“QUAL É A VERDADEIRA RELIGIÃO
DO HOMEM CIVILIZADO?
O que é que tem mais valor num adulto ou numa criança?
O que é um homem civilizado? Em que é que consiste verdadeiramente uma vida civilizada: comer chocolate, viver num grande prédio, conduzir um esplêndido automóvel ou trabalhar e transpirar numa fábrica, usar roupas pobres?
Outro dia, observei duas raparigas no metro: uma estava pobremente vestida, com um furoshiki - um quadrado de tecido para embrulhar objectos ou provisões como num saco - atado à volta da cabeça como um folar. Era muito simples, natural e sem pinturas. A outra parecia refinada, cuidadosamente maquilhada e lindamente vestida. Qual das duas tinha mais valor?
Qual é a mais feliz: a que vive no campo ou a que vive na cidade? As pessoas do campo pensam que a cidade é melhor, mas as da cidade pensam que no campo há bom ar, paisagens bonitas e alimentação sã.
Se não trabalharmos, não podemos comer, mas muitas vezes, sonhamos ser possível poder talvez comer sem trabalhar, não fazendo mais nada senão distrairmo-nos e dormir. Então, o que é que vale mais: trabalhar e comer ou comer sem trabalhar?
Os homens civilizados enganam-se frequentemente porque pensam demasiado. A civilização torna-os inquietos, agitados mentalmente, criam doenças, tornam-se neuróticos e queixam-se de insónias. Mesmo bem alimentados não conseguem estar de boa saúde. Pensar em demasia é uma doença. É inútil. Muitas vezes nós só julgamos apenas com o nosso pensamento. Então decidimos entre o rico e o pobre qual é o maior. Por isto, se um homem que herdou riquezas as perde, ele torna-se tão miserável como um caranguejo que tenha perdido as suas tenazes. Mas se um pobre não pode ter dinheiro, nem carro, fica privado de toda a comodidade. Por conseguinte, não se sabe qual é a melhor condição.
No palco, qual é o maior actor, o rei ou o serviçal? Nos bastidores do palco, no camarim, o rei pode bem ser um actor medíocre e o serviçal um actor famoso. Qual deles é o maior?
Enganamo-nos muitas vezes a este respeito. O povo quer produzir arroz com a ajuda de máquinas; quer comer sem trabalhar.
A civilização atingiu um elevadíssimo desenvolvimento nos dias de hoje; é muito prático, mas a vida ideal está realmente aí? Há muitos aviões. As distâncias desaparecem. Mas obter um visto e os documentos requer bastante tempo. «Nos nossos dias, a velocidade tornou-se um inconveniente», disse Paul Morand. Isto significa que as técnicas estão mais desenvolvidas e avançadas do que os assuntos de ordem política. Podemos constatar que por ocasião de convulsões sociais que trazem por exemplo greves, todas as vantagens da civilização desaparecem. Esta civilização é muito frágil.
Como podemos nós fazer progressos? A civilização moderna afasta-nos das coisas verdadeiras e vivemos mais no meio das imitações que no seio das belezas da natureza. É possível encontrar beleza numa pedra, no fundo de um rio. No Oriente, os monges zen preferem a beleza verdadeira de uma pedra natural à de um diamante artificial.
Os citadinos têm mais preocupações e mais ideias convencionais que as pessoas do campo: uma mulher elegante vê-se mais vezes ao espelho, uma mulher primitiva não precisa disso. As mulheres que usam bâton têm de ter mais cuidado do que as outras sempre que comem, ou bebem, ou beijam! Quando as pessoas cultas se apaixonam, tornam-se ansiosas, irritáveis, impacientes.
Penso que a civilização é assim, devemos reflectir mais uma vez ainda a propósito da verdadeira civilização. Se é feita de ideias convencionais ou de imitações, devemos suprimi-las. Mas como podemos fazê-lo?
Nos tempos primitivos, os humanos nem sonhavam no que era preferível ou melhor: o seu espírito era muito aberto e natural, como um céu claro.
A civilização trouxe a decadência, a corrupção e as preocupações no seio dos povos primitivos. Por exemplo, na Indonésia, em África, desconheciam o chocolate, os sapatos de salto alto, as máquinas. Dançava-se cada noite sob a claridade da lua, comia-se as frutas do país, as bananas; toda a gente tinha uma vida muito simples e natural. A vida era fácil, não se fazia economias penosas. Mas estes países foram absorvidos pela cultura e pela civilização - e a partir daí, passou-se a trabalhar para ganhar dinheiro! Há máquinas, armas, aviões...
Depois da Segunda Guerra Mundial, estes países opuseram-se aos seus colonizadores e obtiveram a sua independência: deste modo, os países ricos levaram a civilização aos primitivos e finalmente perderam as suas colónias.
A civilização engendra uma «luta pela vida» severa. Isso vê-se não apenas entre nações, mas entre o homem e a mulher, entre o aluno e o professor, entre o irmão e a irmã, o patrão e os empregados, entre os amigos e até no nosso espírito que se torna complicado: o bem e o mal debatem-se aí severamente. Esta civilização produz cada vez mais ansiedade, irritação, etc..
