O PRAZER e a DOR em ARISTÓTELES:
Ramiro Marques
Aristóteles define prazer como "um certo movimento da alma e um regresso
total e sensível ao estado natural" (1). A dor é o seu contrário. O que produz a
disposição para o prazer é agradável e o que a destrói é doloroso. É agradável e,
portanto, dá prazer, o que tende para o estado natural e os hábitos também são
igualmente agradáveis porque o que é habitual assemelha-se ao que é natural. É,
também, agradável o que não resulta da coacção.
Por outro lado, é doloroso o que obriga ao esforço não querido ou não habitual e,
de uma maneira geral, tudo o que traz preocupações ou envolve a necessidade e a
coacção.
É essa a razão pela qual o descanso, os jogos e o sono são agradáveis, pois
ninguém descansa, joga ou dorme por obrigação.
Claro está que o agradável é, também, tudo aquilo de que temos em nós o
desejo, pois o desejo é apetite do agradável. Os desejos podem dividir-se em racionais e
irracionais. Os desejos irracionais são "os que não procedem de uma acto prévio da
compreensão; e são desse tipo todos os que se dizem ser naturais, como os que
procedem do corpo; por exemplo, o desejo de alimento, a sede, a fome, o desejo relativo
a cada espécie de alimento, os desejos ligados ao gosto e aos prazeres sexuais e, em
geral, os desejos relativos ao tacto, ao olfacto, ao ouvido e à vista" (2). Ao invés, os
desejos racionais são apenas os que procedem da persuasão.
Entre as coisas mais agradáveis, Aristóteles coloca a honra, a boa reputação e,
acima de tudo, os amigos. Os gregos usavam a palavra hedone, para dizer prazer e
hedesthai, para tirar prazer. Aristóteles opta por uma posição intermédia acerca do bem,
não o identificando com o prazer, mas também não negando que o prazer pode ser uma
espécie de bem. E o que é o bem, para Aristóteles? "Entendemos por bem o que é digno
de ser escolhido em si e por si, e aquilo em função do qual escolhemos outra coisa;
também aquilo a que todos aspiram, tanto os que são dotados de percepção e razão,
como os que puderem alcançar a razão; tudo o que a razão pode conceder a um
indivíduo, e tudo o que a razão concede a cada indivíduo em relação a cada coisa, isso é
bom para cada um; e tudo o que, pela sua presença, outorga bem-estar e autosuficiência; e a própria auto-suficiência; e o que produz ou conserva esses bens; e aquilo
que de tais bens resultam; e o que impede os seus contrários e os destrói" (3).
O prazer é, também, um bem. Se o não fosse, como é que todos os seres vivos, e
não apenas os seres humanos, o desejam? As coisas agradáveis e belas são
necessariamente boas, pois as agradáveis produzem prazer, e as belas são agradáveis.
Por que razão o prazer e a dor são tão importantes na ética aristotélica? É que
amar e odiar as coisas certas constitui o aspecto mais importante da virtude do carácter:
"o prazer e a dor prolongam-se por toda nossa vida, e são de grande importância para a
virtude e a vida feliz, uma vez que as pessoas decidem fazer o que lhes é agradável e
evitam o que lhes é penoso" (4).
Aristóteles discorda dos estóicos, mas também não concorda com os epicuristas,
porque os primeiros identificam o prazer com o que é vil e os segundos confundem
incondicionalmente o prazer com o bem. Ora, a verdade é que não podemos nem
exagerar a bondade nem a maldade do prazer. Se é certo que a dor deve ser evitada e
aquilo que dá prazer deve ser procurado, importa, num caso e noutro, combinar as
nossas escolhas com a inteligência, a compreensão e a sabedoria. Por outro lado,
embora o prazer seja um elemento da vida feliz, a felicidade não se confunde com o
1prazer. Além disso, quando os prazeres provêm de fontes vis, não podem ser procurados
pela pessoa virtuosa. É o caso da riqueza, que é um bem desejável, mas que o deixa de
ser se resulta de uma traição. Decorre de tudo isto que "o prazer não é o bem, que nem
todo o prazer merece ser escolhido, que alguns prazeres são intrinsecamente dignos de
escolha, diferindo em espécie ou nas sua fontes dos que o não são" (5).
Aristóteles identifica diferentes espécies de prazer. Quanto mais prazer temos
com uma actividade, mais aumenta a nossa vontade de continuar a actividade. Cada
prazer aumenta a actividade que lhe está associado. E pode, inclusivamente, torná-la
mais longa, exacta e melhor. É o caso do músico que tira prazer a fazer música e que,
quanto mais prazer tem na actividade, melhor músico se torna. O mesmo poderíamos
dizer do romancista, do poeta, do filósofo ou do matemático.
Ao contrário, a dor tende a reduzir ou a extinguir a actividade. É o caso do
estudante que não tira prazer com o estudo e que acaba por deixar de estudar como
forma de evitar a dor que essa actividade lhe traz.
Uma vez que as actividades diferem na decência e na maldade, há algumas que
são dignas de escolha e outras que se devem evitar; o mesmo é verdade para os
prazeres, já que o prazer é uma actividade. O prazer adequado a uma actividade
excelente é um prazer digno e o prazer próprio de uma actividade vil é vicioso. Da
mesma forma, os apetites de coisas boas são dignos de escolha e os apetites de coisas
vis são indignos de escolha. No essencial, podemos afirmar que há prazeres do
pensamento e prazeres dos sentidos e que há prazeres dignos e prazeres vis. Os prazeres
do pensamento são sempre dignos e os prazeres dos sentidos são dignos apenas quando
andam associados com a virtude do carácter.
Na verdade, há coisas que dão prazer a certas pessoas, enquanto provocam dores
noutras. Algumas pessoas consideram-nas agradáveis e estimáveis, enquanto outras
pessoas as consideram lastimáveis. Se assim é, como é possível determinar as coisas
verdadeiramente agradáveis e boas? Para Aristóteles, o que é realmente agradável e
bom é o que é assim para as pessoas virtuosas. E se o que a pessoa virtuosa considera
lamentável e indigno aparece como agradável para alguém, isso só acontece porque as
pessoas sofrem muitas formas de corrupção que as impedem de deliberar bem.
Que tipo de coisa é o prazer? Será uma actividade ou um processo? Se for
considerada uma actividade, é o prazer uma actividade completa ou incompleta?
Aristóteles procede à discussão destes assuntos, ao longo da primeira parte do
livro X da Ética a Nicómaco. Refuta a ideia de que o prazer é um processo porque o
prazer, ao contrário do processo, é uma coisa sempre completa. O processo, por
definição, necessita de tempo, enquanto o prazer é instantâneo, ou se tem logo ou não se
tem. Quanto mais completa for a actividade mais prazer ela dá. O prazer é uma
actividade, não é um movimento, nem um processo. Mas o prazer não é o bem em si
mesmo. Só é o bem quando é consequente com uma actividade boa. O prazer é muito
importante na educação ética porque ele pode enganar-nos acerca do bem e destruir a
nossa concepção do bem. Mesmo quando possuímos uma concepção correcta do bem, o
apetite pelos prazeres pode conduzir-nos à incontinência e é, por isso, que a educação
ética requer a competência para deliberar e decidir sobre os prazeres e as dores
correctas.
Aristóteles dedica todo o capítulo VII do livro II da Magna Moralia à análise da
questão do prazer. A insistência com que este assunto é abordado nas éticas aristotélicas
deve-se ao facto de, no tempo do filósofo, imperarem duas grandes correntes filosóficas
opostas sobre a relação entre o prazer e a felicidade: a escola dos epicuristas e a escola
dos estóicos. Para os primeiros, o prazer identifica-se com a felicidade, para os
segundos, o prazer pode ser um obstáculo à felicidade. Aristóteles afasta-se destas duas
2perspectivas extremistas e opta por considerar o prazer como essencial à felicidade, mas
destaca que há prazeres que valem a pena e outros que, por serem excessivos, devem ser
controlados ou evitados pelo uso da razão e da boa deliberação.
Assim sendo, Aristóteles não identifica a felicidade com o prazer, mas sim com
a virtude e com a vida conseguida e realizada, mas não deixa de acentuar que uma vida
realizada não dispensa a fruição moderada dos prazeres da alma e dos prazeres do
corpo, desde que no respeito pela justa medida, nas alturas apropriadas e das formas
correctas.
Na Magna Moralia, o filósofo terá oportunidade de defender a tese da existência
de prazeres de múltiplas espécies: prazeres da alma (os prazeres superiores, os quais
nunca pecam por excesso), os prazeres exteriores (riqueza e beleza) e os prazeres do
corpo (prazeres da mesa e do sexo, por exemplo).
Desde que usufruídos com moderação, os prazeres são necessários à virtude e,
embora não sejam o supremo bem, são necessários para que o homem possa alcançar o
bem supremo: a felicidade (6).
Na Magna Moralia, o filósofo defende a tese de que a virtude implica prazer.
Isto é, a virtude não é uma consequência do prazer, mas o contrário: "é claro que a
virtude é acompanhada de prazer ou de dor. Ora, se alguém se ressente da dor ao
realizar boas acções, quer dizer que não é um homem de bem. Por consequência, a
virtude não saberia acompanhar-se de dor, ela acompanha-se de prazer. Por isso, longe
de ser um entrave, o prazer é um estímulo para a acção. E, de maneira geral, não se pode
conceber a virtude sem o prazer que ela faz nascer" (7).
Notas
1) Aristótesles (1998). Retórica. (Tradução e notas de Manuel Júnior, Paulo Alberto e
Abel Pena). Lisboa: INCM, 1370 a, p. 83
2) idem, 1370 b, p. 84
3) Aristóteles (1998). Retórica. (Tradução e notas de Manuel Júnior, Paulo Alberto e
Abel Pena). Lisboa: INCM, 1362 a, p. 64
4) Aristóteles (1985). Nichomachean Etichs. (Introdução, tradução e notas de Terence
Irwin). Indianapolis: Hackett, 1172 a 25, p. 266
5) idem, 1174 a 10, p. 273
6) Aristóteles (1995). Les Grands Livres D`Éthique (Magna Moralia). Évreux:
Arléa, 1206 a
7) idem, 1206 a, 20, p. 178
http://www.eses.pt/usr/ramiro/docs/etica_pedagogia/O%20PRAZER%20E%20A%20DOR%20EM%20ARIST%C3%93TELES.pdf
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