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O princípio esquece;
Não há tal coisa, eterno
É tudo e tudo terno
Se quer. E, não esmorece.
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O alvo número um
É finar a violência,
Divulgar a convivência,
Muito dissolver o rum.
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Tudo é dual: calor,
Frio; sim, não; alegria,
Dor; parado, correria...
Sê um equilibrador...
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E, equilibradamente,
Conforme nos for possível,
Procurar o aprazível,
Esquecer arduamente.
.
Mestre dá conhecimento;
O aluno o receber
Vai, quando aprender
Que é enriquecimento.
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Suportar, não suportar
Dualidades da vida...
E teremos garantida
A vida de invejar...
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Satisfazer o desejo
Todo que só dá prazer
É fácil, como de ver
É bom: vês como eu vejo?
Inspiração: http://www.linguagemsanscrita.pro.br/cantico_antes.shtml
A ESCRITA
“As crianças, desde cedo, devem perceber que há uma relação muito estreita entre fala e escrita.
A escrita é o esforço cultural e civilizatório do homem de representar, através de sua percepção visual, os sons da fala, da sua expressão oral. A alfabetização não vem apenas do olhar, mas da escuta ativa dos sons da fala.
A boa alfabetização não viria, pois, a rigor, nem se justificaria mesmo, com cartilhas de ABC, mas com a expressão oral: isto é, defendo aqui que a alfabetização escolar se dê inicialmente com os sons da fala, uma alfabetização fonológica, para, em seguida, transformar-se em alfabetização ortográfica.
A fala precede a escrita na vida e na escola, quer queiramos ou não. É um fato lingüístico, mas nem por indução, é lógica para escola e para muitos eduadores.
O segundo ponto que considero importante é a formação para
consciência fonológica e o domínio das habilidades metafonológicas para o desenvolvimento da leitura fluente.
A consciência fonológica vem com o ensino formal e sistemático da correspondência entre letras e fonemas da língua. Existem mais sons da fala do que letras para representa-los, Daí, a correspondência entre letras e fonemas não ser unívoca, mas equívoca.
Por exemplo, o som /a/ é, em boa parte, na escrita, representado pela letra “a”. O som /b/ (leia-se bê) é representado na escrita pela letra b. Mas, a letra “c” pode representar o som /s/ (leia-se sê) ou o som /k/ (leia-se cá), dependendo do ambiente fonológica. Em casa, a letra “c” representa o som /k/, mas em cebola, a letra “c” representa o som /s/. Ora, isso, sim, que precisa ser bem ministrado pelos docentes e não pode ser ensinado, outrossim, por qualquer pessoa, por uma pessoa sem habilitação e, a rigor, é um rigor exclusivo para um pedagog(o)a com formação lingüística ou para um(a) lingüista com formação pedagógica. Quem pretende ser alfabetizador ou alfabetizadora deve conhecer a fonologia da língua materna, especialmente os fonemas consonantais...”
Fonte: http://www.malhatlantica.pt/ecae-cm/VicenteMartins92.htm
MÚSICA
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Fazer sons, brincar com sons...
E teremos audiência
Se não for a violência
Que saia; haja bons sons!
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Não tenhas medo, amiga:
Faz música, assobia,
Trauteia, faz bateria...
Que tudo seja cantiga!
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Mas, sê bem cuidadoso,
Baixa a voz, a voz cala,
Quando vem invejoso,
Ou outro que também fala!
A MÚSICA
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“... O Erro de Dom Afonso Henriques e A Prosódia na Música Portuguesa
Prosódia: "pronúncia regular das palavras em harmonia com a acentuação."in Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa.
Abundam na música portuguesa exemplos em que a letra é atropelada pela música dando origem a erros na métrica do texto. Habituá-mo-nos a cantar e a ouvir "pássaro feridú na asa" e "houve alegria e foguetees no ar" com toda a naturalidade. Claro que isso se deve à importação acrítica de modelos anglo-saxónicos de formas musicais aplicadas à nossa língua, sem ter em conta que o português tem características próprias, que deviam ser postas em evidência em vez de reprimidas.
A maior parte das palavras portuguesas têm uma acentuação na penúltima sílaba, e não na última como seria mais conveniente em música de influência anglo-saxónica. Para além disso, e ao contrário do português do Brasil, onde todas as sílabas têm valor, em Portugal quase que se omitem as sílabas fracas, num efeito parecido com aquilo a que os músicos de Jazz chamam "ghost-note". Isto levanta um desafio maior para quem escreve música vocal no nosso país.
Será que teremos que aceitar estes sucessivos atentados à prosódia nacional com resignação? A resposta tem de ser preocupante uma vez que somos talvez o único país em que duas das mais emblemáticas canções populares, o hino nacional e o "parabéns a você" têm, desse ponto de vista, erros claros: "ó pátria sentee-se a voz" no primeiro caso, e "para o meenino..." no segundo.
Gerações sucessivas de portugueses aprendem estas músicas como se fosse a coisa mais natural do mundo cantar com textos que não encaixam correctamente na música, ou em que somos forçados a dizer o texto incorrectamente sem que ninguém se importe com isso (podemos sempre invocar o facto de que o Alfredo Keil nem português era, triste sina esta!...).
A verdade é que as crianças continuam a aprender músicas com letras a martelo, e a questão é saber por quanto mais tempo.
Vem isto a propósito da nova colecção do jornal Expresso dedicada aos Reis de Portugal. Edição bonita, ilustrada por André Letria, uma leitura pedagógica e divertida para os mais novos. Excepto que, mais uma vez a música é muito mal tratada. Já não me refiro ao facto de a produção musical ser extremamente limitada, com tudo ou quase tudo ser feito em computador, em vez de ter músicos a tocar instrumentos reais. Como habitualmente, dá-se muita importância ao aspecto gráfico e visual, escolhe-se um nome mediático para fazer a narração, e no fim não há orçamento para uma produção musical decente. Não quero com isto dizer que a música não tenha alguma qualidade em termos de composição, mas a produção de facto é muito fraca.
Aliás a letra, isoladamente, também seria possível. O problema é quando se junta essa letra à música. E de facto seria difícil encontrar exemplo mais representativo de má prosódia: em quase todos os versos há um erro. Ou seja a pronúncia não está em harmonia com a acentuação. Neste momento talvez centenas ou mesmo milhares de crianças estejam a aprender aquelas músicas e letras perante o olhar comovido dos pais. Mas será que os pais as ouvem mesmo?
Neste primeiro volume dedicado a Dom Afonso Henriques somos de facto levados a pensar o que teria acontecido caso ele não tivesse feito frente à sua mãe. Ainda estão por estudar as consequências do ponto de vista psicanalítico de um país ter visto a sua origem num matricídio (num sentido figurado, claro), mas isto constitui de facto uma originalidade lusitana.
Talvez não tivéssemos expulsado do território uma civilização brilhante, com grandes poetas e músicos, talvez fôssemos galegos, castelhanos, espanhóis ou mesmo muçulmanos, mas, quem sabe, talvez tratássemos melhor a nossa música vocal.Ou talvez não. Em todo o caso, é feio bater na mãe.
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Friday, April 07, 2006
Pensamento Musical I - Introdução
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(conferência na Universidade Lusíada, curso de Arquitectura, Fevereiro de 2003)
(conferência na Universidade Lusíada, curso de Arquitectura, Fevereiro de 2003)
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Falar de música para não-músicos é um desafio em que a essência das coisas tem de ser apurada, em vez do conforto da discussão de especificidades técnicas, que só a músicos interessam. Passamos tanto tempo a decifrar e analisar o detalhe e a complexidade da construção musical, que corremos o risco de nos esquecermos do que é afinal mais importante: os aspectos psicológicos, emocionais, artísticos, e até sociais que fazem com que a música esteja tão presente nas nossas vidas.
A música atravessa uma fase interessante. Nunca na história houve tanta divulgação e sucesso comercial como hoje. Nunca houve tantas pessoas a ouvir e a consumir música. Nunca houve tantos músicos, profissionais e amadores. E no entanto, nunca foi tão desvalorizada, nem a consciência da sua importância foi tão apagada como agora. Ouvimos música em restaurantes, cafés, e até bombas de gasolina, mas não existem discussões sérias em roda da música, da sua estética, da sua educação. Tornámo-nos indiferentes à música. Há quantos anos não se verifica um escândalo na estreia de uma peça? A música teve outra relevância noutros tempos, ocupando um lugar central no pensamento, na política, religião, e até na ciência. Música utilizada para formar guerreiros na antiguidade. Compositores da Idade Média queimados na fogueira por usarem dissonâncias que representavam o diabo nas suas peças. Bach quase que foi preso por causa de um improviso entusiasmado ao orgão num hino que confundiu a congregação que o cantava. Na estreia da Sagração da Primavera em Paris, Stravinsky teve que gritar dos bastidores para o palco os números de ensaio para os bailarinos, porque estes não conseguiam ouvir a orquestra devido aos distúrbios na plateia, que acabaram em pancadaria.
Hoje em dia, a música tornou-se num fenómeno rodeado de indiferença. E no entanto, a relação da humanidade com a música tem uma história gloriosa, em que o pensamento e a prática musicais andaram de mãos dadas desde o início.
O pensamento musical começa com o próprio pensamento. A cultura europeia sempre teve uma enorme atracção pela antiguidade clássica. Com a música não foi diferente. Ao longo da Idade Média, os autores gregos e romanos foram fonte de sabedoria e inspiração para os criadores nas várias áreas. Mas enquanto que na filosofia, literatura, arquitectura e belas artes os exemplos existiam e podiam ser estudados (através de estátuas e monumentos, por exemplo), na música não existia uma única peça ou fragmento sobrevivente. Para os que acreditam que a história da música começa verdadeiramente com a notação musical, essa história começa apenas no século VIII, em plena idade média.
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Pensamento Musical II - Os Poderes Mágicos da Música
A música atravessa uma fase interessante. Nunca na história houve tanta divulgação e sucesso comercial como hoje. Nunca houve tantas pessoas a ouvir e a consumir música. Nunca houve tantos músicos, profissionais e amadores. E no entanto, nunca foi tão desvalorizada, nem a consciência da sua importância foi tão apagada como agora. Ouvimos música em restaurantes, cafés, e até bombas de gasolina, mas não existem discussões sérias em roda da música, da sua estética, da sua educação. Tornámo-nos indiferentes à música. Há quantos anos não se verifica um escândalo na estreia de uma peça? A música teve outra relevância noutros tempos, ocupando um lugar central no pensamento, na política, religião, e até na ciência. Música utilizada para formar guerreiros na antiguidade. Compositores da Idade Média queimados na fogueira por usarem dissonâncias que representavam o diabo nas suas peças. Bach quase que foi preso por causa de um improviso entusiasmado ao orgão num hino que confundiu a congregação que o cantava. Na estreia da Sagração da Primavera em Paris, Stravinsky teve que gritar dos bastidores para o palco os números de ensaio para os bailarinos, porque estes não conseguiam ouvir a orquestra devido aos distúrbios na plateia, que acabaram em pancadaria.
Hoje em dia, a música tornou-se num fenómeno rodeado de indiferença. E no entanto, a relação da humanidade com a música tem uma história gloriosa, em que o pensamento e a prática musicais andaram de mãos dadas desde o início.
O pensamento musical começa com o próprio pensamento. A cultura europeia sempre teve uma enorme atracção pela antiguidade clássica. Com a música não foi diferente. Ao longo da Idade Média, os autores gregos e romanos foram fonte de sabedoria e inspiração para os criadores nas várias áreas. Mas enquanto que na filosofia, literatura, arquitectura e belas artes os exemplos existiam e podiam ser estudados (através de estátuas e monumentos, por exemplo), na música não existia uma única peça ou fragmento sobrevivente. Para os que acreditam que a história da música começa verdadeiramente com a notação musical, essa história começa apenas no século VIII, em plena idade média.
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Pensamento Musical II - Os Poderes Mágicos da Música
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A relação da música com as outras artes remonta aos primórdios do pensamento humano. Apolo, um dos mais belos e gloriosos de todos os antigos deuses, era deus do sol, da medicina, da música, da poesia, e das belas artes. Com qualidades musicais reconhecidas, era o maestro do coro das 9 musas (era também conhecido como Musageta). As Musas reuniam-se no Monte Parnasso para debaterem questões de poesia, ciência e música. Cada uma tinha um pelouro diferente: Clio, musa da história; Euterpe, música; Thalia, poesia pastoral; Melpomene, tragédia; Terpsichore, dança; Erato, poesia lírica; Polyhymnia (retórica), que usava um ceptro para mostrar o poder irresistível da eloquência; Calíope, poesia heróica; e Urânia, musa da astronomia.Apolo era ele próprio um ideal de beleza, representado como um extraordinário jovem imberbe, vestindo pouco mais que uma coroa de louros (em homenagem ao seu amor por Dafne, transformada em loureiro), e uma lira.
