.
SATORI
.
"... Um dos primeiros despertares deste género a que assisti deu-se há muitos anos. A campainha de minha casa tocou por volta das onze da noite. A voz carregada de ansiedade da minha vizinha Ethel soou através do intercomunicador: «Precisamos de falar, é muito importante. Deixe-me entrar, por favor.» Ethel era uma mulher de meia-idade, inteligente e muito instruída. Além disso, tinha um ego forte e um corpo de dor denso. Fugira da Alemanha nazi em adolescente e muitos dos membros da sua família tinham morrido em campos de concentração.
Ethel sentou-se no meu sofá, agitada e com as mãos trémulas. Retirou cartas e documentos da pasta que trazia consigo e espalhou-as pelo sofá e pelo chão. Tive de imediato uma estranha sensação, como se um regulador de intensidade tivesse elevado o interior de todo o meu corpo para a potência máxima. Não podia fazer mais nada, a não ser manter-me receptivo, alerta e intensamente presente - presente em cada célula do meu corpo. Olhei para ela, livre de pensamentos e de juízos de valor, e ouvi em silêncio, sem fazer qualquer espécie de comentário mental. Uma torrente de palavras jorrou da sua boca: «Hoje mandaram-me mais uma carta inquietante. Eles querem vingar-se de mim, tem de me ajudar. Temos de os combater juntos. Nada detém aqueles advogados desonestos que eles têm. Vou perder a minha casa. Estão a ameaçar-me com a expropriação da minha casa.»
Deduzi das suas palavras que ela se recusava a pagar as despesas de manutenção, pois os gestores do imóvel não tinham levado a cabo certas reparações. Por sua vez, eles ameaçavam levá-la a tribunal.
Ela falou durante cerda de dez minutos. Limitei-me a observá-la e a ouvi-la. De repente, parou de falar e olhou para os papéis que tinha à sua volta, como se tivesse acabado de acordar de um sonho. Ficou calma e dócil. Todo o seu campo energético se alterou. Depois, olhou para mim e disse: «Isto não é nada importante, pois não?» «Não, não é» respondi eu. Ela permaneceu em silêncio durante mais alguns minutos, depois pegou nos papéis e foi-se embora. Na manhã seguinte interceptou-me na rua, olhando para mim de uma forma desconfiada. «O que é que me fez ontem? Esta foi a primeira noite, desde há anos, em que dormi bem. De facto, dormi como um bebé.»
Ethel acreditava que eu lhe «tinha feito alguma coisa», mas eu não lhe fiz nada. Em vez de me perguntar o que é que eu lhe tinha feito, talvez devesse perguntar o que é que eu não tinha feito. Ou seja, eu não reagi, não confirmei a realidade da sua história e não alimentei a sua mente com mais pensamentos nem o seu corpo de dor com mais emoções. Permiti que ela sentisse tudo o que estava a sentir naquele momento, e o poder da permissão reside na não interferência, na não acção. Estar presente é sempre infinitamente mais poderoso do que qualquer coisa que se possa dizer ou fazer, embora, por vezes, estar presente dê origem a palavras ou acções.
O que aconteceu a Ethel ainda não foi uma mudança permanente, mas um vislumbre do que é possível, um vislumbre do que já existia dentro dela. No budismo zen, este tipo de vislumbre denomina-se SATORI. Satori é um momento de Presença, um breve afastamento da voz que existe dentro da nossa cabeça, dos processos mentais e do seu reflexo no corpo sob a forma de emoções. É o surgimento de uma amplidão (espaço) interior onde antes se encontrava o ruído dos pensamentos e o turbilhão das emoções.
A mente pensante não consegue entender a Presença, por isso geralmente interpreta-a mal. Afirma que estamos insensíveis, distantes, que não temos compaixão, que não estamos a estabelecer uma ligação. A verdade é que estamos, mas a um nível mais profundo do que o pensamento ou a emoção. Na realidade, a esse nível existe uma verdadeira fusão, uma verdadeira união que vai muito para além da ligação. Na quietude da Presença, somos capazes de sentir a essência informe(sem forma) em nós próprios e nos outros como uma só. Reconhecer esta unicidade entre nós e os outros constitui o verdadeiro amor, a verdadeira atenção, a verdadeira compaixão."
Fonte: pgs 146-148 de "Um Novo Mundo", de Echart Toll, da Pergaminho, Portugal
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment