Saturday, December 03, 2005


Prólogo: a Nova Flauta

Um deus pode fazê-lo. Mas como um homem pode penetrar as cordas da lira?

RANIER MARIA RILKE


Em sânscrito existe uma palavra, lila, que significa "jo­go", "brincadeira". Mais rica de sentidos do que as palavras corres­pondentes em nossa língua, ela significa brincadeira divina, o jogo da criação, destruição e recriação, o dobrar e desdobrar do cosmos. Lila, profunda liberdade, é ao mesmo tempo a delícia e o prazer do momento presente e a brincadeira de Deus. Significa também "amor".
Lila pode ser a coisa mais simples que existe - espontânea, infan­til, franca. Mas, à medida que crescemos e experimentamos as comple­xidades da vida, ela também pode ser a conquista mais dura e difícil, e chegar a desfrutá-la é como retomar ao nosso verdadeiro ser.
Quero começar por uma pequena história. Transcrita do folclore japonês, ela abrange toda a viagem que faremos por estas páginas. Nos dá o sabor da conquista da livre expressão, da total liberdade criativa, da qual emergem a arte e a originalidade. É a história da jornada de um jovem músico, desde o mero talento até a arte genuí­na que emerge livre e desimpedida da própria fonte da vida:

Uma nova flauta foi inventada na China. Descobrindo a sutil beleza de sua sonoridade, um professor de música japonês levou-a para o seu pais, onde dava concertos por toda parte. Uma noite, to­cou com uma comunidade de músicos e amantes da música que vi­viam numa certa cidade. No final do concerto, seu nome foi anun­ciado. Ele pegou a nova flauta e tocou uma peça. Quando terminou, fez-se silêncio na sala por um longo momento. Então, a voz do ho­mem mais velho da comunidade se fez ouvir do fundo da sala: "Co­mo um deus!"
No dia seguinte, quando o mestre se preparava para partir, os músicos o procuraram e lhe perguntaram quanto tempo um músico habilidoso levaria para aprender a tocar a nova flauta. "Anos", ele respondeu. Eles lhe perguntaram se aceitaria um aluno, e ele con­cordou. Depois que o mestre partiu, os homens se reuniram e deci­diram enviar-lhe um jovem e talentoso flautista, um rapaz sensível à beleza, dedicado e digno de confiança. Deram-lhe dinheiro para custear suas despesas e as lições de música, e o enviaram à capital, onde o mestre vivia.
O aluno chegou e foi aceito pelo professor, que lhe ensinou uma única e simples melodia. No início, recebeu uma instrução sistemáti­ca, mas logo dominava todos os problemas técnicos. Agora, chega­va para a sua aula diária, sentava-se e tocava a sua melodia - e tu­do o que o professor lhe dizia era: "Falta alguma coisa". O aluno se esforçava o mais que podia, praticava horas a fio, dia após dia, semana após semana, e tudo o que o mestre lhe dizia era: "Falta al­guma coisa". Implorava ao mestre que escolhesse outra música, mas a resposta era sempre "não". Durante meses e meses, todos os dias ele tocava e ouvia "Falta alguma coisa". A esperança de sucesso e o medo do fracasso foram se tornando cada vez maiores, e o aluno oscilava entre a agitação e o desânimo.
Finalmente, a frustração o venceu. Ele fez as malas e partiu fur­tivamente. Continuou a viver na capital por mais algum tempo, atéque seu dinheiro acabou. Passou a beber. Finalmente, empobreci­do, voltou à sua província natal. Com vergonha de mostrar-se a seus antigos colegas, foi viver numa cabana fora da cidade. Ainda man­tinha sua flauta, ainda tocava, mas já não encontrava nenhuma no­va inspiração na música. Camponeses que por ali passavam ouviam-­no tocar e enviavam-lhe seus filhos para que ele lhes desse lições de música. E assim ele viveu durante anos.
Uma manhã, bateram à sua porta. Era o mais antigo mestre da cidade, acompanhado de seu mais jovem aluno. Eles lhe contaram que naquela noite haveria um concerto e que todos haviam decidido que não tocariam sem ele. Depois de muito esforço para vencer seu medo e sua vergonha, conseguiram convencê-lo, e foi quase num tran­se que ele pegou uma flauta e os acompanhou. O concerto começou. Enquanto esperava atrás do palco, nada perturbou seu silêncio inte­rior. Finalmente, no final do concerto, seu nome foi anunciado. Ele subiu ao palco com fúria. Olhou para as mãos e percebeu que havia escolhido a nova flauta.
Agora ele sabia que não tinha nada a ganhar e nada a perder.
Sentou-se e tocou a mesma melodia que tinha tocado tantas vezes para o mestre no passado. Quando terminou, fez-se silêncio por um longo momento. Então, a voz do homem mais velho se fez ouvir, soando suavemente do fundo da sala: "Como um deus!"
Introdução

Improvisação é um mistério. Pode-se até escrever um livro sobre o assunto, mas no fim ninguém sabe o que é. Quando improviso e estou em boa forma, é como se estivesse meio dormindo. Chego até a esquecer que existem pessoas na minha frente. Grandes improvisadores são como sacerdotes; estão pensando apenas no seu deus.
STÉPHANE GRAPPELLI

Sou músico, e uma das coisas que mais amo é me apre­sentar num solo totalmente improvisado no violino ou na viola. Existe algo energizante e desafiador em estar frente a frente com a platéia e criar uma peça musical que tem ao mesmo tempo o frescor do mo­mento fugaz e - quando tudo funciona - a tensão e a simetria es­trutural de um organismo vivo. Pode ser uma experiência extraordi­nária e muitas vezes mobilizadora de comunicação direta.
Quando toco dessa maneira, sinto que não sou eu que estou to­cando; é mais como se alguém estivesse me ditando a música. Natu­ralmente, este é um sentimento que muitos compositores, poetas e outros artistas experimentam. Conta-se que um dos alunos de Bach lhe perguntou: "Professor, como é que o senhor consegue pensar em tantas melodias?". Ao que Bach lhe respondeu: "Meu garoto, minha maior dificuldade é evitar tropeçar nelas quando me levanto pela manhã" . E existe ainda a famosa teoria de Michelangelo sobre a escultura: A estátua já está contida na pedra, sempre esteve na pe­dra desde o princípio dos tempos, e o trabalho do escultor é vê-la e libertá-la, retirando cuidadosamente o excesso de material. Wil­liam Blake expressou mais ou menos a mesma idéia quando falou de "dissipar superfícies aparentes e mostrar o infinito, que está oculto".2
Este livro fala das forças interiores da criação espontânea. Fala do lugar de onde a arte vem. E digo arte no seu sentido mais amplo. Tenho visto um mecânico abrir o capô de meu carro e trabalhar com

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a mesma sensibilidade manual e visual, a mesma destreza e pronti­dão para absorver surpresas, a mesma ligação e entrega total que ve­mos num excelente pianista, pintor ou poeta.
Este livro se destina a pessoas de qualquer ramo de atividade que queiram entrar em contato com seus poderes criativos e desen­volvê-los. Seu propósito é difundir a compreensão, a alegria, a res­ponsabilidade e a paz que nascem do uso total da imaginação huma­na.

Vamos descobrir como a música intuitiva, ou qualquer outra ins­piração, brota de dentro de nós, como ela pode estar bloqueada, des­carrilhada ou obscurecida por certos fatos inevitáveis da vida, e como ela é finalmente libertada - como nós somos finalmente libertados - para falar ou cantar, escrever ou pintar, com nossa voz autêntica. Essas questões nos conduzem diretamente a um território para onde parecem convergir muitas religiões e filosofias, assim como a genuína experiência do artista.
Qual é a Fonte em que vamos beber quando criamos? O que os antigos poetas queriam dizer quando falavam da Musa? Quem é ela? Onde nasce a imaginação? Quando os sons são realmente mú­sica? Quando linhas e cores são arte? Quando palavras são literatu­ra? Quando lições são verdadeiro ensinamento? Como manter o equi­líbrio entre estrutura e espontaneidade, disciplina e liberdade? Co­mo a paixão do artista se codifica numa obra de arte? Como nós, criadores de arte, sabemos que a visão e a paixão que nos motiva­ram estão retratadas com precisão em nossa atividade criativa? Co­mo nós, na qualidade de testemunhas do trabalho artístico, decodi­ficamos ou liberamos essa paixão no momento em que o artista já se foi e temos apenas a obra de arte diante de nós, uma obra que vai ser vista, ouvida, lembrada e aceita? Como é se apaixonar por um instrumento ou por uma arte?
Comecei a escrever este livro para explorar as dimensões interio­res da improvisação. Descobri que era fascinante que a concepção, a composição, a prática e a exibição de uma peça musical pudessem brotar num único momento e vir à tona de uma maneira inteira e satisfatória. Quando pela primeira vez me descobri improvisando, senti uma grande excitação de estar consciente de alguma coisa maior, uma espécie de comunhão espiritual que ia muito além da finalidade do fazer musical. Ao mesmo tempo, a improvisação expandia a fina­lidade e a relevância do fazer musical a ponto de desintegrar os limi­tes artificiais entre arte e vida. Descobri uma liberdade que continha em si, ao mesmo tempo, estímulo e cobrança. Observando o momento da improvisação, descobri padrões relacionados com todos os tipos de criatividade, pistas de como viver uma vida autêntica, que se cria

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e se organiza por si mesma. Passei a ver a improvisação como a chave­mestra da criatividade.
Num certo sentido, toda arte é improvisação. Algumas impro­visações são apresentadas no momento em que nascem, inteiras e de repente; outras são "improvisações estudadas", revisadas e reestru­turadas durante certo tempo antes que o público possa desfrutá-las. Mesmo quando escreve música o compositor está improvisando (ainda que apenas mentalmente). Só depois ele vai refinar o produto de sua improvisação, aplicando a ele técnica e teoria. "Compor", escreveu Arnold Schoenberg, "é retardar a improvisação; muitas vezes não se consegue escrever numa velocidade capaz de acompanhar a cor­rente das idéias."3 Obras de arte acabadas, que admiramos e ama­mos profundamente, são, num certo sentido, vestígios de uma via­gem que começou e acabou. O que alcançamos na improvisação éa sensação da própria viagem.

A improvisação é a forma mais natural e mais difundida de fa­zer música. Até o século passado, era parte essencial da tradição mu­sical do Ocidénte. Leonardo da Vinci foi um dos pioneiros em im­provisações na viola da braccio. Com seus amigos, compôs óperas inteiras em que tanto a poesia quanto a música eram criadas na ho­ra.4 Na música barroca, a arte de tocar um instrumento a partir de um baixo cifrado (um arcabouço harmônico que o executante preen­chia de acordo com a inspiração do momento) lembra o jazz moder­no, em que os músicos criam a partir de temas ou mudanças de acor­des. Na época clássica, as cadências do violino, do piano e de outros instrumentos deviam ser improvisadas - o executante tinha a chan­ce de dar o seu toque criativo à obra. Tanto Bach quanto Mozart ficaram famosos como improvisadores livres, ágeis e imaginativos, e existem muitas histórias comoventes ou divertidas sobre suas ex­plorações nesse campo. Quando chegou a Viena, Beethoven se tor­nou conhecido como um surpreendente improvisador ao piano, e sómais tarde como compositor. Eis os relatos de dois músicos que tes­temunharam o fenômeno:

Creio que devo a essas improvisações de Beethoven minhas mais vívi­das impressões musicais. Acredito que, sem tê-lo ouvido improvisar à vontade, não se pode apreciar perfeitamente o enorme alcance de seu gênio. Sua tempestuosa inspiração fazia jorrar tão adoráveis melodias e harmonias inesperadas, porque, dominado pela emoção da música, ele não se preocupava em buscar efeitos que poderiam lhe ocorrer se estivesse com a pena na mão.5
Ele sabia causar tal impressão na platéia que as lágrimas enchiam os olhos de todos os ouvintes, e alguns soluçavam abertamente: porque havia uma certa magia em sua expressão, além da beleza e da origi­

19nalidade de suas idéias e de sua genial maneira de apresentá-las. Quando concluía uma improvisação desse tipo, ele era capaz de explodir numa gargalhada. 6
Infelizmente, não havia gravadores nessa época. Portanto, quan­
do os artistas queriam preservar sua música, tinham de demonstrar com a pena a mesma destreza que tinham no instrumento. Mozart talvez tenha sido o maior improvisador com pena e papel. Escrevia sem interrupção imaculadas partituras, inventando a música na velo­cidade que conseguia imprimir à pena, praticamente sem rasurar uma só linha. Beethoven, ao contrário, embora conhecesse intimamente os sons que queria produzir, embora os carregasse dentro da cabeça durante anos, só conseguia registrá-los no papel mediante um labo­rioso e vigoroso processo de esboço, correção, reescrita e redefini­ção. Seus cadernos eram uma enorme desordem; por meio deles épossível traçar, passo a passo, a evolução de seu pensamento musical.
No século XIX, o surgimento da sala formal de concertos pôs fim à improvisação. A Era Industrial trouxe consigo uma valorização excessiva da especialização e do profissionalismo em todos os cam­pos de atividade. Os músicos, em sua grande maioria, viram-se res­tringidos a executar nota por nota as partituras escritas por um gru­po de compositores que de alguma forma tinham acesso ao divino e misterioso processo de criação. A composição e a execução foram se separando gradualmente, em prejuízo de ambas. Formas clássi­cas e populares também foram se afastando cada vez mais, nova­mente em prejuízo de ambas. O novo e o velho perderam contato e continuidade. Entramos num período em que os freqüentadores de concertos passaram a acreditar que os bons compositores esta­vam mortos.
A improvisação voltou à cena neste século, principalmente na área jazzística. Mais tarde, a música indiana e outras tradições de improvisação devolveram ao músico o prazer da criação espontânea. Atrás dessas formas de extemporização sobre um tema ou dentro de um bloco estilístico, a livre improvisação e a invenção de novos esti­los pessoais foram surgindo isoladamente. Hoje, muitos artistas es­tão se reunindo em grupos de câmara voltados à improvisação.
Uma onda de improvisação tem surgido como modus operandi de várias outras formas de arte, principalmente do teatro e da dánça, em que a improvisação é usada não apenas como técnica capaz de produzir um novo trabalho dentro do estúdio, mas na forma de per­formances totalmente espontâneaS apresentadas ao público como obra acabada. As artes plásticas criaram uma tradição de "automatismo"; pintores como Wassily Kandinsky, Yves Tanguy, Joan Miró e Gordon Onslow Ford encararam suas telas sem nenhum tema preconcebido,

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apenas permitindo que as cores e formas fluíssem de um impulso in­tuitivo e espontâneo do inconsciente. Nas Improvisações, séries de pinturas que constituíram a base para grande parte da arte do século XX, Kandinsky traça estados de espírito e transformações na forma como lhe ocorriam.
Existe em todas essas formas de expressão uma unidade de ex­periência que é a essência do mistério criativo. O âmago da improvi­sação é a livre expressão da consciência quando desenha, escreve, pinta ou toca o material bruto que emerge do inconsciente. E essa liberdade acarreta certo grau de risco.
Muitos músicos são extraordinariamente habilidosos na execu­ção das notas impressas numa partitura, mas não sabem como essas notas foram parar lá e se sentem inseguros de tocar sem lê-las. Nesse aspecto, a teoria musical não ajuda em nada; ela apenas ensina as regras da gramática, mas não o que dizer. Quando me perguntam como improvisar, muito pouco do que posso dizer é sobre música. A verdadeira história fala da expressão espontânea, e é muito mais uma história espiritual e psicológica do que sobre a técnica de uma ou outra forma de arte.
Os detalhes de qualquer forma de arte - como tocar um violi­no, escrever um texto de prosa, fazer um filme ou ensinar - são na­turalmente específicos; cada instrumento ou meio de expressão tem sua própria linguagem e seu próprio conteúdo. Mas existe uma espé­cie de metaconhecimento, um metafazer que ultrapassa estilos e for­mas; e é dessa essência que quero tratar nestas páginas. Embora cer­tos princípios se apliquem a um campo em particular, existem ou­tros aplicáveis a todos os campos da atividade criativa. Toda ação pode ser praticada como arte, como ofício ou como obrigação.
Como alguém aprende a improvisar? Ou como se aprende qual­quer tipo de arte? Ou qualquer coisa? É uma contradição, um para­doxo. Este é o nó elementar: chegar para alguém e dizer "Seja es­pontâneo!". Submetemo-nos a professores de música, de dança, de literatura que podem criticar ou sugerir. Mas, por trás de todas as críticas e sugestões, o que eles realmente nos pedem é que "sejamos espontâneos", "sejamos criativos". E isso, naturalmente, é mais fácil dizer do que fazer.
Como é que alguém aprende a improvisar? A única resposta possí­vel é uma outra pergunta: O que nos impede? A criação espontânea nasce de nosso ser mais profundo e é imaculadamente e originalmen­te nós. O que temos que expressar já existe em nós, é nós, de forma que trabalhar a criatividade não é uma questão de fazer surgir o materi­al, mas de desbloquear os obstáculos que impedem seu fluxo natural.


