Tuesday, May 09, 2006

" I
A visão "liberal" da sociedade

As “ideias gerais" que comandam a visão liberal que domina o mundo são simples e resumem-se nas poucas proposições que se seguem:
A eficácia social é confundida com a eficácia económica e esta com rentabilidade financeira do capital. Estas reduções em cadeia traduzem o domínio do económico, característico do capitalismo. O pensamento social atrofiado que daqui resulta é extremamente "economicista". Curiosamente, esta crítica - erradamente dirigida ao marxismo - caracteriza de facto o pensamento liberal, que é por excelência o pensamento do ca­pitalismo.
A expansão do mercado generalizado (o menos regulado possível) e a da democracia são decretadas complementares uma da outra. A questão do conflito entre os interesses sociais que se exprimem pelas suas intervenções no mercado e aqueles que conferem o sentido e o alcance à democracia política nem sequer é levantada. Economia e política não constituem duas dimensões da realidade social cada qual com a sua autono­mia e operando em relações dialécticas; a economia capitalista efectivamente comanda a política, aniquilando o seu potencial criativo próprio.
O país aparentemente mais "desenvolvido", aquele onde política é efectivamente concebida e praticada inteiramente ao serviço da economia (na realidade, do capital) - os Estados, claro - é o melhor modelo para "todos". As suas insti­tuições e as suas práticas devem ser imitadas por todos quantos desejam estar presentes na cena mundial.
Não haverá alternativa ao modelo proposto, fundado nos postulados economicistas que identificam o mercado com a de­mocracia e reduzem o político ao serviço do económico, já que a opção socialista, tentada na União Soviética e na China, de­monstrou ser ao mesmo tempo ineficaz em termos económicos e antidemocrática no plano político.
Por outras palavras, as proposições acima formuladas terão as virtudes de "verdades eternas" (a "Razão") reveladas pelo desenrolar da história contemporânea. O seu triunfo está asse­gurado, particularmente desde o desaparecimento das experiên­cias alternativas "socialistas". Teremos assim chegado, como se disse, ao fim da história. A Razão histórica triunfou. Este triunfo significa, portanto, que vivemos no melhor dos mundos, pelo menos potencialmente, no sentido em que o será efectivamente quando as ideias em que assenta forem aceites por todos e apli­cadas em toda a parte. Todos os defeitos da realidade dos nossos dias se devem unicamente ao facto de estes princípios eternos da Razão não terem ainda sido aplicados nas sociedades que sofrem tais deficiências - particularmente as do Sul.
A hegemonia dos Estados Unidos, expressão normal da sua posição vanguardista na aplicação da Razão (liberal, forçosa­mente) é, por conseguinte, simultaneamente incontornável e, ainda por cima, favorável ao progresso da humanidade inteira. Não existe qualquer "imperialismo americano", tão-somente uma liderança simpática ("benign" - indolor -, como é qualifi­cada pelos intelectuais liberais americanos).
De facto, como veremos pelo que se segue, estas "ideias" não passam de palavras ocas, fundadas numa paraciência - a eco­nomia dita "pura" - e numa ideologia de acompanhamento - o "pós-modernismo" .
A economia "pura" não é a teoria do mundo real - o capi­talismo que realmente existe -, mas a de um capitalismo ima­ginário. Nem sequer é uma teoria rigorosa deste último, cujos fundamentos e argumentação mereçam o qualificativo de "coerentes". Não passa de uma paraciência, na realidade mais próxima da feitiçaria do que das "ciências da natureza", cujo modelo pretende imitar.
Quanto ao pós-modernismo, este não constitui senão um dis­curso de acompanhamento, que apela a agir apenas nos limites do sistema liberal, a "ajustar-se" a ele.
A reconstrução de uma política de cidadania exige que os movimentos de resistência, de protesto e de luta contra os efei­tos reais da aplicação deste sistema se libertem do vírus liberal. ­“
Transcrito de: “O Vírus Liberal – A guerra permanente e a americanização do mundo”, de Samir Amin, da Campo das Letras, Porto.

No comments: