Wednesday, May 10, 2006


"­II Os fundamentos ideológicos e parateóricos do liberalismo

O capitalismo imaginário
e a parateoria da economia "pura"

O conceito de capitalismo não se reduz ao de "mercado gneralizado"; antes situa a essência do capitalismo precisamente no poder para lá do mercado. A redução da vulgata dominante substitui a análise do capitalismo fundado em relações sociais numa política em que através dessas relações se exprimem rrecisamente esses poderes para lá do mercado, por uma teoria de um sistema imaginário comandado por "leis económicas" (o mercado"), que tenderiam, entregues a elas próprias, a gerar um "equilíbrio óptimo". No capitalismo real, lutas de classes, política, Estado e lógicas de acumulação do capital são insepa­ráveis. A partir daqui, o capitalismo é por natureza um regime cujos sucessivos estados de desequilíbrio são produzidos pelos confrontos sociais e políticos situados para lá do mercado. Os conceitos propostos pela economia vulgar do liberalismo - como o de "desregulação" dos mercados - não são reais. Os mercados ditos "desregulados" são mercados regulados pelos poderes dos monopólios que se situam para lá do mercado.
A alienação mercantil é a forma específica do capitalismo que comanda a reprodução da sociedade no seu conjunto e não ape­nas a do seu sistema económico. A lei do valor não só comanda a vida económica capitalista, mas também toda a vida social desta sociedade. Esta especificidade explica a razão pela qual no capitalismo a economia é elevada ao estatuto de "ciência", o que quer dizer que as leis que comandam o seu movimento se impõem às sociedades modernas (e aos seres humanos que as constituem) "como leis da natureza". Por outras palavras, o facto de estas leis serem o produto, não de uma natureza trans-histórica (a que definiria "o ser humano" face ao desafio da raridade''), mas de uma natureza histórica particular (das relações sociais específicas próprias do capitalismo) é apagado da consciência social. Tal é - no meu entender - a definição de Marx do "economismo", carácter próprio do capitalismo.
Por outro lado, o movimento desta sociedade é marcado pela instabilidade imanente, posta em evidência por Marx, no sentido em que a reprodução do seu sistema económico nunca tende para a realização de um qualquer equilíbrio geral, antes se deslocando de desequilíbrio em desequilíbrio de maneira imprevisível, que podemos constatar a posteriori, mas nunca de­finir antecipadamente. A "concorrência" entre os capitais – cuja parcelização define o capitalismo - Suprime a possibilidade de realizar qualquer equilíbrio geral e torna ilusória qualquer análise fundada numa pretensa tendência que vá neste senti­do. O capitalismo é sinónimo de instabilidade permanente. Aarticulação entre as lógicas produzidas por esta concorrênciados capitais e as que se desenvolvem através da evolução das relações sociais de força (entre os capitalistas entre si, entre estes e as classes dominadas e exploradas, entre os Estados que cons­tituem o capitalismo como sistema mundial) dá conta a posteriori do movimento do sistema na sua deslocação de um desequilí­brio para outro. Neste sentido, o capitalismo não existe fora da luta de classes, do conflito entre os Estados, da política. A ideia de que existiria uma lógica económica (que a ciência permitiria descobrir) a comandar o desenvolvimento do capitalismo é uma ilusão. Não há uma teoria do capitalismo distinta da Sua histó­ria. Teoria e história são indissociáveis, como o são igualmente economia e política. Assinalei estas duas dimensões da crítica radical de Marx,porque são precisamente as duas dimensões da realidade queo pensamento social burguês ignora. Este pensamento é com efeito economicista desde as suas origens na época das Luzes. A "Razão" que ela invoca atribui ao sistema capitalista, que tomao lugar do Antigo Regime, uma legitimidade trans-histórica, que faz dele o "fim da história". Esta alienação economista de origem acentuar-se-ia seguidamente, precisamente na tentativa de resposta a Marx. A economia pura, a partir de Walras, ex­prime esta exacerbação do econonomismo do pensamento social burguês. Este substitui a análise do funcionamento real do capi­talismo pelo mito do mercado auto-regulador, que tenderia pela sua própria lógica interna para a realização de um equilíbrio geral. A instabilidade deixa de ser concebida como imanente a esta lógica, para passar a ser o produto da imperfeição dos mer­cados reais. A economia torna-se assim num discurso que já não se preocupa em conhecer a realidade; a sua função já só é a de legitimar o capitalismo, atribuindo-lhe qualidades intrínsecas que ele não pode possuir. A economia pura torna-se a teoria de um mundo imaginário.
As forças dominantes são-no porque conseguem impor a sua linguagem às suas vítimas. Os "peritos" da economia con­vencional conseguiram assim fazer crer que as suas análises e as conclusões que delas retiram se impunham porque são "científicas", logo objectivas, neutras e incontornáveis. Isto não é verdade. A economia dita "pura", sobre a qual fundam as suas análises, não trata da realidade, mas sim de um sistema imagi­nário que não apenas não constitui sequer uma abordagem da realidade como se situa totalmente nos seus antípodas. O capi­talismo real é uma coisa completamente diferente.
Esta economia imaginária mistura os conceitos e confunde progresso e expansão capitalista, mercado e capitalismo. Para serem capazes de desenvolver estratégias eficazes, os movimen­tos sociais devem libertar-se destas confusões.
A confusão entre os dois conceitos - a realidade (a expansão capitalista) e o desejável (o progresso num sentido definido) - está na origem de muitas decepções entre os críticos das políticas levadas a cabo. Os discursos dominantes fazem sis­tematicamente esta confusão; propõem meios que permitam a expansão do capital e qualificam como "desenvolvimento" o que resulta daqui, ou poderia resultar, segundo eles. Ora a ló­gica da expansão do capital não supõe qualquer resultado qua­lificável em termos de "desenvolvimento". Ela não supõe, por exemplo, o pleno emprego ou uma dose previamente designada de desigualdade (ou de igualdade) na repartição do rendimen­to. A lógica desta expansão é orientada pela procura do lucro pelas empresas. Esta lógica pode gerar, em certas condições, o "

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Transcrito de: “O Vírus Liberal – A guerra permanente e a americanização do mundo”, de Samir Amin, da Campo das Letras, Porto.

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