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Portanto, não se pode falar do processo criativo sem mencio­nar aquilo que lhe cria obstáculos: todo o lodo viscoso que o blo­queia, aquela insuportável sensação de estar atolado, de não ter na­da a dizer. Esperamos que este livro possa servir como uma bomba de sucção capaz de eliminar os bloqueios à criatividade. Mas o pro­cesso de destruir bloqueios é um processo sutil. Seria ótimo se hou­vesse uma receita fácil: "Como quebrar bloqueios em sete lições". Infelizmente, não é assim que funciona o processo criativo. O único caminho para escapar à complexidade é atravessá-la. Em última ins­tância, as únicas técnicas que podem nos ajudar são aquelas que nós mesmos inventamos.
Também não se pode falar de um processo criativo, porque as personalidades são diferentes e o processo criativo de uma pessoa não é igual ao de outra. Na luta pela expressão do ser, muitos seres podem ser expressos. Cada um precisa descobrir sua própria manei­ra de penetrar e atravessar esses mistérios essenciais.
Todos temos o direito de criar, o direito à realização e à satisfa­ção pessoal. Nem todo mundo está disposto a se postar diante de uma platéia sem qualquer planejamento, esperando que a Musa se manifeste. Mas muitas pessoas se vêem numa situação semelhante. Talvez você deseje dominar um instrumento musical, expressar-se na pintura, libertar o romance que tem dentro de si. Talvez você esteja na escola, desejando convocar sua criatividade para escrever uma re­dação original. Ou deseje dar uma guinada nos negócios, descobrin­do e executando algum projeto novo e nunca visto. Você pode ser um terapeuta em busca de uma saída para tratar um paciente, ou um ativista político à procura de uma maneira mais autêntica de fa­zer com que as pessoas se liguem ao que está acontecendo ao redor delas. Como criar uma nova maneira de administrar uma cidade que cresce desordenadamente, ou uma lei que resolva alguns dos com­plicados e insolúveis problemas que afligem um Estado, uma nação ou o mundo? Como descobrir uma nova maneira de conversar com o marido, a esposa ou a amante?
A literatura sobre a criatividade está cheia de histórias sobre ex­periências de ruptura, de insight. São momentos que ocorrem quan­do nos libertamos de algum impedimento ou medo e bum! - a Mu­sa se manifesta. Alguma coisa imprevisível salta de dentro do sei" e sentimos a clareza, o poder e a liberdade. A literatura zen, na qual tenho encontrado uma profunda análise de experiências de ruptura, está repleta de relatos de kensho e sartori - momentos de ilumina­ção e de total mudança de coração. Há um momento na vida em que simplesmente chutamos uma porta aberta. Mas, em última instân­cia, não existe nenhuma ruptura; o que descobrimos no transcorrer de

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uma vida criativa é uma série infinita de rupturas provisórias. Nessa viagem não há ponto de chegada, porque é uma jornada para den­tro da alma.
A música me ensinou a ouvir, não apenas o som, mas quem eu sou. Descobri a importância de nossas muitas tradições místicas ou esotéricas para a vida prática do fazer artístico. "Misticismo" não significa um nebuloso sistema de crenças ou fórmulas cabalísticas, mas uma experiência espiritual direta e pessoal. Nisso, difere das for­mas organizadas de religião, segundo as quais se deve acreditar em experiências de segunda mão, transcritas nos livros sagrados ou trans­mitidas pelos mestres. É o elemento místico que traz criatividade à religião. A atitude mística ou visionária expande e concretiza a arte, a ciência e a vida cotidiana. Vou acreditar no que o "Homem" me diz ou estou disposto a tentar experiências por mim mesmo e desco­brir o que é realmente verdade para mim?
Nosso tema é inerentemente um mistério. Não pode ser plena­mente expresso em palavras, porque diz respeito a profundos níveis espirituais pré-verbais. Nenhum tipo de organização linear pode fa­zer justiça a esse tema; por sua própria natureza, ele não pode ser contido absolutamente numa folha de papel. Olhar para o processo criativo é como olhar dentro de um cristal: quando fixamos os olhos Inuma face, vemos todas as outras refletidas. Neste livro, vamos olhar para um grande número de facetas, e voltar a observá-las de dife­rentes ângulos à medida que a visão for se aprofundando e se tor­nando mais complexa. Esses temas inter-refletidos, pré-requisitos da criação, são a alegria, o amor, a concentração, a prática, a técnica, o uso do poder dos limites, o uso do poder dos erros, o risco, a en­trega, a paciência, a coragem e a confiança.
A criatividade é a harmonia de tensões opostas, encapsulada na nossa idéia irrestrita de lila, ou brincadeira divina. À medida que acompanhamos o fluxo de nosso próprio processo criativo, oscila­mos entre os dois pólos. Se perdemos a alegria, nosso trabalho se torna grave e formal. Se abandonamos o sagrado, nosso trabalho perde contato com a terra em que vivemos.
O conhecimento do processo criativo não substitui a criatividade, mas pode evitar que desistamos dela quando os desafios nos parecem excessivamente intimidadores e a livre expressão parece bloqueada. Se soubermos que nossos inevitáveis contratempos e frustrações são fases do ciclo natural do processo criativo, se soubermos que nossos obstáculos podem se transformar em beleza, poderemos perseverar até a concretização de nossos desejos. Essa perseverança é muitas vezes um verdadeiro teste, mas há meios de passar por ele, há placas de sinalização. E a batalha, que é certamente para toda a vida, vale

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a pena. É uma batalha que gera um incrível prazer e uma enorme alegria. Todas as nossas tentativas são imperfeitas, mas cada uma dessas tentativas imperfeitas traz em si a oportunidade de desfrutar um prazer que não se iguala a nada neste mundo.
O processo criativo é um caminho espiritual. E essa aventura fala de nós, de nosso ser mais profundo, do criador que existe em cada um de nós, da originalidade, que não significa o que todos nós sabemos, mas que é plena e originalmente nós.
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Inspiração e
o Fluir do Tempo

Aquele que se prende à alegria
destrói as asas do viver;
mas aquele que beija a alegria durante o
. vôo vive um eterno amanhecer.
WILLIAM BLAKE

Quando se fala de improvisação, a tendência é pensar numa forma livre de fazer música, teatro ou dança; mas, além de suas próprias delícias, essas formas de arte são uma porta para uma experiência total na vida cotidiana. Todos nós somos improvisado­res. A forma mais comum de improvisação é a fala. Quando fala­mos e ouvimos, estamos recorrendo a um conjunto de blocos (voca­bulário) e de regras para combiná-los (gramática). E esses nos são oferecidos pela nossa cultura. Mas as frases que construímos com eles talvez nunca tenham sido ditas antes e nem venham a ser ditas depois. Toda conversa é uma forma de jazz. A atividade da criação instantânea é tão normal para nós quanto a respiração.
Não importa o que estejamos criando, seja arte ou seja um sim­ples prato culinário, improvisamos quando seguimos o fluir do tem- I
po e o desdobrar de nossa consciência, e não um roteiro predetermi­nado ou uma receita. Na criação da obra de arte, há dois momentos distintos: o momento da inspiração, em que uma intuição de beleza
ou verdade chega ao artista, e a luta, geralmente difícil, para manter a inspiração durante tempo suficiente para transportá-la para o pa­pelou a tela, para o filme ou a pedra. Um romancista pode ter um momento de insight (literalmente um flash) em que se revelam o nas­cimento, o significado e o propósito de um novo livro, mas talvez leve anos para escrevê-lo. Durante esse tempo, enquanto tem que man­tcr as idéias frescas e claras, ele precisa comer, viver, ganhar dinhei­
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ro, sofrer, conviver com os amigos e fazer todas as coisas que um ser humano faz. Na música ou no teatro, existe ainda um terceiro momento: além do momento (ou momentos) da inspiração e do tempo necessário para a criação, existe ainda o momento da apresentação da obra ao público. Muitas vezes uma música só é executada publi­camente após a morte do compositor.
Na improvisação, há apenas um momento. A inspiração, a estru­turação técnica e a criação da música, a execução e a exibição perante uma platéia ocorrem simultaneamente, num único momento, em que se fundem memória e intenção (que significam passado e futuro) eintuição (que indica o eterno presente). O ferro está sempre em brasa.
A inspiração, vivenciada como um flash instantâneo, é uma ex­periência deliciosa e revigorante que pode se prolongar por toda a vida. A criação de um simples verso traz consigo uma incrível cor­rente de energia, coerência e clareza, exaltação e exultação. Nesse momento, a beleza é palpável, viva. O corpo se sente forte e leve. A mente parece flutuar facilmente pelo mundo. Emily Dickinson disse que o poema é exterior ao tempo. A improvisação é também chama­da de extemporização, que significa tanto "fora do tempo" quanto "proveniente do tempo".
Mas esse belo sentimento não é suficiente. Como muitas outras sensações de beleza ou de alegria, ele pode nos trair surgindo num momento e desaparecendo no momento seguinte. Para resultar nu­ma obra de arte tangível, ou numa contínua improvisação, a inspi­ração criativa precisa se sustentar no tempo. Fazer arte apenas pelo sentimento de totalidade e comunhão no momento da inspiração se­ria o mesmo que fazer amor apenas pelo momento do orgasmo.
A tarefa do improvisador é portanto esticar esses momentos, prolongá-los até que eles se misturem à atividade do dia-a-dia. En­tão começamos a vivenciar a criatividade e a improvisação como uma atividade normal em nossa vida. O ideal - do qual podemos nos aproximar, mas que nunca atingimos plenamente, porque todos nós nos sentimos bloqueados durante certos períodos - seria um fluxo ininterrupto de vivências momentâneas. É a isso que muitas tradi­ções espirituais se referem quando falam de "cortar lenha, carregar água" - trazer para as atividades rotineiras da vida diária a lumi­nosidade, a profundidade, a simplicidade contida na complexidade que vivenciamos nos momentos de inspiração. Então poderemos di­zer, como os balinenses: "Não temos arte. Tudo o que fazemos é arte". Poderemos levar uma vida ativa sem nos prendermos tanto a roteiros ou rígidas expectativas: fazer sem se preocupar com o resultado, porque o fazer é em si mesmo o resultado.Caminhar por uma cidade desconhecida seguindo a intuição émuito mais gratificante do que uma excursão planejada por lugarestestados e aprovados. Mas esse passeio é totalmente diferente de pe­

