou
menos grosseiras, por vezes com intercalações argilosas (Zbyszewski e Carvalhosa, 1984).
No próximo capítulo, apresentar-se-ão algumas informações suplementares recolhidas
durante o reconhecimento de campo, durante o qual se realizou um levantamento preliminar,
muito aquém do nível analítico exigido por uma análise geomorfológica completa. A nomenclatura
dos terraços é mantida como na proposta da CGP (Fig. 2).
Além dos processos aluviais, os processos de vertente e os relacionados com a neotectónica
terão tido também um papel importante na génese da paisagem que hoje observamos. Contudo,
os terraços aluviais representam as formas mais destacadas deste território e muitos dos sítios
arqueológicos estão relacionados com eles, razão pela qual iremos concentrar a nossa atenção
sobre estas morfologias e a relativa documentação estratigráfica.
3. Os terraços recentes do baixo curso do Sor
O reconhecimento de campo realizado para o projecto PONTIS III levou à descrição de novos
afloramentos relativos aos terraços Q4b, Q4a e Q3. Apresentamos a seguir a informação estratigráfica
a partir do terraço mais baixo (mais recente).
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10 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
3.1. Terraço Q4b
É este o terraço mais baixo, poucos metros sobre o nível actual do rio. Ocupa uma área muito
extensa entre a barragem e a confluência com o rio Raia (Fig. 2). Foi observado entre Bernardo e Monte
dos Irmãos (Ponte de Sor) e no areeiro hoje desactivado perto de Casas Novas (Coruche). O terraço
tem superfície regular, talvez pelo intenso impacto agrário a que foi sujeito em tempos recentes, sendo
localização preferencial para cultivos intensivos (entre os quais predominam os arrozais) e areeiros.
No areeiro de Casas Novas observou-se um perfil objecto de descrição de semipormenor em
2004.
Perfil no areeiro de Casas Novas, terraço Q4b (fig. 10)
0 - 10 cm, horizonte (hor.) A – Areia com gravilha (“areão”, diâmetro máximo até 1 cm)
de cor pardo-acinzentada (2.5Y 5/2 - cor determinada em seco, como as restantes neste
corte); maciça (single grain), com empacotamento médio-alto e triagem moderada; porosidade
escassa (ocos de empacotamento e pequenos canais de raízes) e escassa matéria
orgânica bem incorporada; limite inferior claro linear.
10 - 20/25 cm, hor. C – Gravilha (“areão”, até 1 cm) com matriz arenosa, cor pardo-
-olivácea (2.5Y 4/3); maciça (single grain), com empacotamento médio-alto e triagem
moderada; porosidade muito escassa (só há ocos de empacotamento); limite inferior
abrupto, levemente ondulado, erosivo.
20/25 - 35 cm, hor. 2Ab – Franco arenoso com gravilha (“areão”, até 1 cm), de cor pardooliváceo-
clara (2.5Y 5/3); maciço (single grain), com empacotamento alto; resistente,
porosidade escassa (canais de raízes finos, vazios); escassa matéria orgânica bem incorporada,
limite inferior gradual linear.
35 - 75 cm, hor. 2C1 – Franco arenoso com gravilha (“areão”, até 1 cm), cor cinzento-
-pardacento-clara (2.5Y 6/2); maciço (single grain), empacotamento médio-alto; resistente,
porosidade muito escassa; limite inferior claro linear.
75 - 200 cm - hor. 2C2 – Sequência de cascalheira formada por elementos principalmente
rolados, de litologia siliciosa, com estratificação cruzada pouco reconhecível e matriz
arenosa de cor cinzento-pardacento-clara (2.5Y 6/2); limite inferior não observado.
Trata-se de uma sequência tipicamente aluvial, no topo da qual se formou um solo aluvial
(hor. 2Ab) com perfil pouco desenvolvido. Este solo foi sucessivamente cortado por uma reactivação
do processo aluvial, que levou o rio a “galgar” a superfície do terraço, acumulando o sedimento
aluvial (hor. C) sobre o qual se formou o solo actual, caracterizado por um horizonte orgânico de
escassa importância (hor. A). A espessura total dos sedimentos deste terraço não é conhecida.
O perfil observado sugere uma cronologia recente pela acumulação do sedimento aluvial — e
consequentemente pela formação do terraço — como é indicado pelo escasso desenvolvimento do
solo, pela falta de evidências de alteração e de características dia- ou pedogenéticas nas areias.
A reactivação do terraço parece ser, sempre a partir da evidência pedoestratigráfica, recente e poderá
estar relacionada com inundações recentes a partir de um leito em posição análoga ao actual, que
periodicamente terão alcançado a sua superfície superior. A reactivação do terraço foi igualmente
observada noutro ponto de afloramento desta unidade morfológica, entre Bernardo e Monte dos
Irmãos.
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REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 11
Mudanças na configuração hidrográfica por causa de enchentes em tempos históricos são
também documentadas pelo rio Sorraia mais a jusante, nas vizinhanças de Coruche (Daveau,
1996).
3.2. Terraço Q4a
Este terraço alcança uma notável expressão morfológica na área examinada, apresentando-se contínuo,
com superfície regular, ligeiramente inclinada para jusante e aplanada. Mais a jusante, o terraço
tem forte expressão morfológica ao longo da margem esquerda do vale do Sorraia que é, neste sector,
marcadamente assimétrico — talvez por causa de condicionantes neotectónicas (Daveau, 1996).
A regularidade e continuidade desta superfície morfológica determinam a sua utilização para
cultivo intensivo e mecanizado de cereais e hortícolas.
O esqueleto desta unidade morfológica foi observado em vários pontos e está formado por
cascalheira de espessura superior a 5 m, diminuindo em direcção para o eixo do vale. Alguns afloramentos
permitem observar a estrutura interna do terraço, assim como as suas variações laterais
e verticais.
O perfil de solo no topo deste terraço foi observado à distância aproximada de 300 m SSE do
Alminho (Fig. 3). Neste ponto, os sedimentos estão cortados antropicamente para obter uma
superfície rebaixada para cultivo de arroz, deixando assim em afloramento a cascalheira e o solo
desenvolvido acima dela. Nota-se, nos sedimentos fluviais, um horizonte Ck bem desenvolvido,
cimentado, formado a partir da cascalheira e das areias fluviais; a cascalheira consta de cascalho e
seixo bem rolado, bem seleccionado, regular, com imbricação (ver descrição abaixo).
Perfil 300 m SSE do Alminho (Figs. 3 e 10)
-2 - 0 cm, hor. O – Liteira vegetal formada por detrito orgânico não decomposto.
0 - 10 cm, hor. C – Cascalheira formada por elementos angulosos e sub-rolados, entre
1-3 cm, em matriz franco-arenosa grosseira (“areão”) composta por grãos subangulosos
e sub-rolados, de cor parda (7.5YR 5/4); resistente; limite inferior nítido ondulado.
10 - 25 cm, hor. 2Bt1 – Limo argiloso sem pedras, de cor pardo-avermelhada (6YR 5/4);
com agregação colunar e poliédrica angulosa (de segunda ordem), ambas pouco desenvolvidas;
resistente, com revestimentos (de argila?) ao longo das superfícies dos agregados
(a cor dos revestimentos é 6YR 4/4); limite inferior claro linear.
25 - 55 cm, hor. 2Bt2 – Limo argiloso com escassa fracção de “areão” de quartzo subanguloso
e ocasional cascalho miúdo rolado; cor pardo-amarelada (7.5YR 5/6); agregação
colunar e poliédrica angulosa, pouco desenvolvidas; muito resistente e com moderada
cimentação (silcrete?); revestimentos como em 2Bt1; limite inferior claro linear.
55 - 65 cm, hor. 2BCt – Tem as mesmas características de 2Bt2, mas contém “fantasmas”
(halos) de seixos rolados quase completamente meteorizados; limite inferior nítido linear.
65 - 90 cm, hor. 2C – Cascalheira formada por elementos rolados, bem seleccionados,
entre 2-6 cm, de elementos de rochas siliciosas (quartzo, granito, anfibolito, rochas básicas,
etc.), em matriz franco-arenoso-argilosa de cor pardo-avermelhada (6YR 5/4); o
limite inferior não foi observado.
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12 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Neste afloramento, detecta-se a presença de um
horizonte argílico Bt espesso e discretamente estruturado,
rubificado, argilificado, desenvolvido a partir da
cascalheira subjacente, com presença de horizontes de
transição (Fig. 3). O horizonte Bt está truncado por um
depósito mais recente (hor. C). Tendo em conta o grau
de desenvolvimento do solo e de meteorização das
rochas, pode-se lançar a hipótese de que o material aluvial
seja de idade plistocénica superior e que o solo
represente a evolução pedogenética ao longo do Plistocénico
final e do Holocénico.
A pouco metros de distância deste corte encontra-
se outro afloramento onde a cascalheira do terraço
Q4a está exposta por uma espessura superior a 5 m.
Fig. 3 Perfil de solo no topo do terraço Q4a (afloramento 300 m SSE
do Alminho).
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A cascalheira apresenta intercalações de areia e um potente perfil pedogenético desenvolvido no
seu topo, com um horizonte câmbico (Bw) truncado, de espessura aproximada de 60 cm e em
curso de argilificação — contém revestimentos pouco desenvolvidos — e, na sua base, um horizonte
petrocálcico Ckm, no interior do qual se detecta intensa cimentação das areias e da cascalheira
aluvial (respectivamente transformadas em grés e conglomerado). No topo do terraço
aluvial parece existir uma subtil cobertura de vertente, formada por matriz franco arenosa que
embala seixos rolados.
Em 2005, a limpeza ao longo do Canal do Sorraia pôs à luz um corte com comprimento total
aproximado de 70 m, que foi descrito de forma rápida, desenhando-se também um croqui à escala
aproximada (Figs. 4 e 5). O corte está grosso modo transversal ao eixo do vale actual e desenvolve-
-se a partir da superfície topográfica, ligeiramente inclinada para N. O levantamento deste corte
foi efectuado utilizando conjuntos estratigráficos, que são as entidades fundamentais da descrição
apresentada abaixo.
Fig. 4 Imagem composta do corte ao longo do Canal do
Sorraia (a escala, no centro da imagem, é 1 m - colagem:
José Paulo Ruas, IPA).
Fig. 5 Esboço do corte ao longo do Canal do Sorraia.
Escala aproximada e exagero vertical de 2.5 a 1 (os
códigos alfanuméricos indicam os conjuntos
estratigráficos identificados, ver texto).
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14 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Corte do Canal do Sorraia (Figs. 4 e 5)
SA – Solo actual sobre sedimento de vertente, limite inferior abrupto linear.
CL1 e CL2 – Depósitos de vertente; os dois estratos abrem em cunha a partir do topo do
terraço, aumentando de espessura para N; apresentam carácter maciço, desorganizado,
cor castanho-avermelhada (CL2, indicando a sua proveniência provável a partir da erosão
do paleossolo do conjunto SA) e castanho-acinzentada (CL1); o limite inferior de
CL2 é abrupto, inclinado para N.
CS – Lente truncada superiormente e côncava inferiormente, formada por cascalheira
com elementos de tamanho médio, rolados, em matriz arenosa avermelhada.
PS – Corpo lenticular, grosso modo paralelo à superfície topográfica, cortado para N
pela cascalheira de GR1; para S fecha encostando-se a GR2; é truncado superiormente e
reconhecem-se três horizontes:
Bw (PS1) – Limo com escassas pedras muito pequenas (milimétricas), angulosas e subangulosas,
pardo (7.5YR 4/4); maciço, pouco resistente, moderadamente poroso; o
limite inferior é claro linear e a espessura máxima é 20 cm;
BC (PS2) – Horizonte de transição entre Bw e C; limite inferior claro linear, espessura
máxima 20 cm;
C (PS3) – Sequência com gradação normal, de limo a “areolas” (areia grosseira com
limo), de cor amarelo-olivácea (2.5Y 6/5) homogénea na parte superior e com manchas
de descoloração na parte inferior; maciço, resistente, pouco poroso; localmente há algumas
pedras de tamanho maior (centímetros); limite inferior claro linear.
AF – Corpo lenticular, grosso modo paralelo à superfície topográfica, que fecha para S
encostando a GR2. É limo argiloso, sem pedras, pardo-amarelado-escuro (10YR 4/2);
tem agregação prismática de tamanho médio, moderadamente desenvolvida; é resistente,
contém matéria orgânica e o seu limite inferior é nítido linear.
AT – Espesso corpo de cascalheira e areia, cortado para N por uma superfície de erosão
(sobre a qual encostam os conjuntos PS e AF), em que se distinguem pelo menos quatro
unidades principais:
AT1 – Estrato de areia truncado superiormente, com características análogas a AT3
AT2 – Estrato de cascalheira média com características análogas à fracção mais grosseira
de AT4
AT3 – Corpo lenticular (abre de S para N) constituído por areia média e grosseira, rolada
e subrolada, com pouca gravilha muito fina; cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/6)
com manchas de cor irregulares, vermelho-amareladas (5YR 4/6) e descoloradas; apresenta
estratificação plana pouco reconhecível; limite inferior nítido linear.