Dado que devemos vencer na luta pela existência, vencer no amor, ganhar dinheiro, o nosso espírito torna-se muito calculista e a nossa vida mentirosa e falsa. Queremos então escapar a este espírito complicado, a este mundo difícil. Os citadinos aspiram subir à montanha ou a acampar à beira-mar para aí viverem de um modo simples. Eis o que desejam os civilizados, mas não podem escapar ao seu próprio espírito! É por isso que temos necessidade duma religião verdadeira que possa abrir o nosso espírito e libertá-lo.
Os civilizados só pensam naquilo que podem obter para si próprios e que faça parte do seu mundo próprio. O seu pensamento está limitado por isto e não pode abraçar o universo inteiro. Preferem viver de acordo com modas que mudam, a viver de uma maneira natural. Estão longe do real, do verdadeiro, da sinceridade, da espontaneidade e da honestidade. Vivem na mentira e na ficção. São extraviados pelas modas efémeras.
É necessário regressar à claridade do nosso verdadeiro espírito. Devemos voltar ao real, à verdade, ao natural, tornarmos a ser íntimos com a natureza. Podemos chamar a isto o retorno a nós próprios.
A nossa imaginação e os nossos devaneios, o nosso julgamento ou a nossa actividade mental são apenas quimeras: não têm nada a ver com a verdade, com a verdadeira vida. Ao pormo-nos em harmonia com o universo, devemos criar uma vida feliz: esta é a razão de ser da nossa religião.
DEVEMOS VIVER LIVREMENTE UMA VIDA FELIZ
Os civilizados cansam-se e morrem vivendo uma vida artificial; nunca têm dinheiro suficiente, boa comida, satisfação no seu trabalho e bem-estar no amor. Estão cheios de medo, temem tudo. Assim, devemos respirar profundamente o ar natural e criar um mundo novo. É preciso fazer a revolução do espírito, o espírito que é o impulso vital de Bergson. Devemos ir para além do bem-estar e do mal-estar, do agradável e do desagradável, da vida e da morte. E a última e suprema alegria e a melhor maneira de o conseguir é zazen.
Zazen não é uma imitação. Devemos sentar-nos, a coluna vertebral muito direita e o queixo recolhido. Através desta prática, encontraremos o nosso verdadeiro eu, natural, original; poderemos encontrar a verdadeira espiritualidade, a verdadeira luz e a saúde. Isto só se consegue treinando o nosso corpo no zazen.”
In: pgs 129-133 de “Verdadeiro Zen”, de TAISEN DESHIMARU, da Assírio & Alvim
DO HOMEM CIVILIZADO?
O que é que tem mais valor num adulto ou numa criança?
O que é um homem civilizado? Em que é que consiste verdadeiramente uma vida civilizada: comer chocolate, viver num grande prédio, conduzir um esplêndido automóvel ou trabalhar e transpirar numa fábrica, usar roupas pobres?
Outro dia, observei duas raparigas no metro: uma estava pobremente vestida, com um furoshiki - um quadrado de tecido para embrulhar objectos ou provisões como num saco - atado à volta da cabeça como um folar. Era muito simples, natural e sem pinturas. A outra parecia refinada, cuidadosamente maquilhada e lindamente vestida. Qual das duas tinha mais valor?
Qual é a mais feliz: a que vive no campo ou a que vive na cidade? As pessoas do campo pensam que a cidade é melhor, mas as da cidade pensam que no campo há bom ar, paisagens bonitas e alimentação sã.
Se não trabalharmos, não podemos comer, mas muitas vezes, sonhamos ser possível poder talvez comer sem trabalhar, não fazendo mais nada senão distrairmo-nos e dormir. Então, o que é que vale mais: trabalhar e comer ou comer sem trabalhar?
Os homens civilizados enganam-se frequentemente porque pensam demasiado. A civilização torna-os inquietos, agitados mentalmente, criam doenças, tornam-se neuróticos e queixam-se de insónias. Mesmo bem alimentados não conseguem estar de boa saúde. Pensar em demasia é uma doença. É inútil. Muitas vezes nós só julgamos apenas com o nosso pensamento. Então decidimos entre o rico e o pobre qual é o maior. Por isto, se um homem que herdou riquezas as perde, ele torna-se tão miserável como um caranguejo que tenha perdido as suas tenazes. Mas se um pobre não pode ter dinheiro, nem carro, fica privado de toda a comodidade. Por conseguinte, não se sabe qual é a melhor condição.
No palco, qual é o maior actor, o rei ou o serviçal? Nos bastidores do palco, no camarim, o rei pode bem ser um actor medíocre e o serviçal um actor famoso. Qual deles é o maior?
Enganamo-nos muitas vezes a este respeito. O povo quer produzir arroz com a ajuda de máquinas; quer comer sem trabalhar.