Apolo apaixonou-se por Calíope, e desse amor nasceu Orfeu, cujos talentos musicais são conhecidos. Com a sua lira conseguiu acalmar os demónios do Hades e quase trazer Eurídice de regresso do mundo dos mortos, não fosse a sua distracção fatal no último momento. Quando morre, despedaçado pelas bacantes por ter tocado música triste, os deuses colocam a sua lira no céu, onde se transforma em constelação.
Outro exemplo famoso é o de Amphion, filho de Júpiter e Antíope. Quando se torna rei de Tebas, quer fortificar a sua cidade construindo uma muralha à sua volta. O seu talento musical era de tal forma que, ao cantar, as pedras se deslocavam ao ritmo da voz, marchando para as suas posições na fortificação. Talvez seja a mais antiga referência escrita à importância do ritmo como elemento primordial da música.Nada representa melhor o sublimar do processo de criação musical do que o episódio de Eco, que, devido ao seu amor não correspondido por Narciso, se enche de melancolia e tristeza, e desaparece gradualmente, num autêntico liebestod clássico, até ficar só a sua voz, a entoar um melodioso lamento, perdida em locais solitários para sempre.Para os hebreus, a música também tinha poderes mágicos. David, músico, maestro e poeta brilhante (para além de ser provavelmente o primeiro produtor musical), cura as depressões de Saúl tocando a sua harpa (1 Samuel 16: 14-23). Também famoso é o episódio em que o som de 7 trompetes, misturado com os gritos dos israelitas, destrói as paredes de Jericó (Josué 6: 12-20), num dos primeiros confrontos registados entre música e arquitectura, em que a primeira leva nitidamente a melhor.
O Antigo Testamento refere igualmente o Lamento, ou Cântico do Arco, em que os guerreiros se treinam a atirar com o arco com a cadência do ritmo de um poema, um canto fúnebre de David sobre a morte de Saúl e seu filho Jónatas (2 Samuel 1: 17).Desde os seus primórdios que a música esteve ligada à prática religiosa. Apolo aparece com uma lira, Dionísio (Baco) com um aulo (instrumento de palheta dupla, precursor do moderno oboé). Esses instrumentos eram tocados a solo ou a acompanhar a recitação de poemas épicos. A utilização de coros e secções instrumentais nas tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides deriva do culto a Dionísio com o referido aulo.
A partir do século VI a.c. desenvolvem-se festivais e competições de música vocal e instrumental com enorme sucesso. Cedo apareceram músicos profissionais, e a sua proliferação e virtuosismo crescente, levou a um maior grau de complexidade na música.Aristóteles, no seu livro Política, alerta para o perigo de, na educação musical se dar demasiada importância aos aspectos técnicos, para evitar os excessos característicos dos profissionais, tão em voga. Excessos esses apreciados, segundo ele, por crianças, escravos, e até animais! Para Aristóteles, a educação deveria estimular o gosto e a fruição de melodias e ritmos nobres, e evitar a superficialidade da técnica pela técnica. Trata-se assim do primeiro exemplo de maneirismo musical. No fim do período clássico (entre 450 e 325 a.c.) dá-se uma reacção contra essas complexidades, levando a uma simplificação do estilo, à semelhança do que mais tarde se passaria na transição da Renascença para o Barroco, e do Barroco tardio para o Clássico do século XVIII. O início da era cristã assiste assim a uma prática musical menos elaborada.Para termos uma ideia de como soava a música desta altura, temos 2 exemplos musicais: um fragmento de um coro de Orestes, de Eurípides (de ca. 200 a.c.), e o famoso Epitáfio de Seikilos, uma "canção de beber" (Skolion), inscrito numa pedra tumular (século II a.c.). A associação da música com os estímulos sensoriais (sobretudo com o vinho) é antiga, e inúmeros músicos e compositores se esforçaram, nalguns casos com grande êxito, a preservar essa tradição.
Se a música da Idade Média não foi muito influenciada pela música da antiguidade, o pensamento musical foi, e bastante. Os textos incidem sobre dois aspectos essenciais: a filosofia (a sua natureza), e a ciência da música. O fundador da teoria musical grega, Pitágoras (ca. 500 a.c.) não fazia distinções entre música e a ciência dos números, que, segundo ele, regulava todos os aspectos do universo espiritual e material. Da mesma forma, a organização dos sons, obedecendo a leis matemáticas, demonstra a harmonia do cosmos. Platão desenvolve estas e outras ideias nos diálogos Timeu e Républica. Dentro deste quadro de harmonia universal, é natural a associação da música com a astronomia. Ptolomeu (século II d.c.) acreditava que certas escalas, modos e notas estavam associados a certos planetas, e seus movimentos. Claro que esta ideia deriva do mito da "música das esferas" de Platão, aquela música silenciosa produzida pelo movimento dos planetas.
Boécio (século VI) conta o episódio em que Pitágoras descobre as leis físicas das consonâncias, ao passar perto de uma oficina de ferreiros. Ao ouvir os sons dos martelos a bater, aproxima-se e após alguma investigação descobre que os sons produzidos dependem do peso do martelo. Descobre igualmente que os ratios dos pesos de dois martelos correspondem às procuradas consonâncias naturais: 1/2 para a oitava, 2/3 para a quinta, 3/4 para a quarta, etc. Esta é uma das leis fundamentais da acústica, facilmente verificável com uma corda vibrante, e o comprimento de corda que vibra.Para os gregos, música e poesia eram praticamente sinónimos. Para Platão, melos era uma combinação de discurso, ritmo e harmonia. O termo "poesia lírica" designa poesia para cantar ao som da lira. Aristóteles define poesia como tendo melodia, ritmo e linguagem, e refere que "existe outra arte que utiliza só a linguagem, em prosa ou em verso" (Poética, 1.1447a-b). Ou seja, não existia um termo para declamação de poesia sem música.
Para além disso, os pensadores gregos acreditavam que a música tinha qualidades morais, e podia influenciar o comportamento e o carácter dos seus praticantes e ouvintes. Aristóteles, com a sua teoria da imitação, em que a música imita, isto é, representa os estados de alma (doçura, raiva, coragem, etc.) defende que o sentimento imitado é transposto para o ouvinte. Música que imita violência gera sentimentos violentos em quem a ouve. Daí a necessidade de ouvir a música "correcta" para desenvolver o carácter.