AT4 – Sequência de cascalheira e areia com características fluviais típicas e estratificação
grosso modo plana; os níveis de cascalheira estão formados por elementos rolados e bem
rolados, siliciosos (são ausente litologias carbonatadas, os elementos mais representados
são de quartzo e quartzito, e subordinadamente são presentes litologias metamórficas
xistosas e gneissicas), organizados em feixes e imbricados, com suporte clástico; a matriz é
areia, com tamanho variável dependendo dos níveis, bem triada; na parte central do conjunto
reconhece-se uma faixa de areia bem triada, litologicamente madura, com estratificação
entrecruzada, laminação paralela e inclinada; no lado esquerdo são presentes vários
canais do tipo scour-and-fill; a cor é variável pela presença de manchas de cor oxidadas e
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reduzidas (mais ou menos acinzentadas ou avermelhadas); o limite inferior é abrupto,
apoiando acima da superfície de erosão que trunca o substrato pré-quaternário.
BR – Substrato pré-Quaternário: margas cinzentas (lado esquerdo do corte) e areias cinzentas
a estratificação pouco reconhecível, com níveis de cascalho (lado direito).
Este corte evidencia de forma exemplar o esqueleto interno da unidade morfológica “terraço
Q4a”, formada principalmente por materiais fluviais depostos por correntes tractivas de fundo e
com uma espessura total que alcança, neste ponto, 5 m. Sucessivamente à deposição do material
grosseiro, verificou-se uma fase de erosão parcial, com corte dos sedimentos do conjunto AT e
sedimentação de material mais fino, orgânico, por decantação, seguida da acumulação de material
de fundo e de inundação, com consequente desenvolvimento de um paleossolo. As últimas fases
documentam uma parcial reactivação dos processos de transporte de fundo (conjunto CS), cuja
dinâmica e cronologia não são claras, e a erosão lateral da sequência aluvial, que determina assim
a deposição das coluviões e a formação do próprio terraço — provavelmente durante o processo de
encaixe do rio (ou pouco depois) que dará origem ao terraço Q4b. Este afloramento documenta
assim uma dinâmica prolongada e complexa, que inclui pelo menos dois ciclos de acumulação,
separados entre eles por uma fase de erosão do próprio depósito fluvial — que assinala uma discrepância
entre a aparente uniformidade morfológica e o registro sedimentar.
3.3. Terraço Q3
É nesta unidade morfológica que se situam os sítios em
análise — Bernardo 1 (Fig. 7) e Alminho 1. A continuidade e
visibilidade morfológica deste terraço são inferiores às observadas
nos terraços Q4a e Q4b, sendo o sistema Q3 intensamente
dissecado pelas linhas de águas tributárias do Sor e
apresentando assim superfícies convexas. O próprio registo
estratigráfico demonstra que o depósito fluvial do terraço Q3
sofreu, após a sua deposição, significativos fenómenos de
erosão que decaparam uma espessura considerável da sua
parte superior.
O esqueleto sedimentar do terraço Q3 está exposto
em vários pontos da estrada Montargil-Santa Justa, que
amiúde corta os depósitos pertencentes a esta unidade
morfológica.
Perto do Alminho, observa-se, por exemplo, um corte
obtido numa pequena pedreira. Na parede desta, aflora uma
espessura de cerca de 4 m de cascalheira alternada com areias
estratificadas que patenteiam várias estruturas sedimentares,
nomeadamente estratificação entrecruzada, canais cortados (alguns do tipo scour-and-fill), ripples e antidunas.
O cascalho está, nas camadas individuais e considerando as características médias, bem seleccionado,
com elementos rolados e de litologia siliciosa; as areias apresentam fenómenos de oxido-redução
que determina a sua coloração variegada em tons avermelhados e amarelados.
Fig. 6 Sedimento de vertente com fracção
detrítica em forma de plaquetas, no topo do
terraço Q3 (Quinta da Seca).
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Um afloramento com características parecidas foi detectado ao longo do Raia, no corte da
estrada que leva para o Açude do Furadouro. Neste local, observam-se cerca de 5 m de alternâncias
entre areias avermelhadas e níveis irregulares de cascalho. A sequência aluvial apoia sobre uma
superfície de discordância cortada no substrato pré-Quaternário e é truncada superiormente por
depósitos de vertente — embora seja ainda possível reconhecer um resíduo de paleossolo avermelhado
(que não foi possível descrever). Sedimentos de vertente no topo deste terraço foram observados
também noutros pontos de afloramento, ex. perto da Quinta da Seca, em posição mais a
montante da área examinada (Fig. 6).
Os sedimentos do terraço Q3 apresentam características que indicam uma diagénese mais intensa
do que os sedimentos dos terraços Q4a e Q4b. Ainda assim, surpreende a ausência de paleossolos ou
solos bem desenvolvidos (esta ausência foi também detectada nos terraços Q2 e Q1), que poderá relacionar-
se com os efeitos da erosão prolongada à qual esta unidade morfológica foi sujeita no curso do
tempo. É também de realçar o facto de não ter sido possível, pelas condições geomorfológicas, observar
afloramentos de espessura significativa relativos aos depósitos dos terraços Q1 e Q2.
4. O sítio arqueológico do Bernardo 1
4.1. Enquadramento do sítio
O sítio do Bernardo 1 foi identificado em 1996 e foi alvo de campanhas de sondagens arqueológicas
em 1998, 2003, 2004 e 2005. No local já era conhecido um monumento funerário escavado
por Leite de Vasconcellos em 1910, a anta do Bernardo. Existiam referências a recolhas de
materiais nos terrenos à volta da anta (Vasconcellos, 1910; Cruz, 1986), no entanto, não foram
associados a um local de habitat. Foram realizadas sete sondagens arqueológicas, de dimensões
variáveis, implantadas em diferentes zonas do povoado e que perfazem 25 m2 de área escavada.
O sítio localiza-se, geomorfologicamente, sobre uma superfície referente ao terraço Q3 (Fig.
7), cujos sedimentos são visíveis no talude da estrada junto do sítio. Nesta posição, o sedimento
aluvial consta de uma cascalheira formada por elementos rolados e sub-rolados, com suporte clástico,
tamanho médio entre 5-10 cm e matriz arenosa fina e média.
Fig. 7 Vista do sítio do Bernardo 1 e do terraço Q3 a partir da vertente a montante do Alminho.
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A superfície superior do terraço é convexa,
recortada lateralmente por duas linhas de água e
inclinada para o eixo do vale.
Os vestígios encontram-se dispersos por uma
área relativamente grande que se estende desde o
sopé da suave vertente a montante do terraço até a
zona aplanada correspondente a este, situada mais
a sul. O terreno é intensamente agricultado e a
seara foi substituída, mais recentemente, pela
plantação de tabaco, sendo também usado para
pastoreio de gado bovino e ovino.
4.2. Estratigrafia
A análise estratigráfica do Bernardo baseiase
em duas descrições efectuadas em 2003 e 2004
(a nomenclatura segue as designações das unidades
de escavação — ou camadas).
Bernardo - Perfil da sondagem U38 (2003)
Unidade de escavação (UE) A sup., 0-20 cm – Sedimento franco-limoso-arenoso com
escassas pedras (cascalho rolado e ocasionais fragmentos angulosos) heterométricas (até 5
cm), sem litologias carbonatadas, com padrão de distribuição (DP) e de orientação (OP)
aleatório e contendo uma fracção de cascalho muito fino - areão grosseiro (4-10 mm) bem
rolado; cor pardo-acinzentado-muito-escura (10YR 3/2, húmida), pardo-amarelada
(10YR 5/4, seca); maciço, resistente, ligeiramente orgânico; limite inferior nítido linear.
UE A inf., 20-40 cm – Sedimento franco-limoso-arenoso (a fracção siltosa parece ser
ligeiramente inferior do que na UE A sup.), com pedras como em A sup.; cor parda
(10YR 4/3, húmida), pardo-amarelada (10YR 5/5, seca); maciço, resistente, sem matéria
orgânica; actividade biológica comum (canais de raízes e pequenas tocas); limite nítido
irregular à pequena escala.
UE B, 40-65 cm – Areia com fracção minoritária de limo e argila, com escassas pedras
(cascalho fino e ocasionais fragmentos angulosos), com OP e OD aleatório (também há
elementos com orientação vertical); fracção 4-10 mm presente, mas em quantidade
ligeiramente inferior; cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/4, húmida) e pardo-pálida
(1Y 6/3, seca); resistente, empacotamento elevado; actividade biológica comum; matéria
orgânica ausente; limite claro pouco reconhecível.
UE C, 65-90 cm - Areia com pouca argila e silte (a granulometria parece ligeiramente
mais grosseira do que na UE B), pedras como em B (mas parece haver uma quantidade
ligeiramente maior de seixos entre 4-6 cm); cor pardo-amarelado-escura (9YR 4/4,
húmida), pardo-amarelado-clara (1Y 6/4, seca); resistente, empacotamento elevado e
muito ligeira cimentação por enriquecimento em óxido de ferro; actividade biológica
comum; matéria orgânica ausente; limite inferior claro pouco reconhecível.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
Fig. 8 Bernardo 1. Corte N do quadrado H32 (a escala no
lado direito da imagem equivale a 1 m).
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18 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Bernardo - Perfil da sondagem U38 (2003) [cont.]
UE D, 70-105 cm – As características são iguais às da camada C, excepto pelas seguintes:
granulometria ligeiramente mais grosseira; presença de estratificação de baixo ângulo
de inclinação para SW, escassamente reconhecível, marcada pelas variações granulométricas
e pela concentração diferencial de óxido de ferro; escassez dos elementos angulosos,
muito raros (estatisticamente ausentes); presença de manchas de cor 9YR 5/4 pelo
enriquecimento de óxido de Ferro; limite inferior claro pouco reconhecível.
UE E, > 105 cm – Apresenta características idênticas a D, com maior expressão pelas
tendência já observadas na transição entre as camadas C e D: estratificação, presença de
faixas cimentadas por óxido ferro-manganesiano etc.; limite inferior não observado.
Bernardo - Perfil da sondagem H32 (2004) (fig. 8)
UE A sup., 0-15 cm – Areia siltosa com pedras muito escassas (acerca de 2%) formadas
por cascalho rolado e ocasionais fragmentos angulosos, heterométricas (até 7 cm), sem
litologias carbonatadas (principalmente quartzo, quartzito e granito), com padrão de
distribuição (DP) e de orientação (OP) aleatório e contendo uma fracção de cascalho
muito fino - areão grosseiro (4-10 mm) bem rolado; selecção moderada, packing médioalto;
cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/2, húmida); maciço, com tendência a formar
torrões e alguma laminaridade na parte superior; resistente, discretamente orgânico;
limite inferior nítido, linear.
UE A inf., 15-40 cm – Sedimento franco-arenoso-siltoso com pedras como em A sup.;
cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/2); selecção moderada, packing médio-alto; maciço,
resistente, discretamente orgânico; limite inferior abrupto linear, com algumas pedras
com OP horizontal a definir uma stone-line descontínua.
UE B, 40-70 cm – Sedimento franco-arenoso-siltoso com pedras como na camada A; cor
parda (8YR 4/4); resistente, packing médio-alto; actividade biológica comum (canais de
raízes e tocas preenchidos com material da camada A); matéria orgânica ausente; limite
difuso, pouco reconhecível, com variação gradual das características numa espessura
acerca de 30 cm.
UE C, 70-100 cm – Areia com pouca argila e silte, pedras como antes mas com ligeiro
incremento da quantidade (em particular dos seixos 4-6 cm); cor parda (9YR 4/4); resistente,
packing elevado e ligeira cimentação por óxido de ferro; actividade biológica
comum; matéria orgânica ausente; limite inferior não observado.
A situação observada nas duas sondagens é quase idêntica, com pequenas variações laterais
referentes ao conteúdo de matéria orgânica na camada A sup. e ao grau de alteração da camada B.
Na sucessão observada reconhecem-se dois grupos de sedimentos diferenciados, que indicam
dois conjuntos com características e génese diferentes.
O conjunto superior inclui as camadas A, B e C. Estas patenteiam características homogéneas
(pese o remeximento recente da camada A), que são de diagnóstico para indicar a sua origem, nomeadamente:
a moderada selecção granulométrica que indicia um ambiente sedimentar pouco selectivo
(sedimento de vertente e não fluvial); o OP e o DP dos elementos grosseiros, aleatório; a ausência
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REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 19
de estruturas sedimentares; a presença, na fracção grosseira, de elementos com forma diferente, rolados
ou angulosos. Para além disso, outras características indicam, juntamente com as evidências de
actividade biológica actual e subactual, que o sedimento sofreu importantes processos de bioturbação,
de impacto antrópico recente (na camada A) e de dissolução química (relacionada com o normal
desenvolvimento da pedogénese) que levaram ao desaparecimento de eventuais restos de fauna.
Neste conjunto superior reconhece-se um horizonte pedogenético Ap (horizonte de lavra, camada A
sup.) sobreposto a um mais antigo horizonte de lavra (hor. 2Ap, camada A inf.) e um horizonte pedogenético
profundo (hor. B, camada B) que patenteia uma escassa meteorização (Figs. 8 e 10).
Entre os processos de modificação pós-deposicional destaca-se a presença de fenómenos de
piping bem visíveis nas camadas B e C, incentivados pela abertura da sondagem, com intenso fluxo
de água subsuperficial que determina erosão e arrastamento das partículas mais finas.
As unidades D e E formam o conjunto inferior e conservam ainda evidência da organização
anterior, herdada, que os processos pedogenéticos não conseguiram disfarçar por completo. Trata-
-se de um depósito de transição entre o sedimento de vertente do conjunto superior e o depósito
fluvial subjacente.