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rambular a esmo. Mantenha os olhos e ouvidos bem abertos e deixe- se guiar por seus gostos e aversões, seus desejos e irritações conscientes ou inconscientes, seus palpites irracionais, cada vez que for preciso decidir virar à direita ou à esquerda. Você estará abrindo uma trilha só sua, que o colocará frente a frente com surpresas destina­das exclusivamente a você. Encontrará amigos, pessoas interessan­tes. Viajando dessa maneira você estará livre; não existem deveres e obrigações. A única coisa que você talvez precise planejar é o ho­rário de partida do avião. Daí para a frente, à medida que as pes­soas e os lugares foram se desdobrando à sua frente, a viagem, como uma peça musical improvisada, irá revelando sua estrutura interna e seu próprio ritmo. Cabe a você criar o cenário para encontros de­cisivos.
Existem muitas situações em que somos impropriamente solici­tados a planejar ou roteirizar o futuro. A comunicação que se estabelece no relacionamento humano, em particular, torna-se confusa e distorcida quando não vem diretamente da mente e do coração. É por isso que instintivamente sentimos a falsidade dos discursos po­líticos. Geralmente sentimos um certo mal-estar sempre que alguém I lê um discurso preparado - mesmo um bom discurso - em vez de nos falar diretamente. Se você for dar uma palestra, convém prepa- rar o que deve dizer para organizar suas idéias, mas, quando estiver diante do público, jogue fora os rascunhos e fale diretamente com as pessoas presentes.
Muitas escolas seguem um programa que estipula o que os alu­nos devem aprender, e ainda como e quando eles vão aprender. Mas numa verdadeira sala de aula, seja no jardim-de-infância, na uni­versidade ou na escola da vida, existem pessoas com necessidades par­ticulares e diferentes níveis de conhecimento. Um empurrãozinho nu­ma determinada direção pode mudar a perspectiva do aluno; depois de uma discussão, ele saberá que uma determinada leitura será con­veniente, pois lhe parecerá o passo seguinte no fluxo natural do apren­dizado. Não se pode planejar essas coisas. É preciso ensinar cada pessoa, cada classe, em cada momento: cada caso exige uma aten­ção particular. Planejar o aprendizado sem conhecer as pessoas que. irão aprender, suas potencialidades e deficiências, a maneira como elas interagem, significa impedir que as surpresas e o verdadeiro apren- '" dizado ocorram. A arte do professor é pôr em contato, no tempo real, os corpos vivos dos estudantes com o corpo vivo do conheci­mento.
Mas também existem situações em que um comportamento plancjado é apropriado. Se vou dar um concerto improvisado, posso deixar que aquilo que vou tocar e a maneira como vou tocar fluam do

meu sentimento no momento. Mas se anunciei meu concerto para as 8h30 da noite de sábado, e as pessoas planejaram suas vidas para chegar a essa hora, então, aconteça o que acontecer, vou estar lá e pronto para tocar. E se esse concerto estiver programado para uma outra cidade, a última coisa que desejaria enfrentar seria uma im­provisação nos horários das companhias aéreas.
Um amigo meu que é médico me perguntou o que um assunto tão efêmero como a criatividade espontânea tem a ver com alguém como ele, cujo trabalho é prático e científico. Eu lhe respondi com uma pergunta: "Onde está a arte na medicina?". Ele me disse que na falsa medicina o médico encara o paciente como um exemplo de um livro de casos médicos: vê o paciente como um grupo genérico de sintomas e tenta classificá-lo de acordo com o que seus professo­ res lhe ensinaram. Na verdadeira medicina, cada pessoa é única ­num certo sentido, o médico deixa de lado o conhecimento puramente técnico. Ele mergulha no caso, deixando que sua visão se forme de acordo com aquele contexto particular. É claro que ele usa aquilo que aprendeu, utiliza seus conhecimentos como referêncía, tenta compreendê-los, baseia-se neles, mas não permite que eles o ceguem­ para a pessoa de carne e osso que está à sua frente. Dessa forma, ele uItrapassa o campo da competência para entrar no campo da pre­sença. Para fazer qualquer coisa com arte é preciso adquirir técnica, mas criamos por meio de nossa técnica, e não com ela.
A fidelidade ao momento presente exige uma contínua entrega. Talvez estejamos nos entregando a algo delicioso, mas ainda assim temos de desistir de nossas expectativas e de um certo grau de con­trole sobre nossa vida. Continuamos engajados na importante ativi­dade de planejar - não para trancar o futuro num esquema rígido, mas para afinar o ser. Quando planejamos, focalizamos nossa aten­ção no campo em que estamos prestes a entrar; então nos libertamos do plano e descobrimos a realidade do fluir do tempo. Assim, pas­samos a viver em sincronicidade.
Como músico improvisador, não estou no campo da música, nem da criatividade; estou no campo da entrega. Improvisar é aceitar, a cada respiração, a transitoriedade e a eternidade. Sabemos o que po­derá acontecer no dia seguinte ou no minuto seguinte, mas não sa­bemos o que vai acontecer. Na medida em que nos sentimos seguros do que vai acontecer, trancamos as possibilidades futuras, nos isola­mos e nos defendemos contra essas surpresas essenciais. Entregar-se significa cultivar uma atitude de não saber, nutrir-se do mistério conti­do em cada momento, que é certamente surpreendente, e sempre novo.
Desde os anos 60, a questão psicológica de viver o momento pre­sente tem se tornado uma preocupação constante. Ela passou a ser vis­
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ta como uma das chaves da realização pessoal e, sob diversas formas, tem sido o ensinamento de milhares de mestres e gurus. A popularidade dessa idéia nos re­vela que tocamos numa questão de vital importância para nossa época, e ela flo­resce em todos os campos, do amor ro­mântico à física quântica.
Uma verdade que comprovamos na prática em nossa vida é que não sabemos nem podemos saber o que vai acontecer no dia ou no minuto seguinte. O inespe­rado nos aguarda a cada esquina e a ca­da respiração. O futuro é um mistério que se renova perpetuamente. Quanto mais vivemos e conhecemos, maior é es­se mistério. Quando nos livramos das idéias preconcebidas que nos cegam, so­mos virtualmente impulsionados por ca­da circunstância a viver o momento pre­sente: o presente, o presente total, e na­da mais que o presente. É esse estado mental que a improvisação nos ensina e fortalece em nós, um estado de mente em que o aqui-e-agora não é apenas uma idéia, mas uma questão de vida ou mor­te, a partir da qual podemos aprender a confiar - a acreditar que o mundo é uma perpétua surpresa em perpétuo movimen­to. E um perpétuo convite à criação.
Qualquer bom músico de jazz pos­sui inúmeros truques de que pode se ser­vir quando se vê num beco sem saída.
Mas para improvisar você precisa aban­donar esses truques, entrar no vazio e aceitar riscos, até mesmo o de dar com a cara no chão de vez em quando. Na ver­dade, o que o público mais adora é nos ver cair. Porque então pode ver como conseguimos nos levantar e ir em frente.
A vida criativa é uma vida de riscos. Seguir o próprio curso, sem o molde es­tabelecido por pais, colegas ou institui­