Para Platão e Aristóteles, uma educação correcta deve contemplar, em doses equivalentes, música para disciplinar a mente e ginástica para disciplinar o corpo. Na Républica (ca. 380 a.c.), Platão defende que as duas vertentes devem estar equilibradas. Música a mais torna as pessoas neuróticas, e ginástica a mais violentas e ignorantes. Ora aì está um estudo por fazer nos relatórios sobre educação: o ratio de frequentadores de ginásios e praticantes de música. Outro: dentre as vítimas de neuroses, quantas estudam música? Mas Platão vai mais longe. Ele recomenda que os que forem treinados para governar devem evitar melodias que exprimam moleza e indolência. Em vez disso aconselha os modos Frígio e Dórico, que inspiram coragem e determinação. Acima de tudo, as convenções devem ser respeitadas. Uma coisa é certa: a falta de leis na arte e educação leva à anarquia na sociedade. Nas Leis, Platão refere a conhecida máxima "Deixem-me fazer as canções de uma nação, e não me importa quem faz as suas leis", trocadilho com a palavra nomos, que significa lei, mas também designa a estrutura melódica de uma peça.
Já Aristóteles admite que a música possa ser utilizada para diversão, prazer intelectual, para além da educação. Tudo isto dentro de certos limites. Por isso as primeiras constituições de Atenas e Sparta regulavam a utilização da música. Não mais que um precedente muitas vezes repetido ao longo da história, incluindo os nossos dias.Para os romanos a música era igualmente importante. Cícero e Quintiliano deixaram bem claro que as pessoas cultas tinham obrigatoriamente de ter educação musical. De entre os numerosos imperadores que apoiavam a música, Nero destaca-se em notoriedade, por ter sérias aspirações nessa área, e por outras razões menos honrosas. Curiosamente, sabemos mais sobre música grega do que sobre música romana, da qual não sobreviveu nenhum fragmento. Este facto explica-se em parte pelo esforço deliberado de eliminar todos os vestígios da cultura pagã levado a cabo pelos primeiros séculos do domínio cristão.
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Pensamento Musical III - Música Para Servir Deus
A relação da música com as outras artes remonta aos primórdios do pensamento humano. Apolo, um dos mais belos e gloriosos de todos os antigos deuses, era deus do sol, da medicina, da música, da poesia, e das belas artes. Com qualidades musicais reconhecidas, era o maestro do coro das 9 musas (era também conhecido como Musageta). As Musas reuniam-se no Monte Parnasso para debaterem questões de poesia, ciência e música. Cada uma tinha um pelouro diferente: Clio, musa da história; Euterpe, música; Thalia, poesia pastoral; Melpomene, tragédia; Terpsichore, dança; Erato, poesia lírica; Polyhymnia (retórica), que usava um ceptro para mostrar o poder irresistível da eloquência; Calíope, poesia heróica; e Urânia, musa da astronomia.Apolo era ele próprio um ideal de beleza, representado como um extraordinário jovem imberbe, vestindo pouco mais que uma coroa de louros (em homenagem ao seu amor por Dafne, transformada em loureiro), e uma lira.
Apolo apaixonou-se por Calíope, e desse amor nasceu Orfeu, cujos talentos musicais são conhecidos. Com a sua lira conseguiu acalmar os demónios do Hades e quase trazer Eurídice de regresso do mundo dos mortos, não fosse a sua distracção fatal no último momento. Quando morre, despedaçado pelas bacantes por ter tocado música triste, os deuses colocam a sua lira no céu, onde se transforma em constelação.
Outro exemplo famoso é o de Amphion, filho de Júpiter e Antíope. Quando se torna rei de Tebas, quer fortificar a sua cidade construindo uma muralha à sua volta. O seu talento musical era de tal forma que, ao cantar, as pedras se deslocavam ao ritmo da voz, marchando para as suas posições na fortificação. Talvez seja a mais antiga referência escrita à importância do ritmo como elemento primordial da música.Nada representa melhor o sublimar do processo de criação musical do que o episódio de Eco, que, devido ao seu amor não correspondido por Narciso, se enche de melancolia e tristeza, e desaparece gradualmente, num autêntico liebestod clássico, até ficar só a sua voz, a entoar um melodioso lamento, perdida em locais solitários para sempre.Para os hebreus, a música também tinha poderes mágicos. David, músico, maestro e poeta brilhante (para além de ser provavelmente o primeiro produtor musical), cura as depressões de Saúl tocando a sua harpa (1 Samuel 16: 14-23). Também famoso é o episódio em que o som de 7 trompetes, misturado com os gritos dos israelitas, destrói as paredes de Jericó (Josué 6: 12-20), num dos primeiros confrontos registados entre música e arquitectura, em que a primeira leva nitidamente a melhor.
O Antigo Testamento refere igualmente o Lamento, ou Cântico do Arco, em que os guerreiros se treinam a atirar com o arco com a cadência do ritmo de um poema, um canto fúnebre de David sobre a morte de Saúl e seu filho Jónatas (2 Samuel 1: 17).Desde os seus primórdios que a música esteve ligada à prática religiosa. Apolo aparece com uma lira, Dionísio (Baco) com um aulo (instrumento de palheta dupla, precursor do moderno oboé). Esses instrumentos eram tocados a solo ou a acompanhar a recitação de poemas épicos. A utilização de coros e secções instrumentais nas tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides deriva do culto a Dionísio com o referido aulo.
A partir do século VI a.c. desenvolvem-se festivais e competições de música vocal e instrumental com enorme sucesso. Cedo apareceram músicos profissionais, e a sua proliferação e virtuosismo crescente, levou a um maior grau de complexidade na música.Aristóteles, no seu livro Política, alerta para o perigo de, na educação musical se dar demasiada importância aos aspectos técnicos, para evitar os excessos característicos dos profissionais, tão em voga. Excessos esses apreciados, segundo ele, por crianças, escravos, e até animais! Para Aristóteles, a educação deveria estimular o gosto e a fruição de melodias e ritmos nobres, e evitar a superficialidade da técnica pela técnica. Trata-se assim do primeiro exemplo de maneirismo musical. No fim do período clássico (entre 450 e 325 a.c.) dá-se uma reacção contra essas complexidades, levando a uma simplificação do estilo, à semelhança do que mais tarde se passaria na transição da Renascença para o Barroco, e do Barroco tardio para o Clássico do século XVIII. O início da era cristã assiste assim a uma prática musical menos elaborada.Para termos uma ideia de como soava a música desta altura, temos 2 exemplos musicais: um fragmento de um coro de Orestes, de Eurípides (de ca. 200 a.c.), e o famoso Epitáfio de Seikilos, uma "canção de beber" (Skolion), inscrito numa pedra tumular (século II a.c.). A associação da música com os estímulos sensoriais (sobretudo com o vinho) é antiga, e inúmeros músicos e compositores se esforçaram, nalguns casos com grande êxito, a preservar essa tradição.
Se a música da Idade Média não foi muito influenciada pela música da antiguidade, o pensamento musical foi, e bastante. Os textos incidem sobre dois aspectos essenciais: a filosofia (a sua natureza), e a ciência da música. O fundador da teoria musical grega, Pitágoras (ca. 500 a.c.) não fazia distinções entre música e a ciência dos números, que, segundo ele, regulava todos os aspectos do universo espiritual e material. Da mesma forma, a organização dos sons, obedecendo a leis matemáticas, demonstra a harmonia do cosmos. Platão desenvolve estas e outras ideias nos diálogos Timeu e Républica. Dentro deste quadro de harmonia universal, é natural a associação da música com a astronomia. Ptolomeu (século II d.c.) acreditava que certas escalas, modos e notas estavam associados a certos planetas, e seus movimentos. Claro que esta ideia deriva do mito da "música das esferas" de Platão, aquela música silenciosa produzida pelo movimento dos planetas.
Boécio (século VI) conta o episódio em que Pitágoras descobre as leis físicas das consonâncias, ao passar perto de uma oficina de ferreiros. Ao ouvir os sons dos martelos a bater, aproxima-se e após alguma investigação descobre que os sons produzidos dependem do peso do martelo. Descobre igualmente que os ratios dos pesos de dois martelos correspondem às procuradas consonâncias naturais: 1/2 para a oitava, 2/3 para a quinta, 3/4 para a quarta, etc. Esta é uma das leis fundamentais da acústica, facilmente verificável com uma corda vibrante, e o comprimento de corda que vibra.Para os gregos, música e poesia eram praticamente sinónimos. Para Platão, melos era uma combinação de discurso, ritmo e harmonia. O termo "poesia lírica" designa poesia para cantar ao som da lira. Aristóteles define poesia como tendo melodia, ritmo e linguagem, e refere que "existe outra arte que utiliza só a linguagem, em prosa ou em verso" (Poética, 1.1447a-b). Ou seja, não existia um termo para declamação de poesia sem música.
Para além disso, os pensadores gregos acreditavam que a música tinha qualidades morais, e podia influenciar o comportamento e o carácter dos seus praticantes e ouvintes. Aristóteles, com a sua teoria da imitação, em que a música imita, isto é, representa os estados de alma (doçura, raiva, coragem, etc.) defende que o sentimento imitado é transposto para o ouvinte. Música que imita violência gera sentimentos violentos em quem a ouve. Daí a necessidade de ouvir a música "correcta" para desenvolver o carácter.
Para Platão e Aristóteles, uma educação correcta deve contemplar, em doses equivalentes, música para disciplinar a mente e ginástica para disciplinar o corpo. Na Républica (ca. 380 a.c.), Platão defende que as duas vertentes devem estar equilibradas. Música a mais torna as pessoas neuróticas, e ginástica a mais violentas e ignorantes. Ora aì está um estudo por fazer nos relatórios sobre educação: o ratio de frequentadores de ginásios e praticantes de música. Outro: dentre as vítimas de neuroses, quantas estudam música? Mas Platão vai mais longe. Ele recomenda que os que forem treinados para governar devem evitar melodias que exprimam moleza e indolência. Em vez disso aconselha os modos Frígio e Dórico, que inspiram coragem e determinação. Acima de tudo, as convenções devem ser respeitadas. Uma coisa é certa: a falta de leis na arte e educação leva à anarquia na sociedade. Nas Leis, Platão refere a conhecida máxima "Deixem-me fazer as canções de uma nação, e não me importa quem faz as suas leis", trocadilho com a palavra nomos, que significa lei, mas também designa a estrutura melódica de uma peça.
Já Aristóteles admite que a música possa ser utilizada para diversão, prazer intelectual, para além da educação. Tudo isto dentro de certos limites. Por isso as primeiras constituições de Atenas e Sparta regulavam a utilização da música. Não mais que um precedente muitas vezes repetido ao longo da história, incluindo os nossos dias.Para os romanos a música era igualmente importante. Cícero e Quintiliano deixaram bem claro que as pessoas cultas tinham obrigatoriamente de ter educação musical. De entre os numerosos imperadores que apoiavam a música, Nero destaca-se em notoriedade, por ter sérias aspirações nessa área, e por outras razões menos honrosas. Curiosamente, sabemos mais sobre música grega do que sobre música romana, da qual não sobreviveu nenhum fragmento. Este facto explica-se em parte pelo esforço deliberado de eliminar todos os vestígios da cultura pagã levado a cabo pelos primeiros séculos do domínio cristão.
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Pensamento Musical III - Música Para Servir Deus
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Em 312 d.c . o Imperador Constantino converte-se ao Cristianismo, dando início a mais de 10 séculos de domínio absoluto da cultura europeia, incluindo a prática musical. Com efeito, à medida que o Império se desmoronava, a Igreja consolidava o seu poder, tornando-se na principal força unificadora da Europa. Vários Papas tentaram uniformizar as numerosas liturgias locais, e a música não fugiu a essa normalização. O Papa Gregório II (715-31) teve particular importância nesse processo, ao reorganizar o repertório litúrgico, dando origem ao que mais tarde veio a ser conhecido por canto gregoriano.Vários pensadores, conhecidos como os Padres da Igreja, deixaram testemunhos sobre a importância da música, influenciando a sua prática durante os séculos seguintes. São João Crisóstomo, São Basílio, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e São Jerónimo acreditavam que o poder da música residia na capacidade de inspirar pensamentos divinos, para além de influenciar, para o bem e para o mal, a personalidade do ouvinte. Santo Ambrósio orgulha-se de usar a música para cativar fiéis. "Alguns dizem que já seduzi pessoas [para a fé] com as melodias dos meus hinos. Não o nego."Mas mais importante era a necessidade de evitar o prazer da música só pelo prazer. A música devia servir apenas a religião, e nada mais. O próprio Santo Agostinho, num texto famoso, confessa-nos amargamente que cedeu ao pecado de se deixar comover pelo canto em vez do que era cantado:
"Quando recordo as lágrimas que derramei na psalmodia da Tua igreja, quando recuperei a minha fé, e como mesmo agora me deixo comover não pelo canto mas por aquilo que é cantado, quando é cantado por uma voz clara e uma melodia conveniente, então compreendo a grande utilidade deste costume. Por isso hesito entre prazer perigoso e plenitude provada, embora me sinta inclinado a aprovar a utilização do canto na igreja (apesar de não ter em relação a esse assunto uma opinião irredutível), para que as mentes mais fracas possam ser estimuladas para pensamentos devotos pelo deleite auditivo. Mas quando me comovo mais pelo canto do que pelo que é cantado, confesso ter pecado gravemente, e então lamento ter ouvido o canto. Vê o estado em que me encontro! Chora comigo, e chora por mim, tu que controlas os teus sentimentos mais íntimos da melhor forma. Para aqueles de vós que não reagem desta maneira, este problema não é vosso. Mas Tu, Senhor meu Deus, ouve, tem piedade de mim, e cura-me-Tu em cuja imagem me tornei um problema para mim próprio; e esta é a minha fraqueza."Santo Agostinho, Confissões 10:33
No seu tratado De Musica (começado em 387 d.c.), defende as 3 principais características da música: claritas, integritas, veritas, qualidades que têm faltado a muitas peças ao longo dos tempos, incluindo o nosso.