O material arqueológico localiza-se na camada B, correspondente ao homónimo horizonte
pedogenético. A presença de estruturas pétreas e a própria distribuição vertical do material indicam
que se trata de material in situ, e não trazido pela movimentação de massa de sedimento ao longo da
vertente. Ainda assim, o espólio arqueológico sofreu significativos efeitos pós-deposicionais devido
aos processos pedogenéticos acima mencionados, que levaram ao desaparecimento de algumas classes
de objectos arqueológicos (ex. a fauna) e a parcial deslocação vertical doutros objectos.
4.3. Observações arqueológicas
O estudo do espólio das
intervenções mais recentes está
ainda a decorrer pelo que os
dados aqui apresentados são
preliminares, resultando das
observações efectuadas até ao
momento.
Embora com algumas variações
dentro de cada sondagem,
e de um modo geral, estão
representados dois momentos
de ocupação, o primeiro atribuível
ao Neolítico Antigo/
Médio e o segundo ao Neolítico
Final/Calcolítico. Os elementos
enqua- dráveis no Calcolítico
(pratos de bordo espessado) são
mais escassos e surgem habitualmente
na camada A, a qual se
encontra totalmente revolvida
pelas lavras. Ao que tudo indica,
Fig. 9 Espólio cerâmico dos sítios de Bernardo 1 e Alminho 1. 1 e 2 - Bernardo 1,
recipiente com mamilo e fragmento com incisão abaixo do bordo; 3, 4 e 5 -
Alminho 1, fragmentos com decoração formando espiga e “punto y raya”.
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20 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
a continuação do tratamento e do estudo do espólio irá permitir distinguir e caracterizar melhor os
diferentes momentos de ocupação ocorridos na jazida.
O conjunto cerâmico é composto, maioritariamente, por cerâmica lisa. A cerâmica decorada
é pouco frequente sendo de registar a presença de incisões, entre elas um fragmento com sulco
inciso abaixo do bordo (Fig. 9). Estão também presentes algumas carenas que poderão pertencer a
uma ocupação do final do Neolítico.
A indústria lítica é composta por um número significativo de artefactos de feição microlaminar
(lamelas, lâminas e alguns geométricos), estando assinaladas ao nível das matérias-primas o
sílex e materiais locais, dentro dos quais se destaca o quartzo. É ainda de registar a presença de
macro-utensilagem lítica, obtida maioritariamente a partir de seixos de quartzito, abundantes na
região.
A escavação detectou duas estruturas arqueológicas. A primeira foi identificada na camada C da
sondagem Q38 SW (que equivale à camada B da sondagem H32) e corresponde a uma estrutura de
combustão, em cuvette, de contorno irregular (planta mais ou menos circular), com 56 cm x 45 cm de
largura máxima e cerca de 12 cm de profundidade, sobre a qual existia uma concentração de elementos
pétreos e alguns termoclastos. O seu interior era preenchido por um sedimento de matriz arenosa
e de coloração cinzenta escura. Não preservava qualquer tipo de matéria orgânica nem continha
espólio arqueológico que lhe permita atribuir uma cronologia relativa.
A estrutura 2 foi identificada na quadrícula H32, o que obrigou ao alargamento da sondagem
e à realização de uma campanha suplementar em 2005. Trata-se de uma concentração de blocos de
média e grande dimensão, predominantemente de granito, que ocupa uma área de mais de 2 m2 e
que foi erguida na base da camada B.
Deverá corresponder a uma estrutura derrubada (no sentido N-S) que se encontra afectada
por processos pós-deposicionais. Apesar de ter sido totalmente escavada e levantada, colocam-se
ainda algumas questões sobre a sua morfologia e funcionalidade. Foram recolhidos vários termoclastos,
tanto na camada que embala a estrutura como nos intervalos das pedras que a compõe,
no entanto, com base nos dados actualmente disponíveis, considera-se que não se trata de
uma lareira e que os termoclastos poderão estar associados a estruturas de combustão desmanteladas.
5. O sítio arqueológico do Alminho 1
5.1. Enquadramento
O sítio arqueológico do Alminho 1 localiza-se, analogamente à estação do Bernardo 1, num
terraço do sistema Q3 parcialmente desmantelado pelos processos de erosão lateral e superficial.
Até ao momento, a intervenção no Alminho 1 resumiu-se à abertura das duas sondagens (2004),
localizadas em áreas distintas, e tinha como principais objectivos confirmar a localização do sítio,
conhecer a(s) cronologia(s) de ocupação e reconhecer a estratigrafia e o seu estado de conservação.
5.2. Estratigrafia
Descreveu-se, no Alminho, a sucessão estratigráfica da sondagem 2, localizada numa zona
com superfície horizontal, provavelmente regularizada por acção humana.
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REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 21
Alminho 1 - Perfil da sondagem 2 (Fig.10)
UE A, 0 - 10/18 cm - Areia siltosa com escassas pedras (acerca de 5%) formadas por seixos
rolados de quartzo (diâmetro máximo 3 cm) e fragmento angulosos de anfibolito,
granito e quartzo (máx. 8 cm — a proporção entre seixos rolados e fragmentos angulosos
é sensivelmente a mesma), com OD e DP aleatório; cor parda (9YR 4/2); agregação granular
descontínua escassamente desenvolvida; porosidade moderada (por canais finos e
médios) e escassas raízes finas; pouca matéria orgânica; selecção e empacotamento
moderados; limite inferior nítido ligeiramente ondulado.
UE B, 10/18 - 30 cm - Areia siltosa, micácea, com pedras como na camada A (embora os
elementos rolados sejam um bocado mais representados do que na camada A, com proporção
entre de 2/1), com OP e DP aleatória; cor parda (7.5YR 4/4); maciço (single grain);
porosidade escassa e empacotamento médio-alto; sem matéria orgânica; actividade biológica
escassa (canais de fauna preenchidos); limite inferior claro linear pouco reconhecível,
marcado pela presença de um fragmento tabular anguloso (b ~ 12 cm) de anfibolito
em posição horizontal, de provável origem antrópica.
UE C, 30-50 cm - Características iguais à camada B, excepto pelo aumento relativo
(escasso) dos seixos rolados; limite inferior claro linear pouco reconhecível.
UE D, 50 - > 68 cm - Areia siltosa com características parecidas à camada B, excepto por:
as pedras são mais abundantes (aproximadamente 10%) e o seixo rolado é dominante;
cor parda (7.5YR 5/4); limite inferior não observado.
A sucessão observada é muito parecida com a de Bernardo, embora não seja aqui possível detectar
a presença do perfil de solo patente nesse sítio. Isto leva a pensar que a parte superior da sucessão
tenha sido removida antropicamente em tempos recentes, por nivelamento ou terraplanagem, o que
é também sugerido pela regularidade da superfície no ponto de abertura da sondagem.
Outra sondagem (sondagem 1) foi aberta algumas dezenas de metros mais a montante (para
N), já fora do terraço aluvial Q3. Nesta sondagem aflora, em toda a espessura, material homogéneo
formado por sedimento franco siltoso, micáceo, com comuns (aproximadamente 15-20%) fragmentos
angulosos heterométricos (até 15 cm, mas o tamanho médio é entre 1-2 cm) de xisto,
anfibolito e (pouco) quartzo; localmente reconhece-se uma agregação poliédrica angulosa pouco
desenvolvida e a cor é vermelho-amarelada (5YR 4/6); é pouco poroso, resistente, sem matéria
orgânica e apoia directamente sobre o substrato geológico local.
Trata-se de sedimento de vertente e de desagregação derivado do substrato que aflora localmente.
Mais uma vez, a ausência de um perfil de solo desenvolvido no topo do sedimento indica
uma fase de erosão ou a sua remoção em tempos recentes.
5.3. Características arqueológicas
Tal como sucede no Bernardo 1, não foram identificados, até ao momento, restos orgânicos,
situação que limita fortemente o tipo de abordagem efectuada no estudo da jazida e impede a
obtenção de datações numéricas.
Na área mais a norte (sondagem 1), os vestígios arqueológicos superficiais não têm expressão
estratigráfica, situação que poderá resultar dos fenómenos erosivos que actuaram nesta
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
22 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
parte da vertente a montante do terraço Q3 ou do facto de não ter existido uma efectiva ocupação
da zona.
A ocupação neolítica foi identificada mais a sul, na sondagem 2, que está situada no terraço
Q3. O sítio está parcialmente destruído devido à construção de um armazém agrícola e à abertura
de socalcos para plantação de um antigo laranjal. A sondagem foi implantada numa faixa de terreno
que existe entre o armazém e o primeiro socalco.
Na sondagem 2, o material arqueológico surge na camada B e reporta-se, até à data, exclusivamente
a um momento que podemos inserir no Neolítico Antigo evoluído. As únicas categorias
artefactuais representadas são a pedra lascada e a cerâmica de fabrico manual. Foi registada a presença
de uma indústria lítica lamelar, maioritariamente em sílex. O conjunto cerâmico está ainda
mal caracterizado do ponto de vista morfológico (devido também à reduzida área de escavação) e
é composto por cerâmica lisa e decorada. Entre esta regista-se a presença de fragmentos com decoração
“punto y raya” e com motivo em espiga.
Terminada a intervenção no Bernardo 1, os trabalhos arqueológicos concentrar-se-ão neste
sítio, em particular com a escavação em área da faixa de terreno onde foi implantada a sondagem 2.
6. Discussão
Este artigo aproxima-se de forma preliminar a uma série de problemas complexos, que necessitariam
de uma abordagem mais demorada e pormenorizada, com vista a compreender as questões
relativas à evolução morfológica do território no Quaternário recente, às relações entre assentamento
e fisiografia, aos processos de formação dos sítios localizados a baixa profundidade1. São,
como se disse, questões complexas e esta discussão não irá mais longe de uma primeira tomada de
contacto para fazer o ponto da situação.
6.1. A evolução morfológica
Os traços gerais da evolução morfológica quaternária da região estão bem delineados na
bibliografia anterior, em particular para as primeiras fases do processo de encaixe, analisadas
extensivamente por A. Martins (1995, 1999, 2001), e para a evolução recente da área vestibular do
Sorraia (Daveau 1984, 1996; Daveau e Gonçalves, 1985). No entanto, os processos de transformação
da paisagem durante o Plistocénico médio e superior e o Holocénico não são conhecidos de
forma pormenorizada. A abordagem preliminar deste artigo não consente alcançar conclusões
significativas, mas pode adicionar algumas observações e hipóteses de trabalho para o futuro.
No que diz respeito aos terraços, a evidência pedoestratigráfica observada no campo confirma
a sequência cronológica relativa estabelecida pelos autores anteriores, a partir de critérios
geomorfológicos. Para os terraços inferiores, que ainda não sofreram efeitos erosivos significativos,
depara-se o seguinte: o terraço Q4a apresenta um perfil de solo no seu topo que, embora truncado,
se articula nos horizontes Bt (subdivido em sub-horizontes e com desenvolvimento de cor
próxima ao hue 5YR) e BCt, com uma espessura mínima do solum superior a 50 cm (Fig. 10); o terraço
Q4b, pelo contrário, não apresenta horizonte B desenvolvido e a espessura do solum do perfil
no topo alcança 15 cm. No que se refere aos terraços superiores não é possível, a partir dos dados
apresentados, construir uma referência pedoestratigráfica, por efeito da intensa erosão a que estiveram
sujeitos.
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No entanto, os efeitos da erosão podem também ser considerados como elementos de cronologia
relativa, no que diz respeito à continuidade lateral dos depósitos aluviais e à morfologia
superficial dos terraços: os terraços Q1 e Q2 são marcadamente descontínuos (pela dissecação dos
afluentes laterais do Sor) e com superfícies convexas; o sistema Q3 é mais contínuo, apresenta
superfícies convexas e não possui solo no topo; os terraços Q4a e Q4b são contínuos, planos em
superfície e os seus depósitos ainda estão selados pelos solos que se desenvolveram após concluída
a acumulação aluvial (v. também Fig. 2).
A intensidade da erosão foi avaliada calculando a área média de afloramento dos terraços de
cada sistema e confrontando-a com a extensão do fundo vale aluvial actual (Quadro II). Embora
este parâmetro possa ser susceptível de erros (ex. a área examinada é limitada e alguns terraços
estão representado só parcialmente), ainda assim fornece uma indicação do grau de conservação
dos terraços dos diferentes sistemas: é evidente (ver quadro II) que os terraços mais recentes se
organizam em afloramentos de superfície mais extensa, não tendo sido dissecados pela erosão dos
cursos de água tributários do Sor, enquanto os terraços mais altos (e mais antigos) afloram em
áreas limitadas, por efeito da intensa erosão a que foram sujeitos.
Fig. 10 Colunas estratigráficas simplificadas dos perfis do areeiro de Casas Novas e do afloramento do terraço Q4a (as letras
ao pé das colunas indicam os horizontes pedogenéticos) e dos sítios arqueológicos do Alminho 1 e do Bernardo 1 (as letras
indicam as unidades arqueológicas utilizadas na escavação). A largura das colunas é proporcional à granulometria das unidades
(A - argila, L - limo, S - areia, B - balastro) e a intensidade do tom de cinza indica a actuação da pedogénese. Legenda:
1 - horizontes Ap, com impacte agrário; 2 - incorporação de matéria orgânica; 3 - actividade biológica; 4 - hidromorfismo;
5 - meteorização; 6 - acumulação iluvial de argila; 7 - piping; 8 - estratificação ou laminação; 9 - posição do espólio arqueológico;
10 - posição das estruturas arqueológicas.
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24 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Quadro II. Sistemas de terraços aluviais do Rio Sor.
sistema perfil de solo no topo área média terraço
sigla cota relativa horizontes solum (km²) cfr f. vale actual
Q1 75 - 95 m não observado ?