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ções, envolve um frágil equilíbrio entre tradição e liberdade pessoal, um frágil equilíbrio entre apegar-se aos próprios princípios e estar aberto à mudança. Embora, sob alguns aspectos, você esteja viven­do uma vida normal, por outro lado você é um pioneiro, aventurando-­se num território desconhecido, quebrando moldes e modelos que inibem o desejo do coração, criando vida à medida que ela se desen­rola. Ser, atuar, criar no momento presente, sem muletas ou supor­tes, sem segurança, pode proporcionar um supremo prazer, mas tam­bém pode dar medo. Dar um passo para o desconhecido pode levar à alegria, à poesia, à invenção, ao humor, a amizades para toda a vida, à realização pessoal e, ocasionalmente, a grandes insights cria­tivos. Mas também pode levar ao fracasso, ao desapontamento, à rejeição, à doença e até à morte.
No trabalho criativo, jogamos abertamente com a transitorie­dade de nossa vida, com uma certa consciência de nossa morte. Ou­çamos a música que Mozart compôs no fim da vida: nela ouviremos a leveza, a energia, a transparência e o bom humor, mas também o sussurro de fantasmas. A vida e a morte estavam muito próximas dele. Foi exatamente essa intensa comunhão com as forças primais que se fundiam nele - e a liberdade com que ele tocava com essas forças - que fez de Mozart o artista soberbo que ele foi.
Cada momento é precioso precisamente porque é efêmero e não pode ser repetido, corrigido ou capturado. Achamos que tudo o que é precioso deve ser guardado e preservado. Queremos registrar a be­leza, um desempenho inesperado. De fato, muitas grandes perfor­mances têm sido gravadas, e estamos felizes por possuí-las. Mas as melhores performances escapam à câmara, ao gravador ou à cane­ta. Acontecem no meio da noite, quando o músico toca para um amigo especial à luz da lua; acontecem no camarim, pouco antes do espetá­culo. O fato de a improvisação se desvanecer nos faz entender que cada momento da vida é único - como um beijo, um pôr-do-sol, uma dança, uma piada. Nada voltará a ocorrer exatamente da mes­ma maneira. Tudo acontece apenas uma vez na história do universo.

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o Veículo

Existe uma vitalidade, uma força vital, uma energia, uma vivacidade que é traduzida em ação por seu intermédio, e como em todos os tempos só existiu uma pessoa como você, essa expressão é única. Se você a bloquear, ela jamais voltará a se manifestar P( por intermédio de qualquer outra pessoa,
e se perderá.
MARTHA GRAHAM

Cada música que executamos, cada dança, cada dese­nho, cada episódio de nossa vida reflete nossa mente, inteira em to­das as suas imperfeições, exatamente como é. Na improvisação, es­tamos especialmente conscientes desse reflexo: como não podemos voltar atrás, não há como cortar, emendar, fixar, retocar ou se arre­pender. Nesse aspecto, a música espontânea lembra a caligrafia orien­tal ou a pintura a nanquim. O deslizar do pincel embebido em tinta negra sobre uma fina e frágil folha de papel não permite que um único traço seja apagado ou refeito. O pintor-caligrafista lida com o espa­ço como se fosse tempo. O impulso individual que nasce do ventre e se comunica para o ombro, e daí para a mão, para o pincel e para o papel, deixa seu traço definitivo, um momento único congelado para sempre no papel. As peculiaridades e imperfeições, que estão ali para qualquer um ver, são a marca da natureza original do calí­grafo. Essa peculiaridade com que nos expressamos por meio do cor­po, da fala, da mente ou do movimento é o que chamamos estilo, o veículo pelo qual o ser se move e se manifesta.
A essência do estilo é a seguinte: existe algo em nós que pode receber várias denominações, mas que por enquanto vamos chamar de natureza original. Nascemos com uma natureza original, mas, à medida que crescemos, vamos nos adaptando aos padrões culturais e familiares, ao ambiente físico e às circunstâncias da vida diária. Aquilo que nos é ensinado se solidifica como "realidade". Nossaper­sona, a máscara que mostramos ao mundo, se cria passo a passo a par­