A maior autoridade em música na Idade Média foi sem dúvida Boécio (ca. 480-524). No seu tratado De Institutione Musica, recupera ideias de teoria musical e filosofia da Grécia antiga. Para ele, a música divide-se em 3 tipos: musica mundana, ou cósmica, que regula as relações numéricas do movimento dos planetas e dos elementos; musica humana, que controla a união do corpo e da alma; e musica instrumentalis, ou música produzida por instrumentos (incluindo a voz humana), que deve reflectir a mesma ordem cósmica.
A imagem do Cosmos resultante das discussões de musica mundana e musica humana inluenciaram, entre outros, a estrutura do Paraíso na Divina Comédia de Dante. A doutrina da musica humana sobreviveu durante séculos, podemos dizer aliás até aos nossos dias: Boécio não deixaria de ter orgulho, mas também alguma estupefacção, ao ler a secção de astrologia nos jornais diários. Curiosamente, para Boécio, musica instrumentalis (a música tal como a conhecemos hoje) era a categoria menos importante das três. Música era, acima de tudo, a disciplina e compreensão dos fenómenos a ela associados, e não necessariamente a sua prática.
Tal como diz Donald Jay Grout, os cânticos da Igreja Romana são um dos maiores tesouros da civilização ocidental. Tal como a arquitectura românica, são monumentos à fé religiosa, e personificam o sentido comunitário e sensibilidade estética dessa época. Foram a fonte e inspiração da esmagadora maioria da música erudita na Europa até ao século XVI. Só recentemente foram abandonados, sobretudo a seguir ao Concílio Vaticano II (1962-65), em que o latim foi substituído pelo vernáculo local nos serviços da Igreja Católica.
A relação da música ocidental com a Igreja Cristã continuará nos séculos seguintes, atingindo o apogeu com um dos maiores génios de sempre: Johann Sebastian Bach. Bach escrevia no final das suas partituras as 3 letras SDG (Solo Deo Gloria). E no início: JJ (Jesu Juva).
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Pensamento Musical IV - A Música Como Abstracção (1)
Em 312 d.c . o Imperador Constantino converte-se ao Cristianismo, dando início a mais de 10 séculos de domínio absoluto da cultura europeia, incluindo a prática musical. Com efeito, à medida que o Império se desmoronava, a Igreja consolidava o seu poder, tornando-se na principal força unificadora da Europa. Vários Papas tentaram uniformizar as numerosas liturgias locais, e a música não fugiu a essa normalização. O Papa Gregório II (715-31) teve particular importância nesse processo, ao reorganizar o repertório litúrgico, dando origem ao que mais tarde veio a ser conhecido por canto gregoriano.Vários pensadores, conhecidos como os Padres da Igreja, deixaram testemunhos sobre a importância da música, influenciando a sua prática durante os séculos seguintes. São João Crisóstomo, São Basílio, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e São Jerónimo acreditavam que o poder da música residia na capacidade de inspirar pensamentos divinos, para além de influenciar, para o bem e para o mal, a personalidade do ouvinte. Santo Ambrósio orgulha-se de usar a música para cativar fiéis. "Alguns dizem que já seduzi pessoas [para a fé] com as melodias dos meus hinos. Não o nego."Mas mais importante era a necessidade de evitar o prazer da música só pelo prazer. A música devia servir apenas a religião, e nada mais. O próprio Santo Agostinho, num texto famoso, confessa-nos amargamente que cedeu ao pecado de se deixar comover pelo canto em vez do que era cantado:
"Quando recordo as lágrimas que derramei na psalmodia da Tua igreja, quando recuperei a minha fé, e como mesmo agora me deixo comover não pelo canto mas por aquilo que é cantado, quando é cantado por uma voz clara e uma melodia conveniente, então compreendo a grande utilidade deste costume. Por isso hesito entre prazer perigoso e plenitude provada, embora me sinta inclinado a aprovar a utilização do canto na igreja (apesar de não ter em relação a esse assunto uma opinião irredutível), para que as mentes mais fracas possam ser estimuladas para pensamentos devotos pelo deleite auditivo. Mas quando me comovo mais pelo canto do que pelo que é cantado, confesso ter pecado gravemente, e então lamento ter ouvido o canto. Vê o estado em que me encontro! Chora comigo, e chora por mim, tu que controlas os teus sentimentos mais íntimos da melhor forma. Para aqueles de vós que não reagem desta maneira, este problema não é vosso. Mas Tu, Senhor meu Deus, ouve, tem piedade de mim, e cura-me-Tu em cuja imagem me tornei um problema para mim próprio; e esta é a minha fraqueza."Santo Agostinho, Confissões 10:33
No seu tratado De Musica (começado em 387 d.c.), defende as 3 principais características da música: claritas, integritas, veritas, qualidades que têm faltado a muitas peças ao longo dos tempos, incluindo o nosso.