0,131
5,65
Q2 50 - 70 m não observado ?
Q3 25 - 40 m não observado ? 0,095 4,10
Q4a 14 - 20 m Bt1-Bt2-Bct-C 55 cm 0,321 13,8
Q4b 6 - 8 m A-C 15 cm 0,872 37,9
a – O-C 0 cm (2,320) (100)
Apesar desta informação estratigráfica e cronológica relativa, faltam ainda elementos cronométricos
para a datação dos sucessivos processos de acumulação aluvial e de erosão que levaram à génese
do sistema de terraços escalonados da bacia do Sorraia. Neste sentido, os processos parecem ser mais
complexos do que a simples alternância entre fases de enchimento aluvial e de erosão, como é
demonstrado pelo “corte canal Sorraia” (Fig. 4) no caso do terraço Q4a, onde não há correspondência
entre a evidência morfológica e a estratigráfica por causa de uma reactivação com consequente reincisão
dos sedimentos, e pelo afloramento de Casas Novas (terraço Q4b), onde se observa evidência
de uma reactivação fluvial (fig. 10). Estamos assim perante uma situação complexa, em que à alternância
de fases de erosão e acumulação, controladas de forma primordial pelo levantamento tectónico,
se sobrepõem factores neotectónicos e relacionados com as mudanças climáticas.
6.2. As relações entre paisagem e assentamento
A relativa escassez de dados geomorfológicos impede, para já, desenvolver modelos diacrónicos
para inter-relacionar o sistema de assentamento e utilização do território com a paisagem na
região considerada. Não obstante, é possível adiantar algumas observações.
Na área considerada é possível diferenciar, grosso modo, algumas unidades de paisagem principais,
que são as seguintes: (1) os fundos de vale; (2) os terraços quaternários escalonados; (3) as
zonas embutidas relativas ao “Nível Mora Lamarosa” (ver supra); (4) os resíduos da superfície culminante;
(5) as áreas afeiçoadas em rochas do Maciço Hespérico. De acordo com os dados recolhidos
até ao momento, os sítios arqueológicos que podemos enquadrar no intervalo de tempo entre
Neolítico Antigo e Calcolítico, localizam-se geralmente a baixa altitude, na base do afloramento
relacionado com o maciço antigo de Montargil, numa estreita faixa que corresponde aos terrenos
cenozóicos que o contornam e em terraços do sistema Q3. É evidente que esta relação não se prende
apenas com as características geológicas e litológicas, mas sobretudo com as formas que se desenvolveram
a partir destas formações geológicas. Estas dão preferencialmente origem a superfícies
com baixo declive, em posição próxima das linhas de águas e com solos de textura relativamente
fina e, eventualmente, pedregosidade superficial baixa — factores que poderão ter orientado as
escolhas das comunidades de agricultores e pastores. Uma avaliação da organização do território
(ex. com o método da land evaluation da FAO-UNESCO, 1994) apoiada em SIG poderá levar à confirmação
ou rejeição desta hipótese preliminar. No entanto, os padrões de assentamento poderão
ser mais complexos do que parece (ver PONTIS 1999), sendo que existem sítios onde não há qualquer
correspondência entre os materiais de superfície e a evidência estratigráfica — como no caso
da sondagem 1 no Alminho 1 — ou áreas onde, perante contextos geomorfológicos semelhantes
aos descritos acima, não se observa uma distribuição análoga dos sítios — caso do terraço Q3 no
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trecho entre Ponte de Sor e a actual barragem de Montargil, onde não há registo de sítios neolíticos
ou calcolíticos em situação sub-superficial mas, por outro lado, encontram-se objectos de feição
paleolítica incorporados nas cascalheiras.
Quaisquer que sejam as razões destas aparentes assimetrias na distribuição dos sítios ou diferenças
entre registo arqueológico e evidência superficial não é dado saber até ao momento, e só a
análise atenta do contexto geomorfológico — que possa evidenciar eventuais acções diferenciais de
sedimentação ou erosão no âmbito de uma mesma unidade morfológica ou efeitos relacionados
com a neotectónica — e da situação arqueológica poderão, no futuro, revelar quais as escolhas efectuadas
pelos nossos antecessores e quais os efeitos de bias referentes às dinâmicas morfológicas.
6.3. Observações sobre os processos de formação em sítios de baixa profundidade
Evidência superficial, registo arqueológico, integridade e conservação do espólio dependem, em
primeira instância, dos processos responsáveis pela formação dos sítios arqueológicos, quer sejam
antrópicos ou naturais. Os casos do Alminho 1 e do Bernardo 1 representam situações quase paradigmáticas
de posições desfavoráveis para a conservação do registo arqueológico, pelas seguintes razões:
• a unidade morfológica (terraço Q3) onde os sítios se implantam é constituída por superfícies
relativamente antigas, sujeitas a processos de erosão lateral e superficial;
• trata-se de posições sem acumulação sedimentar significativa que leva peças estruturas
arqueológicas a ficar em posição próxima da superfície topográfica por intervalos de tempo
prolongados, sujeitando-as à acção continuada da pedogénese;
• a configuração morfológica dos terraços faz deles localizações preferenciais para a actividade
agrária, pelas mesmas razões que os fizeram apetecíveis para o assentamento pré-histórico:
baixo declive, vizinhança à água, baixa pedregosidade superficial, textura do solo
relativamente fina, etc. — o impacto das actividades antrópicas é assim intenso;
• o parent material sobre o qual se desenvolveram os solos destes sítios é formado principalmente
por cascalheira ou areia de composição siliciosa, com consequente rápida acidificação
do solo e condições de boa drenagem, ou seja oxidantes e secas — prejudiciais para a
conservação de restos ósseos e de malacofauna.
Portanto, o conjunto de evidências de processos pós-deposicionais observado nas estratificações
dos sítios examinados é de alguma forma intrínseco à sua localização e ao seu contexto. Entre as
evidências detectadas, podemos recordar: o desaparecimento da fauna devida aos processos de pedogénese;
a translocação de produtos solúveis no perfil; a bioturbação resultantes da acção das raízes e
da fauna edáfica; o piping; o impacte agrário pela acção da lavra. Este conjunto de processos não constitui,
infelizmente, uma excepção, mas sim a regra de muitos sítios arqueológicos desta cronologia
situados no mesmo contexto climático-ambiental e em unidades morfológicas análogas.
Agradecimentos
Diego E. Angelucci quer agradecer a todas as pessoas que colaboraram no reconhecimento de
campo, em particular a João Pedro Araújo Gomes, que participou activamente na campanha geoarqueológica
de 2005.
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NOTAS
* Instituto Português de Arqueologia
diego@ipa.min-cultura.pt
** Instituto Português de Arqueologia
mdeus@ipa.min-cultura.pt
1 Após a entrega deste artigo, integrou-se no IPA a Dra. Ana Costa,
em qualidade de estagiária do PEPAP, que irá desenvolver um
projecto para a criação de um SIG de âmbito geoarqueológico sobre
a região aqui examinada.
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Autores:
DIEGO E. ANGELUCCI
MANUELA DE DEUS
Fonte:http://www.ipa.min-cultura.pt/pubs/R...er/005-026.pdf
pré-histórica no baixo curso
do rio Sor: primeiras observações
geoarqueológicas
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R E S U M O
Apresenta-se aqui uma primeira abordagem para a compreensão das relações entre morfogénese
quaternária e assentamento pré-histórico a nível regional e em contextos controlados principalmente
por processos aluviais de idade plistocénica e holocénica. O estudo de caso analisado
corresponde ao baixo curso do rio Sor, no trecho entre a barragem de Montargil e a confluência
com o Raia, e apresenta um relevo relativamente suave, afeiçoado em sedimentos terciários e em
afloramentos isolados do Maciço Hespérico. A característica mais vincada da fisiografia regional
é o sistema de terraços aluviais escalonados, que revestem as encostas do vale do Sor e que
constituem pontos de assentamento preferencial para sítios pré-históricos, como as estações
neolíticas de Bernardo 1 e Alminho 1, aqui examinadas. Apresentam-se os dados geoarqueológicos
relativos a estes sítios e ao seu território, discutindo, a partir deles, as questões referentes à
evolução quaternária da paisagem, às inter-relações entre relevo e sistema de assentamento pré-
-histórico e aos processos formativos dos sítios arqueológicos de baixa profundidade.
A B S T R A C T The paper presents a first approach for analysing the relationships between
Quaternary morfogenesis and prehistoric settlement system at a regional scale, in a context
that is mainly controlled by Pleistocene and Holocene alluvial processes. The case study analysed
corresponds to the lower part of the River Sor’s drainage basin — in the reach included from
the Montargil dam to its confluence into the River Raia. The area’s relief is gentle and modelled
in Tertiary sediments, with isolated outcrops of the Hesperic Massif. The most obvious regional
physiographic feature is the staircase of alluvial terraces that exists along the hill slopes of
the Sor Valley, which represented favourite locations for prehistoric sites — as the Neolithic
ones examined here, Bernardo 1 and Alminho 1. We here present the geoarchaeological data
referred to these sites and to their territory and discuss, from this information, the features
related to the Quaternary evolution of the landscape, the inferences between relief and prehistoric
settlement system and the formation processes in shallow-stratified archaeological sites.
Geomorfologia e ocupação
pré-histórica no baixo curso
do rio Sor: primeiras observações
geoarqueológicas
DIEGO E. ANGELUCCI*
MANUELA DE DEUS**
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
6 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
1. Introdução
1.1. Objecto do artigo
O sistema de ocupação está intimamente relacionado com a paisagem e com as suas componentes
fisiográficas e geológicas. A compreensão das inter-relações entre o sistema natural e o
cultural é um dos elementos centrais da Geoarqueologia, disciplina que permite analisar, simultaneamente
e sob uma perspectiva diacrónica, as características do relevo, das rochas, dos sedimentos
e dos solos e o registo arqueológico de um dado território.
Este artigo pretende analisar, de forma preliminar e através da abordagem geoarqueológica, a
relação entre a organização do relevo e a ocupação pré-histórica da região delimitada pelo baixo
curso do Sor, ou seja, entre a barragem de Montargil e a confluência com o Raia. Não se trata de
um estudo exaustivo, mas de uma primeira abordagem que apresenta dados provenientes do trabalho
de campo, integrando-os no quadro dos conhecimentos actuais e propondo algumas hipóteses
de trabalho a desenvolver eventualmente em pesquisas futuras.
Parte das bacias dos rios Sor e Sorraia já foram objecto de análises geoarqueológicas no passado.
A região em redor de Ponte de Sor foi analisada por A. Martins (1999) e o vale do Sorraia foi
objecto de estudo por S. Daveau (1984, 1996), também em colaboração com V. Gonçalves (Daveau
e Gonçalves, 1985). Nesta contribuição concentraremos as nossas atenções no baixo curso do rio
Sor, nomeadamente no trecho incluído entre a barragem de Montargil e a confluência com o rio
Raia, onde se localizam dois dos sítios arqueológicos (Bernardo 1 e Alminho 1) sobre os quais têm
incidido os trabalhos do projecto PONTIS em anos recentes.
1.2. Notas metodológicas
Este trabalho insere-se no âmbito da colaboração celebrada entre IPA e PNTA com vista a
desenvolver estudos de cariz paleoambiental e geoarqueológico em sítios arqueológicos portugueses,
sendo enquadrado pelo projecto PNTA Neolitização do Médio e Baixo Vale do Sor (Acrónimo:
PONTIS III), apresentado em 2003 e que tem sido financiado — em termos logísticos e infraestruturais
— pela Câmara Municipal de Ponte de Sor.
O projecto geoarqueológico arrancou em 2003 com a finalidade de analisar a estratigrafia
dos sítios do Bernardo 1 e do Alminho 1. No entanto, logo se percebeu que a compreensão da situação
geomorfológica e quaternária da região era elemento primordial para explicar a génese do
registo arqueológico observado nos sítios, levando à realização de três curtas campanhas geoarqueológicas
para esse efeito. O reconhecimento geoarqueológico foi realizado em 2003 e 2004
(respectivamente durante dois fins-de-semana no mês de Setembro) e em 2005 (de 13 a 18 de
Setembro). O trabalho de campo centrou-se principalmente no levantamento e na descrição das
sucessões estratigráficas dos sítios de Bernardo 1 e Alminho 1 e no reconhecimento geomorfológico
preliminar dos arredores. Não admira, tendo em conta o tempo até agora dedicado para o
trabalho de campo, que os resultados obtidos sejam preliminares. Ainda assim cremos que mereçam
publicação, pelas questões arqueológicas e geoarqueológicas levantadas.
Do ponto de vista metodológico, o trabalho foi realizado com referência às técnicas clássicas da
geoarqueologia (v. Angelucci, 2003). As estratificações foram levantadas tendo em conta as principais
características pedológicas, sedimentológicas, estratigráficas e arqueológicas dos depósitos,
através da utilização da ficha de descrição de sedimentos e solos arqueológicos em uso no IPA.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 7
A paisagem à volta dos sítios foi objecto de reconhecimento geomorfológico expedito, com compilação
de um esboço preliminar que não segue as normativas da cartografia geomorfológica, representando
só uma primeira abordagem qualitativa à análise do relevo da região. Os dados geológicos foram
retirados da cartografia geológica disponível e averiguados durante o reconhecimento de campo.
2. Contexto geológico, geomorfológico e quaternário
Do ponto de vista administrativo, os
sítios arqueológicos localizam-se no Norte
alentejano, distrito de Portalegre, concelho de
Ponte de Sor e freguesia de Montargil (Fig. 1).