A civilização atingiu um elevadíssimo desenvolvimento nos dias de hoje; é muito prático, mas a vida ideal está realmente aí? Há muitos aviões. As distâncias desaparecem. Mas obter um visto e os documentos requer bastante tempo. «Nos nossos dias, a velocidade tornou-se um inconveniente», disse Paul Morand. Isto significa que as técnicas estão mais desenvolvidas e avançadas do que os assuntos de ordem política. Podemos constatar que por ocasião de convulsões sociais que trazem por exemplo greves, todas as vantagens da civilização desaparecem. Esta civilização é muito frágil.
Como podemos nós fazer progressos? A civilização moderna afasta-nos das coisas verdadeiras e vivemos mais no meio das imitações que no seio das belezas da natureza. É possível encontrar beleza numa pedra, no fundo de um rio. No Oriente, os monges zen preferem a beleza verdadeira de uma pedra natural à de um diamante artificial.
Os citadinos têm mais preocupações e mais ideias convencionais que as pessoas do campo: uma mulher elegante vê-se mais vezes ao espelho, uma mulher primitiva não precisa disso. As mulheres que usam bâton têm de ter mais cuidado do que as outras sempre que comem, ou bebem, ou beijam! Quando as pessoas cultas se apaixonam, tornam-se ansiosas, irritáveis, impacientes.
Penso que a civilização é assim, devemos reflectir mais uma vez ainda a propósito da verdadeira civilização. Se é feita de ideias convencionais ou de imitações, devemos suprimi-las. Mas como podemos fazê-lo?
Nos tempos primitivos, os humanos nem sonhavam no que era preferível ou melhor: o seu espírito era muito aberto e natural, como um céu claro.
A civilização trouxe a decadência, a corrupção e as preocupações no seio dos povos primitivos. Por exemplo, na Indonésia, em África, desconheciam o chocolate, os sapatos de salto alto, as máquinas. Dançava-se cada noite sob a claridade da lua, comia-se as frutas do país, as bananas; toda a gente tinha uma vida muito simples e natural. A vida era fácil, não se fazia economias penosas. Mas estes países foram absorvidos pela cultura e pela civilização - e a partir daí, passou-se a trabalhar para ganhar dinheiro! Há máquinas, armas, aviões...
Depois da Segunda Guerra Mundial, estes países opuseram-se aos seus colonizadores e obtiveram a sua independência: deste modo, os países ricos levaram a civilização aos primitivos e finalmente perderam as suas colónias.
A civilização engendra uma «luta pela vida» severa. Isso vê-se não apenas entre nações, mas entre o homem e a mulher, entre o aluno e o professor, entre o irmão e a irmã, o patrão e os empregados, entre os amigos e até no nosso espírito que se torna complicado: o bem e o mal debatem-se aí severamente. Esta civilização produz cada vez mais ansiedade, irritação, etc..
Dado que devemos vencer na luta pela existência, vencer no amor, ganhar dinheiro, o nosso espírito torna-se muito calculista e a nossa vida mentirosa e falsa. Queremos então escapar a este espírito complicado, a este mundo difícil. Os citadinos aspiram subir à montanha ou a acampar à beira-mar para aí viverem de um modo simples. Eis o que desejam os civilizados, mas não podem escapar ao seu próprio espírito! É por isso que temos necessidade duma religião verdadeira que possa abrir o nosso espírito e libertá-lo.
Os civilizados só pensam naquilo que podem obter para si próprios e que faça parte do seu mundo próprio. O seu pensamento está limitado por isto e não pode abraçar o universo inteiro. Preferem viver de acordo com modas que mudam, a viver de uma maneira natural. Estão longe do real, do verdadeiro, da sinceridade, da espontaneidade e da honestidade. Vivem na mentira e na ficção. São extraviados pelas modas efémeras.
É necessário regressar à claridade do nosso verdadeiro espírito. Devemos voltar ao real, à verdade, ao natural, tornarmos a ser íntimos com a natureza. Podemos chamar a isto o retorno a nós próprios.
A nossa imaginação e os nossos devaneios, o nosso julgamento ou a nossa actividade mental são apenas quimeras: não têm nada a ver com a verdade, com a verdadeira vida. Ao pormo-nos em harmonia com o universo, devemos criar uma vida feliz: esta é a razão de ser da nossa religião.
DEVEMOS VIVER LIVREMENTE UMA VIDA FELIZ
Os civilizados cansam-se e morrem vivendo uma vida artificial; nunca têm dinheiro suficiente, boa comida, satisfação no seu trabalho e bem-estar no amor. Estão cheios de medo, temem tudo. Assim, devemos respirar profundamente o ar natural e criar um mundo novo. É preciso fazer a revolução do espírito, o espírito que é o impulso vital de Bergson. Devemos ir para além do bem-estar e do mal-estar, do agradável e do desagradável, da vida e da morte. E a última e suprema alegria e a melhor maneira de o conseguir é zazen.
Zazen não é uma imitação. Devemos sentar-nos, a coluna vertebral muito direita e o queixo recolhido. Através desta prática, encontraremos o nosso verdadeiro eu, natural, original; poderemos encontrar a verdadeira espiritualidade, a verdadeira luz e a saúde. Isto só se consegue treinando o nosso corpo no zazen.”
In: pgs 129-133 de “Verdadeiro Zen”, de TAISEN DESHIMARU, da Assírio & Alvim
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