A maior autoridade em música na Idade Média foi sem dúvida Boécio (ca. 480-524). No seu tratado De Institutione Musica, recupera ideias de teoria musical e filosofia da Grécia antiga. Para ele, a música divide-se em 3 tipos: musica mundana, ou cósmica, que regula as relações numéricas do movimento dos planetas e dos elementos; musica humana, que controla a união do corpo e da alma; e musica instrumentalis, ou música produzida por instrumentos (incluindo a voz humana), que deve reflectir a mesma ordem cósmica.
A imagem do Cosmos resultante das discussões de musica mundana e musica humana inluenciaram, entre outros, a estrutura do Paraíso na Divina Comédia de Dante. A doutrina da musica humana sobreviveu durante séculos, podemos dizer aliás até aos nossos dias: Boécio não deixaria de ter orgulho, mas também alguma estupefacção, ao ler a secção de astrologia nos jornais diários. Curiosamente, para Boécio, musica instrumentalis (a música tal como a conhecemos hoje) era a categoria menos importante das três. Música era, acima de tudo, a disciplina e compreensão dos fenómenos a ela associados, e não necessariamente a sua prática.
Tal como diz Donald Jay Grout, os cânticos da Igreja Romana são um dos maiores tesouros da civilização ocidental. Tal como a arquitectura românica, são monumentos à fé religiosa, e personificam o sentido comunitário e sensibilidade estética dessa época. Foram a fonte e inspiração da esmagadora maioria da música erudita na Europa até ao século XVI. Só recentemente foram abandonados, sobretudo a seguir ao Concílio Vaticano II (1962-65), em que o latim foi substituído pelo vernáculo local nos serviços da Igreja Católica.
A relação da música ocidental com a Igreja Cristã continuará nos séculos seguintes, atingindo o apogeu com um dos maiores génios de sempre: Johann Sebastian Bach. Bach escrevia no final das suas partituras as 3 letras SDG (Solo Deo Gloria). E no início: JJ (Jesu Juva).
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Pensamento Musical IV - A Música Como Abstracção (1)
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Polifonia VS. Harmonia
Um frade do século XI, Guido de Arezzo, teve uma importância extraordinária no desenvolvimento da música quando, para ajudar os seus alunos de canto, decide designar cada nota musical por uma sílaba: ut, re, mi, fa, sol, la. Estas sílabas derivam de um texto para o qual ele compôs música para ilustrar o padrão de tons e meios tons que caracterizam a moderna escala maior.
Ut queant laxis
resonare fibris
Mira gestorum
famuli tuorum,
Solve polluti
Labii reatum, Sancte Joannes.
[Para que os teus servos possam livremente cantar as maravilhas dos teus feitos, limpa as nódoas de culpa dos seus sujos lábios, oh São João.]
Tal como Guido, vejo a necessidade desta oração antes das aulas de solfejo, apesar de alguns alunos insistirem em pôr à prova a sua utilidade.
Mas as contribuições para a pedagogia de Guido não se ficaram por aqui. Para aprenderem melhor os intervalos que as várias notas produzem, os seus seguidores utilizavam a "mão de Guido": o professor aponta com o indicador da mão direita os nós da mão esquerda aberta, onde cada nó representa uma das 20 notas do sistema musical de Guido, baseado em hexacordes. Uma nota que não pertencesse ao sistema era considerada "fora da mão".
Mas o século XI vê surgir, para além das inovações de Guido, dois fenómenos de primordial importância no desenvolvimento da Música: notação musical e polifonia. Polifonia designa música em que várias vozes se combinam não em uníssono, mas em partes diferentes. Após as primeiras tentativas improvisadas, foi possível sistematizar a maior complexidade resultante através da notação musical recentemente desenvolvida, permitindo a repetição e aperfeiçoamento das execuções. Este desenvolvimento da polifonia tem um suporte histórico, não sem alguma ironia, pois a mesma Igreja Cristã onde ele tem lugar se divide em duas, quando o Patriarca de Constantinopla é excomungado pelo Papa em 1054. Uma das primeiras referências à prática da polifonia, que Guido conhecia bem, aparece num tratado anónimo do século IX conhecido por Musica Enchiriadis (Manual de Música), com a descrição do conceito de diafonia (2 vozes), ou organum.
Com a polifonia a música ocidental conhece um fenónemo único, e que estará na base de algumas das maiores realizações artísticas da humanidade. O seu desenvolvimento é considerado por alguns como a fase mais decisiva da história da música ocidental.A partir desta altura, a música ocidental vai alternar momentos em que o estilo dominante é muito marcado pelo contraponto, enquanto que noutros, será a harmonia a dominar. Há essencialmente 3 momentos na história em que o contraponto chega a níveis de complexidade e sofisticação muito elevados, tendo sido rejeitados pelas gerações que se lhes seguiram: final do Renascimento com Palestrina; final do Barroco com Johann Sebastian Bach; e início do século XX com Arnold Schoenberg. A seguir a estas fases, a música homofónica (baseada em harmonia) destronou o contraponto e a polifonia, que por sua vez se desenvolveram novamente num contexto diferente.Mas para além da questão do estilo musical, a discussão em roda da polifonia assenta em ideias mais profundas, a saber, se a polifonia deriva, ou não, das leis naturais, tal como, supostamente, a harmonia, ou se é apenas uma construção intelectual para deleite da mente.
Críticas à polifonia existiram desde cedo. Bernardo Cirillo, um padre do século XVI, queixava-se em 1549, do rumo que a música tinha tomado:
"Sabes quanto a música era apreciada pelos antigos como a mais nobre das artes. Com ela produziam grandes efeitos que hoje não conseguimos igualar, seja com retórica ou oratória, controlando as afecções [emoções] da alma [...]. Vejo e oiço a música de hoje, que é suposto ter chegado a níveis de refinamento e perfeição sem precedentes. No entanto não vejo vestígios de nenhum dos modos antigos...Kyrie Eleison significa "Senhor tende piedade de nós". Um músico antigo teria expressado o seu pedido de perdão no modo mixolídio, o que teria comovido qualquer disposição mais emperdenida, senão às lágrimas, pelo menos até uma afecção piedosa [...]. Hoje tudo é cantado em promiscuidade e de forma incerta [...]. Gostaria que a música consistisse de certas harmonias e ritmos aptos a inspirar os nossos sentimentos para a religião e piedade, de acordo com o significado das palavras. Hoje os esforços vão no sentido de fazer uma peça em fuga estricta, de forma que quando um diz "Sanctus" outro pronuncia "Sabath", enquanto que um terceiro canta "Gloria Tua", com certos efeitos que mais parecem gatos em Janeiro [...]."