No entanto, a fisionomia da paisagem torna
evidente que se trata de uma área de transição
do Ribatejo para o Alentejo.
A área examinada é integrada na unidade
de paisagem da charneca ribatejana (Cancela
d’Abreu et al., 2004), que é considerada uma
extensa charneca, delimitada a Norte pelo
“Médio Tejo”, prolongando-se para Sul até
Vendas Novas e Pegões, delimitada a Oeste
pela “Lezíria do Tejo” e a Este pela peneplanície
alentejana, e que, na opinião dos mesmos
autores, é interrompida pelo vale do Sorraia,
unidade de paisagem claramente diferente
devido ao seu uso agrícola intensivo, controlada
pelo sistema morfodinâmico relacionado
com o rio Sorraia e seus afluentes.
A bacia hidrográfica do Sorraia é, em termos
de extensão, a maior entre as tributárias do
rio Tejo, do qual o Sorraia é afluente esquerdo.
Do ponto de vista fisiográfico, a região
de Ponte de Sor é recortada por uma densa rede de linhas de água tributárias das bacias hidrográficas
do rio Sor e, mais próximo de Montargil, do Sorraia.
Com a excepção das áreas de cabeceiras do rio Sor e da ribeira da Seda (e seus tributários), que
se localizam em áreas de afloramento do soco do Maciço Hespérico, a bacia do Sorraia desenvolve-se
principalmente nas coberturas sedimentares tardo-cenozóicas da bacia do Tejo, com afloramentos
locais do soco paleozóico (ex. em redor de Montargil, Touris e Mora — Zbyszewski e Carvalhosa,
1984; Martins, 1999). Esta situação geral reflecte-se na região abrangida por este trabalho, onde afloram
predominantemente sedimentos cenozóicos (terciários e quaternários) e, só de forma subordinada
nos arredores de Montargil, os terrenos paleozóicos pertencentes ao basamento (Figs. 1 e 2).
O sistema hidrográfico do Sorraia articula-se num conjunto de vales embutidos a partir da
superfície culminante da bacia do Tejo, cuja expressão sedimentar corresponde a um manto de
areias e conglomerados, formalizado com diferentes designações (v. Martins, 1999, p. 19 e bibliografia
mencionada), que define uma superfície planáltica. Os vales da bacia do Sorraia apresentam-se
embutidos nesta superfície culminante e as suas encostas articulam-se em terraços morfológicos
Fig. 1 Localização da área de estudo (rectângulo). A base
cartográfica é o esquema morfoestrutural de Portugal (Ribeiro,
1970). Legenda: 1 - maciços montanhosos e planaltos elevados;
2 - falhas / fracturas; 3 - granito; 4 - xisto; 5 - cristas de
quartzito; 6 - calcário paleozóico; 7 - depressão periférica;
8 - calcário jurássico; 9 - outras rochas sedimentares
mesozóicas; 10 - bacias e rochas sedimentares terciárias.
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8 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Fig. 2 Esboço geomorfológico do baixo curso do Rio Sor (modificado a partir do folha Montargil da CGP refx). Legenda: 1 - zona de afloramento dos terrenos do Maciço Hespérico; 2 - zona
de afloramento de sedimentos cenozóicos; 3 - terraços Q1 e Q2; 4 - terraços Q3; 5 - terraços Q4a; 6 - terraços Q4b; 7 - formações aluviais actuais e sub-actuais; 8 - curso de água; 9 - canais de
origem antrópica; 10 - curvas de nível (equidistância 50 m); 11 - localidades mencionadas no texto (Afl - afloramento no terraço Q4a 300 m SSE do Alminho; Alm - Alminho 1; Brn - Bernardo 1;
CS - corte do Canal do Sorraia; CN - Casas Novas).
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escalonados que constituem a evidência do embutimento da rede hidrográfica, processo que caracterizou
de forma marcante a evolução morfológica desta região durante o Quaternário.
O processo de encaixe começou a partir da mencionada superfície culminante, que sofreu uma
primeira fase de embutimento, provavelmente nas fases iniciais do Quaternário, originando o “Nível
Mora-Lamarosa” (NML — Teixeira, 1979; Martins e Barbosa, 1992; Martins, 1999). Tanto a superfície
culminante como o NML são reconhecíveis numa vasta área que abrange o baixo curso do Tejo e as
bacias dos seus principais afluentes (Martins, 1995). O sucessivo processo de embutimento da rede
hidrográfica, com formação de terraços aluviais, iniciou-se a partir do NML e continuou durante
todo o Quaternário, embora com alternância entre fases de erosão, estabilidade e acumulação.
A folha Montargil da Carta Geológica de Portugal (CGP — Zbyszewski e Carvalhosa, 1983),
indica a existência de cinco ordens de terraços aluviais, cujas características estão indicadas no
Quadro I (“cota relativa” indica o desnível a partir do rio).
Quadro I. Sistemas de terraços aluviais na bacia do Rio Sor.
CGP - Folha 31-D (Montargil) CGP - Folha 32-A (Ponte de Sor) Em redor de Ponte de Sor
(Zbyszewki e Carvalhosa, 1984) (Carvalho e Carvalhosa, 1982) (Martins, 1999, p. 22)
sigla cota relativa cronologia cota relativa cota absoluta
Q1 75 - 95 m Siciliano I 75 - 95 m
Q2 50 - 70 m Siciliano II 50 - 65 m 160 - 170 m
Q3 25 - 40 m Tirreniano I 25 - 40 m 130 m
Q4a 14 - 20 m Tirreniano II 8 - 15 m (Q4) 100 - 110 m
Q4b 6 - 8 m
Escassas são as informações sobre a cronologia dos terraços, assim como sobre a presença de
paleossolos ou a espessura máxima do sedimento aluvial — a notícia explicativa da CGP Montargil
indica que a espessura do depósito do terraço mais recente alcança 12 m (Zbyszewski e Carvalhosa,
1984, p. 37). Ainda assim, a sequência dos terraços parece correctamente interpretada e a sua representação
no mapa geológico é boa. Como indica a própria CGP, todo os terraços estão formados
por sedimentos tipicamente fluviais — cascalheiras com elementos bem rolados e areias mais ou
menos grosseiras, por vezes com intercalações argilosas (Zbyszewski e Carvalhosa, 1984).
No próximo capítulo, apresentar-se-ão algumas informações suplementares recolhidas
durante o reconhecimento de campo, durante o qual se realizou um levantamento preliminar,
muito aquém do nível analítico exigido por uma análise geomorfológica completa. A nomenclatura
dos terraços é mantida como na proposta da CGP (Fig. 2).
Além dos processos aluviais, os processos de vertente e os relacionados com a neotectónica
terão tido também um papel importante na génese da paisagem que hoje observamos. Contudo,
os terraços aluviais representam as formas mais destacadas deste território e muitos dos sítios
arqueológicos estão relacionados com eles, razão pela qual iremos concentrar a nossa atenção
sobre estas morfologias e a relativa documentação estratigráfica.
3. Os terraços recentes do baixo curso do Sor
O reconhecimento de campo realizado para o projecto PONTIS III levou à descrição de novos
afloramentos relativos aos terraços Q4b, Q4a e Q3. Apresentamos a seguir a informação estratigráfica
a partir do terraço mais baixo (mais recente).
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10 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
3.1. Terraço Q4b
É este o terraço mais baixo, poucos metros sobre o nível actual do rio. Ocupa uma área muito
extensa entre a barragem e a confluência com o rio Raia (Fig. 2). Foi observado entre Bernardo e Monte
dos Irmãos (Ponte de Sor) e no areeiro hoje desactivado perto de Casas Novas (Coruche). O terraço
tem superfície regular, talvez pelo intenso impacto agrário a que foi sujeito em tempos recentes, sendo
localização preferencial para cultivos intensivos (entre os quais predominam os arrozais) e areeiros.
No areeiro de Casas Novas observou-se um perfil objecto de descrição de semipormenor em
2004.
Perfil no areeiro de Casas Novas, terraço Q4b (fig. 10)
0 - 10 cm, horizonte (hor.) A – Areia com gravilha (“areão”, diâmetro máximo até 1 cm)
de cor pardo-acinzentada (2.5Y 5/2 - cor determinada em seco, como as restantes neste
corte); maciça (single grain), com empacotamento médio-alto e triagem moderada; porosidade
escassa (ocos de empacotamento e pequenos canais de raízes) e escassa matéria
orgânica bem incorporada; limite inferior claro linear.
10 - 20/25 cm, hor. C – Gravilha (“areão”, até 1 cm) com matriz arenosa, cor pardo-
-olivácea (2.5Y 4/3); maciça (single grain), com empacotamento médio-alto e triagem
moderada; porosidade muito escassa (só há ocos de empacotamento); limite inferior
abrupto, levemente ondulado, erosivo.
20/25 - 35 cm, hor. 2Ab – Franco arenoso com gravilha (“areão”, até 1 cm), de cor pardooliváceo-
clara (2.5Y 5/3); maciço (single grain), com empacotamento alto; resistente,
porosidade escassa (canais de raízes finos, vazios); escassa matéria orgânica bem incorporada,
limite inferior gradual linear.
35 - 75 cm, hor. 2C1 – Franco arenoso com gravilha (“areão”, até 1 cm), cor cinzento-
-pardacento-clara (2.5Y 6/2); maciço (single grain), empacotamento médio-alto; resistente,
porosidade muito escassa; limite inferior claro linear.
75 - 200 cm - hor. 2C2 – Sequência de cascalheira formada por elementos principalmente
rolados, de litologia siliciosa, com estratificação cruzada pouco reconhecível e matriz
arenosa de cor cinzento-pardacento-clara (2.5Y 6/2); limite inferior não observado.
Trata-se de uma sequência tipicamente aluvial, no topo da qual se formou um solo aluvial
(hor. 2Ab) com perfil pouco desenvolvido. Este solo foi sucessivamente cortado por uma reactivação
do processo aluvial, que levou o rio a “galgar” a superfície do terraço, acumulando o sedimento
aluvial (hor. C) sobre o qual se formou o solo actual, caracterizado por um horizonte orgânico de
escassa importância (hor. A). A espessura total dos sedimentos deste terraço não é conhecida.
O perfil observado sugere uma cronologia recente pela acumulação do sedimento aluvial — e
consequentemente pela formação do terraço — como é indicado pelo escasso desenvolvimento do
solo, pela falta de evidências de alteração e de características dia- ou pedogenéticas nas areias.
A reactivação do terraço parece ser, sempre a partir da evidência pedoestratigráfica, recente e poderá
estar relacionada com inundações recentes a partir de um leito em posição análoga ao actual, que
periodicamente terão alcançado a sua superfície superior. A reactivação do terraço foi igualmente
observada noutro ponto de afloramento desta unidade morfológica, entre Bernardo e Monte dos
Irmãos.
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Mudanças na configuração hidrográfica por causa de enchentes em tempos históricos são
também documentadas pelo rio Sorraia mais a jusante, nas vizinhanças de Coruche (Daveau,
1996).
3.2. Terraço Q4a
Este terraço alcança uma notável expressão morfológica na área examinada, apresentando-se contínuo,
com superfície regular, ligeiramente inclinada para jusante e aplanada. Mais a jusante, o terraço
tem forte expressão morfológica ao longo da margem esquerda do vale do Sorraia que é, neste sector,
marcadamente assimétrico — talvez por causa de condicionantes neotectónicas (Daveau, 1996).
A regularidade e continuidade desta superfície morfológica determinam a sua utilização para
cultivo intensivo e mecanizado de cereais e hortícolas.
O esqueleto desta unidade morfológica foi observado em vários pontos e está formado por
cascalheira de espessura superior a 5 m, diminuindo em direcção para o eixo do vale. Alguns afloramentos
permitem observar a estrutura interna do terraço, assim como as suas variações laterais
e verticais.
O perfil de solo no topo deste terraço foi observado à distância aproximada de 300 m SSE do
Alminho (Fig. 3). Neste ponto, os sedimentos estão cortados antropicamente para obter uma
superfície rebaixada para cultivo de arroz, deixando assim em afloramento a cascalheira e o solo
desenvolvido acima dela. Nota-se, nos sedimentos fluviais, um horizonte Ck bem desenvolvido,
cimentado, formado a partir da cascalheira e das areias fluviais; a cascalheira consta de cascalho e
seixo bem rolado, bem seleccionado, regular, com imbricação (ver descrição abaixo).
Perfil 300 m SSE do Alminho (Figs. 3 e 10)
-2 - 0 cm, hor. O – Liteira vegetal formada por detrito orgânico não decomposto.
0 - 10 cm, hor. C – Cascalheira formada por elementos angulosos e sub-rolados, entre
1-3 cm, em matriz franco-arenosa grosseira (“areão”) composta por grãos subangulosos
e sub-rolados, de cor parda (7.5YR 5/4); resistente; limite inferior nítido ondulado.
10 - 25 cm, hor. 2Bt1 – Limo argiloso sem pedras, de cor pardo-avermelhada (6YR 5/4);
com agregação colunar e poliédrica angulosa (de segunda ordem), ambas pouco desenvolvidas;
resistente, com revestimentos (de argila?) ao longo das superfícies dos agregados
(a cor dos revestimentos é 6YR 4/4); limite inferior claro linear.
25 - 55 cm, hor. 2Bt2 – Limo argiloso com escassa fracção de “areão” de quartzo subanguloso
e ocasional cascalho miúdo rolado; cor pardo-amarelada (7.5YR 5/6); agregação
colunar e poliédrica angulosa, pouco desenvolvidas; muito resistente e com moderada
cimentação (silcrete?); revestimentos como em 2Bt1; limite inferior claro linear.
55 - 65 cm, hor. 2BCt – Tem as mesmas características de 2Bt2, mas contém “fantasmas”
(halos) de seixos rolados quase completamente meteorizados; limite inferior nítido linear.
65 - 90 cm, hor. 2C – Cascalheira formada por elementos rolados, bem seleccionados,
entre 2-6 cm, de elementos de rochas siliciosas (quartzo, granito, anfibolito, rochas básicas,
etc.), em matriz franco-arenoso-argilosa de cor pardo-avermelhada (6YR 5/4); o
limite inferior não foi observado.
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Neste afloramento, detecta-se a presença de um
horizonte argílico Bt espesso e discretamente estruturado,
rubificado, argilificado, desenvolvido a partir da
cascalheira subjacente, com presença de horizontes de
transição (Fig. 3). O horizonte Bt está truncado por um
depósito mais recente (hor. C). Tendo em conta o grau
de desenvolvimento do solo e de meteorização das
rochas, pode-se lançar a hipótese de que o material aluvial
seja de idade plistocénica superior e que o solo
represente a evolução pedogenética ao longo do Plistocénico
final e do Holocénico.
A pouco metros de distância deste corte encontra-
se outro afloramento onde a cascalheira do terraço
Q4a está exposta por uma espessura superior a 5 m.
Fig. 3 Perfil de solo no topo do terraço Q4a (afloramento 300 m SSE
do Alminho).
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A cascalheira apresenta intercalações de areia e um potente perfil pedogenético desenvolvido no
seu topo, com um horizonte câmbico (Bw) truncado, de espessura aproximada de 60 cm e em
curso de argilificação — contém revestimentos pouco desenvolvidos — e, na sua base, um horizonte
petrocálcico Ckm, no interior do qual se detecta intensa cimentação das areias e da cascalheira
aluvial (respectivamente transformadas em grés e conglomerado). No topo do terraço
aluvial parece existir uma subtil cobertura de vertente, formada por matriz franco arenosa que
embala seixos rolados.
Em 2005, a limpeza ao longo do Canal do Sorraia pôs à luz um corte com comprimento total
aproximado de 70 m, que foi descrito de forma rápida, desenhando-se também um croqui à escala
aproximada (Figs. 4 e 5). O corte está grosso modo transversal ao eixo do vale actual e desenvolve-
-se a partir da superfície topográfica, ligeiramente inclinada para N. O levantamento deste corte
foi efectuado utilizando conjuntos estratigráficos, que são as entidades fundamentais da descrição
apresentada abaixo.
Fig. 4 Imagem composta do corte ao longo do Canal do
Sorraia (a escala, no centro da imagem, é 1 m - colagem:
José Paulo Ruas, IPA).
Fig. 5 Esboço do corte ao longo do Canal do Sorraia.
Escala aproximada e exagero vertical de 2.5 a 1 (os
códigos alfanuméricos indicam os conjuntos
estratigráficos identificados, ver texto).
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14 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Corte do Canal do Sorraia (Figs. 4 e 5)
SA – Solo actual sobre sedimento de vertente, limite inferior abrupto linear.
CL1 e CL2 – Depósitos de vertente; os dois estratos abrem em cunha a partir do topo do
terraço, aumentando de espessura para N; apresentam carácter maciço, desorganizado,
cor castanho-avermelhada (CL2, indicando a sua proveniência provável a partir da erosão
do paleossolo do conjunto SA) e castanho-acinzentada (CL1); o limite inferior de
CL2 é abrupto, inclinado para N.
CS – Lente truncada superiormente e côncava inferiormente, formada por cascalheira
com elementos de tamanho médio, rolados, em matriz arenosa avermelhada.
PS – Corpo lenticular, grosso modo paralelo à superfície topográfica, cortado para N
pela cascalheira de GR1; para S fecha encostando-se a GR2; é truncado superiormente e
reconhecem-se três horizontes:
Bw (PS1) – Limo com escassas pedras muito pequenas (milimétricas), angulosas e subangulosas,
pardo (7.5YR 4/4); maciço, pouco resistente, moderadamente poroso; o
limite inferior é claro linear e a espessura máxima é 20 cm;
BC (PS2) – Horizonte de transição entre Bw e C; limite inferior claro linear, espessura
máxima 20 cm;
C (PS3) – Sequência com gradação normal, de limo a “areolas” (areia grosseira com
limo), de cor amarelo-olivácea (2.5Y 6/5) homogénea na parte superior e com manchas
de descoloração na parte inferior; maciço, resistente, pouco poroso; localmente há algumas
pedras de tamanho maior (centímetros); limite inferior claro linear.
AF – Corpo lenticular, grosso modo paralelo à superfície topográfica, que fecha para S
encostando a GR2. É limo argiloso, sem pedras, pardo-amarelado-escuro (10YR 4/2);
tem agregação prismática de tamanho médio, moderadamente desenvolvida; é resistente,
contém matéria orgânica e o seu limite inferior é nítido linear.
AT – Espesso corpo de cascalheira e areia, cortado para N por uma superfície de erosão
(sobre a qual encostam os conjuntos PS e AF), em que se distinguem pelo menos quatro
unidades principais:
AT1 – Estrato de areia truncado superiormente, com características análogas a AT3
AT2 – Estrato de cascalheira média com características análogas à fracção mais grosseira
de AT4
AT3 – Corpo lenticular (abre de S para N) constituído por areia média e grosseira, rolada
e subrolada, com pouca gravilha muito fina; cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/6)
com manchas de cor irregulares, vermelho-amareladas (5YR 4/6) e descoloradas; apresenta
estratificação plana pouco reconhecível; limite inferior nítido linear.
AT4 – Sequência de cascalheira e areia com características fluviais típicas e estratificação
grosso modo plana; os níveis de cascalheira estão formados por elementos rolados e bem
rolados, siliciosos (são ausente litologias carbonatadas, os elementos mais representados
são de quartzo e quartzito, e subordinadamente são presentes litologias metamórficas
xistosas e gneissicas), organizados em feixes e imbricados, com suporte clástico; a matriz é
areia, com tamanho variável dependendo dos níveis, bem triada; na parte central do conjunto
reconhece-se uma faixa de areia bem triada, litologicamente madura, com estratificação
entrecruzada, laminação paralela e inclinada; no lado esquerdo são presentes vários
canais do tipo scour-and-fill; a cor é variável pela presença de manchas de cor oxidadas e
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 15
reduzidas (mais ou menos acinzentadas ou avermelhadas); o limite inferior é abrupto,
apoiando acima da superfície de erosão que trunca o substrato pré-quaternário.
BR – Substrato pré-Quaternário: margas cinzentas (lado esquerdo do corte) e areias cinzentas
a estratificação pouco reconhecível, com níveis de cascalho (lado direito).
Este corte evidencia de forma exemplar o esqueleto interno da unidade morfológica “terraço
Q4a”, formada principalmente por materiais fluviais depostos por correntes tractivas de fundo e
com uma espessura total que alcança, neste ponto, 5 m. Sucessivamente à deposição do material
grosseiro, verificou-se uma fase de erosão parcial, com corte dos sedimentos do conjunto AT e
sedimentação de material mais fino, orgânico, por decantação, seguida da acumulação de material
de fundo e de inundação, com consequente desenvolvimento de um paleossolo. As últimas fases
documentam uma parcial reactivação dos processos de transporte de fundo (conjunto CS), cuja
dinâmica e cronologia não são claras, e a erosão lateral da sequência aluvial, que determina assim
a deposição das coluviões e a formação do próprio terraço — provavelmente durante o processo de
encaixe do rio (ou pouco depois) que dará origem ao terraço Q4b. Este afloramento documenta
assim uma dinâmica prolongada e complexa, que inclui pelo menos dois ciclos de acumulação,
separados entre eles por uma fase de erosão do próprio depósito fluvial — que assinala uma discrepância
entre a aparente uniformidade morfológica e o registro sedimentar.
3.3. Terraço Q3
É nesta unidade morfológica que se situam os sítios em
análise — Bernardo 1 (Fig. 7) e Alminho 1. A continuidade e
visibilidade morfológica deste terraço são inferiores às observadas
nos terraços Q4a e Q4b, sendo o sistema Q3 intensamente
dissecado pelas linhas de águas tributárias do Sor e
apresentando assim superfícies convexas. O próprio registo
estratigráfico demonstra que o depósito fluvial do terraço Q3
sofreu, após a sua deposição, significativos fenómenos de
erosão que decaparam uma espessura considerável da sua
parte superior.
O esqueleto sedimentar do terraço Q3 está exposto
em vários pontos da estrada Montargil-Santa Justa, que
amiúde corta os depósitos pertencentes a esta unidade
morfológica.
Perto do Alminho, observa-se, por exemplo, um corte
obtido numa pequena pedreira. Na parede desta, aflora uma
espessura de cerca de 4 m de cascalheira alternada com areias
estratificadas que patenteiam várias estruturas sedimentares,
nomeadamente estratificação entrecruzada, canais cortados (alguns do tipo scour-and-fill), ripples e antidunas.
O cascalho está, nas camadas individuais e considerando as características médias, bem seleccionado,
com elementos rolados e de litologia siliciosa; as areias apresentam fenómenos de oxido-redução
que determina a sua coloração variegada em tons avermelhados e amarelados.
Fig. 6 Sedimento de vertente com fracção
detrítica em forma de plaquetas, no topo do
terraço Q3 (Quinta da Seca).
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16 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Um afloramento com características parecidas foi detectado ao longo do Raia, no corte da
estrada que leva para o Açude do Furadouro. Neste local, observam-se cerca de 5 m de alternâncias
entre areias avermelhadas e níveis irregulares de cascalho. A sequência aluvial apoia sobre uma
superfície de discordância cortada no substrato pré-Quaternário e é truncada superiormente por
depósitos de vertente — embora seja ainda possível reconhecer um resíduo de paleossolo avermelhado
(que não foi possível descrever). Sedimentos de vertente no topo deste terraço foram observados
também noutros pontos de afloramento, ex. perto da Quinta da Seca, em posição mais a
montante da área examinada (Fig. 6).
Os sedimentos do terraço Q3 apresentam características que indicam uma diagénese mais intensa
do que os sedimentos dos terraços Q4a e Q4b. Ainda assim, surpreende a ausência de paleossolos ou
solos bem desenvolvidos (esta ausência foi também detectada nos terraços Q2 e Q1), que poderá relacionar-
se com os efeitos da erosão prolongada à qual esta unidade morfológica foi sujeita no curso do
tempo. É também de realçar o facto de não ter sido possível, pelas condições geomorfológicas, observar
afloramentos de espessura significativa relativos aos depósitos dos terraços Q1 e Q2.
4. O sítio arqueológico do Bernardo 1
4.1. Enquadramento do sítio
O sítio do Bernardo 1 foi identificado em 1996 e foi alvo de campanhas de sondagens arqueológicas
em 1998, 2003, 2004 e 2005. No local já era conhecido um monumento funerário escavado
por Leite de Vasconcellos em 1910, a anta do Bernardo. Existiam referências a recolhas de
materiais nos terrenos à volta da anta (Vasconcellos, 1910; Cruz, 1986), no entanto, não foram
associados a um local de habitat. Foram realizadas sete sondagens arqueológicas, de dimensões
variáveis, implantadas em diferentes zonas do povoado e que perfazem 25 m2 de área escavada.
O sítio localiza-se, geomorfologicamente, sobre uma superfície referente ao terraço Q3 (Fig.
7), cujos sedimentos são visíveis no talude da estrada junto do sítio. Nesta posição, o sedimento
aluvial consta de uma cascalheira formada por elementos rolados e sub-rolados, com suporte clástico,
tamanho médio entre 5-10 cm e matriz arenosa fina e média.
Fig. 7 Vista do sítio do Bernardo 1 e do terraço Q3 a partir da vertente a montante do Alminho.
Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 17
A superfície superior do terraço é convexa,
recortada lateralmente por duas linhas de água e
inclinada para o eixo do vale.
Os vestígios encontram-se dispersos por uma
área relativamente grande que se estende desde o
sopé da suave vertente a montante do terraço até a
zona aplanada correspondente a este, situada mais
a sul. O terreno é intensamente agricultado e a
seara foi substituída, mais recentemente, pela
plantação de tabaco, sendo também usado para
pastoreio de gado bovino e ovino.
4.2. Estratigrafia
A análise estratigráfica do Bernardo baseiase
em duas descrições efectuadas em 2003 e 2004
(a nomenclatura segue as designações das unidades
de escavação — ou camadas).
Bernardo - Perfil da sondagem U38 (2003)
Unidade de escavação (UE) A sup., 0-20 cm – Sedimento franco-limoso-arenoso com
escassas pedras (cascalho rolado e ocasionais fragmentos angulosos) heterométricas (até 5
cm), sem litologias carbonatadas, com padrão de distribuição (DP) e de orientação (OP)
aleatório e contendo uma fracção de cascalho muito fino - areão grosseiro (4-10 mm) bem
rolado; cor pardo-acinzentado-muito-escura (10YR 3/2, húmida), pardo-amarelada
(10YR 5/4, seca); maciço, resistente, ligeiramente orgânico; limite inferior nítido linear.
UE A inf., 20-40 cm – Sedimento franco-limoso-arenoso (a fracção siltosa parece ser
ligeiramente inferior do que na UE A sup.), com pedras como em A sup.; cor parda
(10YR 4/3, húmida), pardo-amarelada (10YR 5/5, seca); maciço, resistente, sem matéria
orgânica; actividade biológica comum (canais de raízes e pequenas tocas); limite nítido
irregular à pequena escala.