Bernardino Cirillo, carta de 1549 a Ugolino Gualteruzzi
Lettere Volgari di Diversi Nobilissimi Huomini, ed. Aldo Manuzio, Vol. 3 (Veneza,
1564)Entre 1545 e 1563, a Igreja Romana reuniu-se intermitentemente em Trento, no norte de Itália, para discutir a Reforma, e sobretudo para tentar corrigir alguns dos excessos que estiveram na sua base, ou seja as 95 teses de Martim Lutero em Wittenberg. Com este Concílio organizou-se a Contra-Reforma, onde também se discutiu, como não podia deixar de ser, o papel da música na Igreja. Mais uma vez a polifonia era criticada: tornava-se impossível compreender as palavras, que eram, afinal, mais importantes. Havia quem defendesse que a música deveria ser banida da Igreja. No entanto, a deliberação final do Concílio sobre esse assunto é muito geral..."
Fonte: http://musicanasesferas.blogspot.com/
Polifonia VS. Harmonia
Um frade do século XI, Guido de Arezzo, teve uma importância extraordinária no desenvolvimento da música quando, para ajudar os seus alunos de canto, decide designar cada nota musical por uma sílaba: ut, re, mi, fa, sol, la. Estas sílabas derivam de um texto para o qual ele compôs música para ilustrar o padrão de tons e meios tons que caracterizam a moderna escala maior.
Ut queant laxis
resonare fibris
Mira gestorum
famuli tuorum,
Solve polluti
Labii reatum, Sancte Joannes.
[Para que os teus servos possam livremente cantar as maravilhas dos teus feitos, limpa as nódoas de culpa dos seus sujos lábios, oh São João.]
Tal como Guido, vejo a necessidade desta oração antes das aulas de solfejo, apesar de alguns alunos insistirem em pôr à prova a sua utilidade.
Mas as contribuições para a pedagogia de Guido não se ficaram por aqui. Para aprenderem melhor os intervalos que as várias notas produzem, os seus seguidores utilizavam a "mão de Guido": o professor aponta com o indicador da mão direita os nós da mão esquerda aberta, onde cada nó representa uma das 20 notas do sistema musical de Guido, baseado em hexacordes. Uma nota que não pertencesse ao sistema era considerada "fora da mão".
Mas o século XI vê surgir, para além das inovações de Guido, dois fenómenos de primordial importância no desenvolvimento da Música: notação musical e polifonia. Polifonia designa música em que várias vozes se combinam não em uníssono, mas em partes diferentes. Após as primeiras tentativas improvisadas, foi possível sistematizar a maior complexidade resultante através da notação musical recentemente desenvolvida, permitindo a repetição e aperfeiçoamento das execuções. Este desenvolvimento da polifonia tem um suporte histórico, não sem alguma ironia, pois a mesma Igreja Cristã onde ele tem lugar se divide em duas, quando o Patriarca de Constantinopla é excomungado pelo Papa em 1054. Uma das primeiras referências à prática da polifonia, que Guido conhecia bem, aparece num tratado anónimo do século IX conhecido por Musica Enchiriadis (Manual de Música), com a descrição do conceito de diafonia (2 vozes), ou organum.
Com a polifonia a música ocidental conhece um fenónemo único, e que estará na base de algumas das maiores realizações artísticas da humanidade. O seu desenvolvimento é considerado por alguns como a fase mais decisiva da história da música ocidental.A partir desta altura, a música ocidental vai alternar momentos em que o estilo dominante é muito marcado pelo contraponto, enquanto que noutros, será a harmonia a dominar. Há essencialmente 3 momentos na história em que o contraponto chega a níveis de complexidade e sofisticação muito elevados, tendo sido rejeitados pelas gerações que se lhes seguiram: final do Renascimento com Palestrina; final do Barroco com Johann Sebastian Bach; e início do século XX com Arnold Schoenberg. A seguir a estas fases, a música homofónica (baseada em harmonia) destronou o contraponto e a polifonia, que por sua vez se desenvolveram novamente num contexto diferente.Mas para além da questão do estilo musical, a discussão em roda da polifonia assenta em ideias mais profundas, a saber, se a polifonia deriva, ou não, das leis naturais, tal como, supostamente, a harmonia, ou se é apenas uma construção intelectual para deleite da mente.
Críticas à polifonia existiram desde cedo. Bernardo Cirillo, um padre do século XVI, queixava-se em 1549, do rumo que a música tinha tomado:
"Sabes quanto a música era apreciada pelos antigos como a mais nobre das artes. Com ela produziam grandes efeitos que hoje não conseguimos igualar, seja com retórica ou oratória, controlando as afecções [emoções] da alma [...]. Vejo e oiço a música de hoje, que é suposto ter chegado a níveis de refinamento e perfeição sem precedentes. No entanto não vejo vestígios de nenhum dos modos antigos...Kyrie Eleison significa "Senhor tende piedade de nós". Um músico antigo teria expressado o seu pedido de perdão no modo mixolídio, o que teria comovido qualquer disposição mais emperdenida, senão às lágrimas, pelo menos até uma afecção piedosa [...]. Hoje tudo é cantado em promiscuidade e de forma incerta [...]. Gostaria que a música consistisse de certas harmonias e ritmos aptos a inspirar os nossos sentimentos para a religião e piedade, de acordo com o significado das palavras. Hoje os esforços vão no sentido de fazer uma peça em fuga estricta, de forma que quando um diz "Sanctus" outro pronuncia "Sabath", enquanto que um terceiro canta "Gloria Tua", com certos efeitos que mais parecem gatos em Janeiro [...]."
Bernardino Cirillo, carta de 1549 a Ugolino Gualteruzzi
Lettere Volgari di Diversi Nobilissimi Huomini, ed. Aldo Manuzio, Vol. 3 (Veneza,
1564)Entre 1545 e 1563, a Igreja Romana reuniu-se intermitentemente em Trento, no norte de Itália, para discutir a Reforma, e sobretudo para tentar corrigir alguns dos excessos que estiveram na sua base, ou seja as 95 teses de Martim Lutero em Wittenberg. Com este Concílio organizou-se a Contra-Reforma, onde também se discutiu, como não podia deixar de ser, o papel da música na Igreja. Mais uma vez a polifonia era criticada: tornava-se impossível compreender as palavras, que eram, afinal, mais importantes. Havia quem defendesse que a música deveria ser banida da Igreja. No entanto, a deliberação final do Concílio sobre esse assunto é muito geral..."
Fonte: http://musicanasesferas.blogspot.com/
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