UE B, 40-65 cm – Areia com fracção minoritária de limo e argila, com escassas pedras
(cascalho fino e ocasionais fragmentos angulosos), com OP e OD aleatório (também há
elementos com orientação vertical); fracção 4-10 mm presente, mas em quantidade
ligeiramente inferior; cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/4, húmida) e pardo-pálida
(1Y 6/3, seca); resistente, empacotamento elevado; actividade biológica comum; matéria
orgânica ausente; limite claro pouco reconhecível.
UE C, 65-90 cm - Areia com pouca argila e silte (a granulometria parece ligeiramente
mais grosseira do que na UE B), pedras como em B (mas parece haver uma quantidade
ligeiramente maior de seixos entre 4-6 cm); cor pardo-amarelado-escura (9YR 4/4,
húmida), pardo-amarelado-clara (1Y 6/4, seca); resistente, empacotamento elevado e
muito ligeira cimentação por enriquecimento em óxido de ferro; actividade biológica
comum; matéria orgânica ausente; limite inferior claro pouco reconhecível.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
Fig. 8 Bernardo 1. Corte N do quadrado H32 (a escala no
lado direito da imagem equivale a 1 m).
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18 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
Bernardo - Perfil da sondagem U38 (2003) [cont.]
UE D, 70-105 cm – As características são iguais às da camada C, excepto pelas seguintes:
granulometria ligeiramente mais grosseira; presença de estratificação de baixo ângulo
de inclinação para SW, escassamente reconhecível, marcada pelas variações granulométricas
e pela concentração diferencial de óxido de ferro; escassez dos elementos angulosos,
muito raros (estatisticamente ausentes); presença de manchas de cor 9YR 5/4 pelo
enriquecimento de óxido de Ferro; limite inferior claro pouco reconhecível.
UE E, > 105 cm – Apresenta características idênticas a D, com maior expressão pelas
tendência já observadas na transição entre as camadas C e D: estratificação, presença de
faixas cimentadas por óxido ferro-manganesiano etc.; limite inferior não observado.
Bernardo - Perfil da sondagem H32 (2004) (fig. 8)
UE A sup., 0-15 cm – Areia siltosa com pedras muito escassas (acerca de 2%) formadas
por cascalho rolado e ocasionais fragmentos angulosos, heterométricas (até 7 cm), sem
litologias carbonatadas (principalmente quartzo, quartzito e granito), com padrão de
distribuição (DP) e de orientação (OP) aleatório e contendo uma fracção de cascalho
muito fino - areão grosseiro (4-10 mm) bem rolado; selecção moderada, packing médioalto;
cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/2, húmida); maciço, com tendência a formar
torrões e alguma laminaridade na parte superior; resistente, discretamente orgânico;
limite inferior nítido, linear.
UE A inf., 15-40 cm – Sedimento franco-arenoso-siltoso com pedras como em A sup.;
cor pardo-amarelado-escura (10YR 4/2); selecção moderada, packing médio-alto; maciço,
resistente, discretamente orgânico; limite inferior abrupto linear, com algumas pedras
com OP horizontal a definir uma stone-line descontínua.
UE B, 40-70 cm – Sedimento franco-arenoso-siltoso com pedras como na camada A; cor
parda (8YR 4/4); resistente, packing médio-alto; actividade biológica comum (canais de
raízes e tocas preenchidos com material da camada A); matéria orgânica ausente; limite
difuso, pouco reconhecível, com variação gradual das características numa espessura
acerca de 30 cm.
UE C, 70-100 cm – Areia com pouca argila e silte, pedras como antes mas com ligeiro
incremento da quantidade (em particular dos seixos 4-6 cm); cor parda (9YR 4/4); resistente,
packing elevado e ligeira cimentação por óxido de ferro; actividade biológica
comum; matéria orgânica ausente; limite inferior não observado.
A situação observada nas duas sondagens é quase idêntica, com pequenas variações laterais
referentes ao conteúdo de matéria orgânica na camada A sup. e ao grau de alteração da camada B.
Na sucessão observada reconhecem-se dois grupos de sedimentos diferenciados, que indicam
dois conjuntos com características e génese diferentes.
O conjunto superior inclui as camadas A, B e C. Estas patenteiam características homogéneas
(pese o remeximento recente da camada A), que são de diagnóstico para indicar a sua origem, nomeadamente:
a moderada selecção granulométrica que indicia um ambiente sedimentar pouco selectivo
(sedimento de vertente e não fluvial); o OP e o DP dos elementos grosseiros, aleatório; a ausência
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 19
de estruturas sedimentares; a presença, na fracção grosseira, de elementos com forma diferente, rolados
ou angulosos. Para além disso, outras características indicam, juntamente com as evidências de
actividade biológica actual e subactual, que o sedimento sofreu importantes processos de bioturbação,
de impacto antrópico recente (na camada A) e de dissolução química (relacionada com o normal
desenvolvimento da pedogénese) que levaram ao desaparecimento de eventuais restos de fauna.
Neste conjunto superior reconhece-se um horizonte pedogenético Ap (horizonte de lavra, camada A
sup.) sobreposto a um mais antigo horizonte de lavra (hor. 2Ap, camada A inf.) e um horizonte pedogenético
profundo (hor. B, camada B) que patenteia uma escassa meteorização (Figs. 8 e 10).
Entre os processos de modificação pós-deposicional destaca-se a presença de fenómenos de
piping bem visíveis nas camadas B e C, incentivados pela abertura da sondagem, com intenso fluxo
de água subsuperficial que determina erosão e arrastamento das partículas mais finas.
As unidades D e E formam o conjunto inferior e conservam ainda evidência da organização
anterior, herdada, que os processos pedogenéticos não conseguiram disfarçar por completo. Trata-
-se de um depósito de transição entre o sedimento de vertente do conjunto superior e o depósito
fluvial subjacente.
O material arqueológico localiza-se na camada B, correspondente ao homónimo horizonte
pedogenético. A presença de estruturas pétreas e a própria distribuição vertical do material indicam
que se trata de material in situ, e não trazido pela movimentação de massa de sedimento ao longo da
vertente. Ainda assim, o espólio arqueológico sofreu significativos efeitos pós-deposicionais devido
aos processos pedogenéticos acima mencionados, que levaram ao desaparecimento de algumas classes
de objectos arqueológicos (ex. a fauna) e a parcial deslocação vertical doutros objectos.
4.3. Observações arqueológicas
O estudo do espólio das
intervenções mais recentes está
ainda a decorrer pelo que os
dados aqui apresentados são
preliminares, resultando das
observações efectuadas até ao
momento.
Embora com algumas variações
dentro de cada sondagem,
e de um modo geral, estão
representados dois momentos
de ocupação, o primeiro atribuível
ao Neolítico Antigo/
Médio e o segundo ao Neolítico
Final/Calcolítico. Os elementos
enqua- dráveis no Calcolítico
(pratos de bordo espessado) são
mais escassos e surgem habitualmente
na camada A, a qual se
encontra totalmente revolvida
pelas lavras. Ao que tudo indica,
Fig. 9 Espólio cerâmico dos sítios de Bernardo 1 e Alminho 1. 1 e 2 - Bernardo 1,
recipiente com mamilo e fragmento com incisão abaixo do bordo; 3, 4 e 5 -
Alminho 1, fragmentos com decoração formando espiga e “punto y raya”.
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20 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
a continuação do tratamento e do estudo do espólio irá permitir distinguir e caracterizar melhor os
diferentes momentos de ocupação ocorridos na jazida.
O conjunto cerâmico é composto, maioritariamente, por cerâmica lisa. A cerâmica decorada
é pouco frequente sendo de registar a presença de incisões, entre elas um fragmento com sulco
inciso abaixo do bordo (Fig. 9). Estão também presentes algumas carenas que poderão pertencer a
uma ocupação do final do Neolítico.
A indústria lítica é composta por um número significativo de artefactos de feição microlaminar
(lamelas, lâminas e alguns geométricos), estando assinaladas ao nível das matérias-primas o
sílex e materiais locais, dentro dos quais se destaca o quartzo. É ainda de registar a presença de
macro-utensilagem lítica, obtida maioritariamente a partir de seixos de quartzito, abundantes na
região.
A escavação detectou duas estruturas arqueológicas. A primeira foi identificada na camada C da
sondagem Q38 SW (que equivale à camada B da sondagem H32) e corresponde a uma estrutura de
combustão, em cuvette, de contorno irregular (planta mais ou menos circular), com 56 cm x 45 cm de
largura máxima e cerca de 12 cm de profundidade, sobre a qual existia uma concentração de elementos
pétreos e alguns termoclastos. O seu interior era preenchido por um sedimento de matriz arenosa
e de coloração cinzenta escura. Não preservava qualquer tipo de matéria orgânica nem continha
espólio arqueológico que lhe permita atribuir uma cronologia relativa.
A estrutura 2 foi identificada na quadrícula H32, o que obrigou ao alargamento da sondagem
e à realização de uma campanha suplementar em 2005. Trata-se de uma concentração de blocos de
média e grande dimensão, predominantemente de granito, que ocupa uma área de mais de 2 m2 e
que foi erguida na base da camada B.
Deverá corresponder a uma estrutura derrubada (no sentido N-S) que se encontra afectada
por processos pós-deposicionais. Apesar de ter sido totalmente escavada e levantada, colocam-se
ainda algumas questões sobre a sua morfologia e funcionalidade. Foram recolhidos vários termoclastos,
tanto na camada que embala a estrutura como nos intervalos das pedras que a compõe,
no entanto, com base nos dados actualmente disponíveis, considera-se que não se trata de
uma lareira e que os termoclastos poderão estar associados a estruturas de combustão desmanteladas.
5. O sítio arqueológico do Alminho 1
5.1. Enquadramento
O sítio arqueológico do Alminho 1 localiza-se, analogamente à estação do Bernardo 1, num
terraço do sistema Q3 parcialmente desmantelado pelos processos de erosão lateral e superficial.
Até ao momento, a intervenção no Alminho 1 resumiu-se à abertura das duas sondagens (2004),
localizadas em áreas distintas, e tinha como principais objectivos confirmar a localização do sítio,
conhecer a(s) cronologia(s) de ocupação e reconhecer a estratigrafia e o seu estado de conservação.
5.2. Estratigrafia
Descreveu-se, no Alminho, a sucessão estratigráfica da sondagem 2, localizada numa zona
com superfície horizontal, provavelmente regularizada por acção humana.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 21
Alminho 1 - Perfil da sondagem 2 (Fig.10)
UE A, 0 - 10/18 cm - Areia siltosa com escassas pedras (acerca de 5%) formadas por seixos
rolados de quartzo (diâmetro máximo 3 cm) e fragmento angulosos de anfibolito,
granito e quartzo (máx. 8 cm — a proporção entre seixos rolados e fragmentos angulosos
é sensivelmente a mesma), com OD e DP aleatório; cor parda (9YR 4/2); agregação granular
descontínua escassamente desenvolvida; porosidade moderada (por canais finos e
médios) e escassas raízes finas; pouca matéria orgânica; selecção e empacotamento
moderados; limite inferior nítido ligeiramente ondulado.
UE B, 10/18 - 30 cm - Areia siltosa, micácea, com pedras como na camada A (embora os
elementos rolados sejam um bocado mais representados do que na camada A, com proporção
entre de 2/1), com OP e DP aleatória; cor parda (7.5YR 4/4); maciço (single grain);
porosidade escassa e empacotamento médio-alto; sem matéria orgânica; actividade biológica
escassa (canais de fauna preenchidos); limite inferior claro linear pouco reconhecível,
marcado pela presença de um fragmento tabular anguloso (b ~ 12 cm) de anfibolito
em posição horizontal, de provável origem antrópica.
UE C, 30-50 cm - Características iguais à camada B, excepto pelo aumento relativo
(escasso) dos seixos rolados; limite inferior claro linear pouco reconhecível.
UE D, 50 - > 68 cm - Areia siltosa com características parecidas à camada B, excepto por:
as pedras são mais abundantes (aproximadamente 10%) e o seixo rolado é dominante;
cor parda (7.5YR 5/4); limite inferior não observado.
A sucessão observada é muito parecida com a de Bernardo, embora não seja aqui possível detectar
a presença do perfil de solo patente nesse sítio. Isto leva a pensar que a parte superior da sucessão
tenha sido removida antropicamente em tempos recentes, por nivelamento ou terraplanagem, o que
é também sugerido pela regularidade da superfície no ponto de abertura da sondagem.
Outra sondagem (sondagem 1) foi aberta algumas dezenas de metros mais a montante (para
N), já fora do terraço aluvial Q3. Nesta sondagem aflora, em toda a espessura, material homogéneo
formado por sedimento franco siltoso, micáceo, com comuns (aproximadamente 15-20%) fragmentos
angulosos heterométricos (até 15 cm, mas o tamanho médio é entre 1-2 cm) de xisto,
anfibolito e (pouco) quartzo; localmente reconhece-se uma agregação poliédrica angulosa pouco
desenvolvida e a cor é vermelho-amarelada (5YR 4/6); é pouco poroso, resistente, sem matéria
orgânica e apoia directamente sobre o substrato geológico local.
Trata-se de sedimento de vertente e de desagregação derivado do substrato que aflora localmente.
Mais uma vez, a ausência de um perfil de solo desenvolvido no topo do sedimento indica
uma fase de erosão ou a sua remoção em tempos recentes.
5.3. Características arqueológicas
Tal como sucede no Bernardo 1, não foram identificados, até ao momento, restos orgânicos,
situação que limita fortemente o tipo de abordagem efectuada no estudo da jazida e impede a
obtenção de datações numéricas.
Na área mais a norte (sondagem 1), os vestígios arqueológicos superficiais não têm expressão
estratigráfica, situação que poderá resultar dos fenómenos erosivos que actuaram nesta
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
22 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26
parte da vertente a montante do terraço Q3 ou do facto de não ter existido uma efectiva ocupação
da zona.
A ocupação neolítica foi identificada mais a sul, na sondagem 2, que está situada no terraço
Q3. O sítio está parcialmente destruído devido à construção de um armazém agrícola e à abertura
de socalcos para plantação de um antigo laranjal. A sondagem foi implantada numa faixa de terreno
que existe entre o armazém e o primeiro socalco.
Na sondagem 2, o material arqueológico surge na camada B e reporta-se, até à data, exclusivamente
a um momento que podemos inserir no Neolítico Antigo evoluído. As únicas categorias
artefactuais representadas são a pedra lascada e a cerâmica de fabrico manual. Foi registada a presença
de uma indústria lítica lamelar, maioritariamente em sílex. O conjunto cerâmico está ainda
mal caracterizado do ponto de vista morfológico (devido também à reduzida área de escavação) e
é composto por cerâmica lisa e decorada. Entre esta regista-se a presença de fragmentos com decoração
“punto y raya” e com motivo em espiga.
Terminada a intervenção no Bernardo 1, os trabalhos arqueológicos concentrar-se-ão neste
sítio, em particular com a escavação em área da faixa de terreno onde foi implantada a sondagem 2.
6. Discussão
Este artigo aproxima-se de forma preliminar a uma série de problemas complexos, que necessitariam
de uma abordagem mais demorada e pormenorizada, com vista a compreender as questões
relativas à evolução morfológica do território no Quaternário recente, às relações entre assentamento
e fisiografia, aos processos de formação dos sítios localizados a baixa profundidade1. São,
como se disse, questões complexas e esta discussão não irá mais longe de uma primeira tomada de
contacto para fazer o ponto da situação.
6.1. A evolução morfológica
Os traços gerais da evolução morfológica quaternária da região estão bem delineados na
bibliografia anterior, em particular para as primeiras fases do processo de encaixe, analisadas
extensivamente por A. Martins (1995, 1999, 2001), e para a evolução recente da área vestibular do
Sorraia (Daveau 1984, 1996; Daveau e Gonçalves, 1985). No entanto, os processos de transformação
da paisagem durante o Plistocénico médio e superior e o Holocénico não são conhecidos de
forma pormenorizada. A abordagem preliminar deste artigo não consente alcançar conclusões
significativas, mas pode adicionar algumas observações e hipóteses de trabalho para o futuro.
No que diz respeito aos terraços, a evidência pedoestratigráfica observada no campo confirma
a sequência cronológica relativa estabelecida pelos autores anteriores, a partir de critérios
geomorfológicos. Para os terraços inferiores, que ainda não sofreram efeitos erosivos significativos,
depara-se o seguinte: o terraço Q4a apresenta um perfil de solo no seu topo que, embora truncado,
se articula nos horizontes Bt (subdivido em sub-horizontes e com desenvolvimento de cor
próxima ao hue 5YR) e BCt, com uma espessura mínima do solum superior a 50 cm (Fig. 10); o terraço
Q4b, pelo contrário, não apresenta horizonte B desenvolvido e a espessura do solum do perfil
no topo alcança 15 cm. No que se refere aos terraços superiores não é possível, a partir dos dados
apresentados, construir uma referência pedoestratigráfica, por efeito da intensa erosão a que estiveram
sujeitos.
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 23
No entanto, os efeitos da erosão podem também ser considerados como elementos de cronologia
relativa, no que diz respeito à continuidade lateral dos depósitos aluviais e à morfologia
superficial dos terraços: os terraços Q1 e Q2 são marcadamente descontínuos (pela dissecação dos
afluentes laterais do Sor) e com superfícies convexas; o sistema Q3 é mais contínuo, apresenta
superfícies convexas e não possui solo no topo; os terraços Q4a e Q4b são contínuos, planos em
superfície e os seus depósitos ainda estão selados pelos solos que se desenvolveram após concluída
a acumulação aluvial (v. também Fig. 2).
A intensidade da erosão foi avaliada calculando a área média de afloramento dos terraços de
cada sistema e confrontando-a com a extensão do fundo vale aluvial actual (Quadro II). Embora
este parâmetro possa ser susceptível de erros (ex. a área examinada é limitada e alguns terraços
estão representado só parcialmente), ainda assim fornece uma indicação do grau de conservação
dos terraços dos diferentes sistemas: é evidente (ver quadro II) que os terraços mais recentes se
organizam em afloramentos de superfície mais extensa, não tendo sido dissecados pela erosão dos
cursos de água tributários do Sor, enquanto os terraços mais altos (e mais antigos) afloram em
áreas limitadas, por efeito da intensa erosão a que foram sujeitos.
Fig. 10 Colunas estratigráficas simplificadas dos perfis do areeiro de Casas Novas e do afloramento do terraço Q4a (as letras
ao pé das colunas indicam os horizontes pedogenéticos) e dos sítios arqueológicos do Alminho 1 e do Bernardo 1 (as letras
indicam as unidades arqueológicas utilizadas na escavação). A largura das colunas é proporcional à granulometria das unidades
(A - argila, L - limo, S - areia, B - balastro) e a intensidade do tom de cinza indica a actuação da pedogénese. Legenda:
1 - horizontes Ap, com impacte agrário; 2 - incorporação de matéria orgânica; 3 - actividade biológica; 4 - hidromorfismo;
5 - meteorização; 6 - acumulação iluvial de argila; 7 - piping; 8 - estratificação ou laminação; 9 - posição do espólio arqueológico;
10 - posição das estruturas arqueológicas.
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Quadro II. Sistemas de terraços aluviais do Rio Sor.
sistema perfil de solo no topo área média terraço
sigla cota relativa horizontes solum (km²) cfr f. vale actual
Q1 75 - 95 m não observado ?
0,131
5,65
Q2 50 - 70 m não observado ?
Q3 25 - 40 m não observado ? 0,095 4,10
Q4a 14 - 20 m Bt1-Bt2-Bct-C 55 cm 0,321 13,8
Q4b 6 - 8 m A-C 15 cm 0,872 37,9
a – O-C 0 cm (2,320) (100)
Apesar desta informação estratigráfica e cronológica relativa, faltam ainda elementos cronométricos
para a datação dos sucessivos processos de acumulação aluvial e de erosão que levaram à génese
do sistema de terraços escalonados da bacia do Sorraia. Neste sentido, os processos parecem ser mais
complexos do que a simples alternância entre fases de enchimento aluvial e de erosão, como é
demonstrado pelo “corte canal Sorraia” (Fig. 4) no caso do terraço Q4a, onde não há correspondência
entre a evidência morfológica e a estratigráfica por causa de uma reactivação com consequente reincisão
dos sedimentos, e pelo afloramento de Casas Novas (terraço Q4b), onde se observa evidência
de uma reactivação fluvial (fig. 10). Estamos assim perante uma situação complexa, em que à alternância
de fases de erosão e acumulação, controladas de forma primordial pelo levantamento tectónico,
se sobrepõem factores neotectónicos e relacionados com as mudanças climáticas.
6.2. As relações entre paisagem e assentamento
A relativa escassez de dados geomorfológicos impede, para já, desenvolver modelos diacrónicos
para inter-relacionar o sistema de assentamento e utilização do território com a paisagem na
região considerada. Não obstante, é possível adiantar algumas observações.
Na área considerada é possível diferenciar, grosso modo, algumas unidades de paisagem principais,
que são as seguintes: (1) os fundos de vale; (2) os terraços quaternários escalonados; (3) as
zonas embutidas relativas ao “Nível Mora Lamarosa” (ver supra); (4) os resíduos da superfície culminante;
(5) as áreas afeiçoadas em rochas do Maciço Hespérico. De acordo com os dados recolhidos
até ao momento, os sítios arqueológicos que podemos enquadrar no intervalo de tempo entre
Neolítico Antigo e Calcolítico, localizam-se geralmente a baixa altitude, na base do afloramento
relacionado com o maciço antigo de Montargil, numa estreita faixa que corresponde aos terrenos
cenozóicos que o contornam e em terraços do sistema Q3. É evidente que esta relação não se prende
apenas com as características geológicas e litológicas, mas sobretudo com as formas que se desenvolveram
a partir destas formações geológicas. Estas dão preferencialmente origem a superfícies
com baixo declive, em posição próxima das linhas de águas e com solos de textura relativamente
fina e, eventualmente, pedregosidade superficial baixa — factores que poderão ter orientado as
escolhas das comunidades de agricultores e pastores. Uma avaliação da organização do território
(ex. com o método da land evaluation da FAO-UNESCO, 1994) apoiada em SIG poderá levar à confirmação
ou rejeição desta hipótese preliminar. No entanto, os padrões de assentamento poderão
ser mais complexos do que parece (ver PONTIS 1999), sendo que existem sítios onde não há qualquer
correspondência entre os materiais de superfície e a evidência estratigráfica — como no caso
da sondagem 1 no Alminho 1 — ou áreas onde, perante contextos geomorfológicos semelhantes
aos descritos acima, não se observa uma distribuição análoga dos sítios — caso do terraço Q3 no
Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas Diego E. Angelucci Manuela de Deus
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 9. número 2. 2006, p. 5-26 25
trecho entre Ponte de Sor e a actual barragem de Montargil, onde não há registo de sítios neolíticos
ou calcolíticos em situação sub-superficial mas, por outro lado, encontram-se objectos de feição
paleolítica incorporados nas cascalheiras.
Quaisquer que sejam as razões destas aparentes assimetrias na distribuição dos sítios ou diferenças
entre registo arqueológico e evidência superficial não é dado saber até ao momento, e só a
análise atenta do contexto geomorfológico — que possa evidenciar eventuais acções diferenciais de
sedimentação ou erosão no âmbito de uma mesma unidade morfológica ou efeitos relacionados
com a neotectónica — e da situação arqueológica poderão, no futuro, revelar quais as escolhas efectuadas
pelos nossos antecessores e quais os efeitos de bias referentes às dinâmicas morfológicas.
6.3. Observações sobre os processos de formação em sítios de baixa profundidade
Evidência superficial, registo arqueológico, integridade e conservação do espólio dependem, em
primeira instância, dos processos responsáveis pela formação dos sítios arqueológicos, quer sejam
antrópicos ou naturais. Os casos do Alminho 1 e do Bernardo 1 representam situações quase paradigmáticas
de posições desfavoráveis para a conservação do registo arqueológico, pelas seguintes razões:
• a unidade morfológica (terraço Q3) onde os sítios se implantam é constituída por superfícies
relativamente antigas, sujeitas a processos de erosão lateral e superficial;
• trata-se de posições sem acumulação sedimentar significativa que leva peças estruturas
arqueológicas a ficar em posição próxima da superfície topográfica por intervalos de tempo
prolongados, sujeitando-as à acção continuada da pedogénese;
• a configuração morfológica dos terraços faz deles localizações preferenciais para a actividade
agrária, pelas mesmas razões que os fizeram apetecíveis para o assentamento pré-histórico:
baixo declive, vizinhança à água, baixa pedregosidade superficial, textura do solo
relativamente fina, etc. — o impacto das actividades antrópicas é assim intenso;
• o parent material sobre o qual se desenvolveram os solos destes sítios é formado principalmente
por cascalheira ou areia de composição siliciosa, com consequente rápida acidificação
do solo e condições de boa drenagem, ou seja oxidantes e secas — prejudiciais para a
conservação de restos ósseos e de malacofauna.
Portanto, o conjunto de evidências de processos pós-deposicionais observado nas estratificações
dos sítios examinados é de alguma forma intrínseco à sua localização e ao seu contexto. Entre as
evidências detectadas, podemos recordar: o desaparecimento da fauna devida aos processos de pedogénese;
a translocação de produtos solúveis no perfil; a bioturbação resultantes da acção das raízes e
da fauna edáfica; o piping; o impacte agrário pela acção da lavra. Este conjunto de processos não constitui,
infelizmente, uma excepção, mas sim a regra de muitos sítios arqueológicos desta cronologia
situados no mesmo contexto climático-ambiental e em unidades morfológicas análogas.
Agradecimentos
Diego E. Angelucci quer agradecer a todas as pessoas que colaboraram no reconhecimento de
campo, em particular a João Pedro Araújo Gomes, que participou activamente na campanha geoarqueológica
de 2005.
Diego E. Angelucci Manuela de Deus Geomorfologia e ocupação pré-histórica no baixo curso do rio Sor: primeiras observações geoarqueológicas
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NOTAS
* Instituto Português de Arqueologia
diego@ipa.min-cultura.pt
** Instituto Português de Arqueologia
mdeus@ipa.min-cultura.pt
1 Após a entrega deste artigo, integrou-se no IPA a Dra. Ana Costa,
em qualidade de estagiária do PEPAP, que irá desenvolver um
projecto para a criação de um SIG de âmbito geoarqueológico sobre
a região aqui examinada.
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ZBYSZEWSKI, G.; CARVALHOSA, A. B. (1984) - Notícia explicativa da Folha 31-D (Montargil). Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal.
Autores:
DIEGO E. ANGELUCCI
MANUELA DE DEUS
Fonte:http://www.ipa.min-cultura.pt/pubs/R...er/005-026.pdf
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