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Tir de nossa experiência e de nossa educação, desde a infância até a idade adulta. Construímos o mundo por meio de atos de percep­ção, aprendizado e expectativa. E, por meio dos mesmos atos de per­cepção, aprendizado e expectativa, construímos nosso "ser". O mun­do e o ser se interligam a cada passo e a cada bloco dessa constru­
ção. Se as duas construções, a do ser e a do mundo, se realizam de.
uma forma harmónica e adaptada desde a infância até a idade adul­ta, nos tornamos "indivíduos bem-ajustados". Se elas não se har­monizam bem, podemos experimentar sentimentos de divisão inter­na, solidão ou alienação.
Se aCQntece de nos tornarmos artistas, nosso trabalho assume, em certa medida, o estilo da época: a roupagem que recebemos de nossa geração, de nosso país, de nossa língua, de nosso ambiente, das pessoas que nos influenciaram.
Mesmo quando nos tornamos adultos "bem-ajustados", tudo o que fazemos e somos - nossa letra, o timbre de nossa voz, a ma­neira como sopramos um instrumento, o modo como usamos a lin­guagem, a expressão de nosso olhar, nossas impressões digitais -, todas essas coisas são sintomas de nossa natureza original, revelam a marca de nosso estilo ou de nosso caráter mais profundo.
Muitas vezes se imagina que na improvisação se pode fazer qual­quer coisa. Mas ausência de planejamento não significa necessariamen­te que o trabalho seja feito ao acaso e arbitrariamente. A improvisação tem suas regras, mesmo que essas regras não sejam fixadas a priori. Quando somos totalmente fiéis à nossa individualidade, estamos na verdade seguindo um esquema bastante intrincado. Esse tipo de liber­dade é o oposto de "qualquer coisa". Nós nos conduzimos de acordo com regras inerentes à nossa natureza. Como seres moldados pela cul­tura, somos incapazes de produzir qualquer coisa aleatéria. Nem mes­mo um computador pode ser programado para produzir números alea­tórios; o máximo que podemos fazer é criar um padrão tão complexo que dê a ilusão de aleatoriedade. O conjunto corpo-mente possui um altíssimo grau de organização e estruturação, fruto de centenas de mi­lhões de anos de evolução. A pessoa que improvisa não opera a partir de um vácuo, mas de três bilhões de anos de evolução orgânica: tudo o que já fomos está codificado em algum lugar dentro de nós. Além dessa longa história, temos algo mais a que recorrer: o diálogo com o Ser - um diálogo que não se estabelece apenas com o passado, mas com o futuro, com o ambiente, e com o divino que existe dentro de nós. Quando fazemos música, escrevemos, falamos, desenhamos ou dan­çamos, a lógica interna, inconsciente, de nosso ser se revela e molda o material. Este rico e profundo padrão é nossa natureza original que se imprime como um selo em tudo o que somos ou fazemos.

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Podemos perceber o caráter de uma pessoa na maneira como ela anda, dança, descansa ou escreve. Os impulsivos garranchos e rabiscos presentes nas partituras de Beethoven revelam a incontrolável rebeldia e a integridade de sua mente. A fluência e a nitidez das par­tituras de Bach revelam uma mente clara e organizada. Estilo e perso­nalidade brotam de cada traço que eles produziram. O estilo é o veí­culo de sua grande paixão, não apenas pessoal, mas transpessoal.
Observemos a força e a liberdade do traço de um contemporâ­neo de Bach, Hakuin, o grande pintor japonês e reformador do zen­budismo, e dos monges artistas de sua escola. Dentre suas obras, são particularmente conhecidos os ensos, retratos da mente e da realida­de que consistem em nada mais do que um O, um círculo impresso no papel numa só pincelada. Existe muito mais nesse simples círculo do que o olhar é capaz de registrar. O caráter desse O, as variações e inclinações da curva, seu peso e sua textura, seus meneios e imper­feições, revelam um imprimátur que nasce de um lugar muito mais profundo do que o estilo da época, muito mais profundo do que a habilidade técnica ou a personalidade superficial.
Praticamente todas as tradições espirituais estabelecem uma dis­tinção entre o ego e o Ser mais profundo e criativo: o pequeno ser em oposição ao grande Ser. O grande Ser é transpessoal, ultrapassa a individualidade, o terreno comum que todos partilhamos.
William Blake fez uma curiosa e interessante observação: "Je­sus era todo virtude, e agia por impulso, não segundo regras".7 Nor­malmente imaginamos que a virtude se origina da obediência às re­gras e não do impulso, e também que agir por impulso é loucura e
I selvageria. Mas se Jesus tivesse seguido as regras da moralidade e
1 da virtude convencionais, teria morrido velho como qualquer cida­dão leal ao Império Romano. O impulso, como a improvisação, não é "qualquer coisa", não é algo sem estrutura, mas a expressão de uma estrutura orgânica, imanente e autocriadora. Blake via em Je­sus a encarnação de Deus, um ser que agia não de acordo com as limitadas idéias alheias, mas em harmonia com o Ser maior e mais profundo, um Ser que está além da consciência e é a totalidade do universo vivo, que se expressa impulsivamente, espontaneamente, por meio dos sonhos, da arte, do mito, da espiritualidade.
Com aquele simples O, os artistas zen tinham o talento de con­centrar a totalidade do Ser nos atos mais simples. Aquele simples e espontâneo O é o veículo do self, o veículo da evolução, o veículo da paixão. É o simples e enorme sopro de Deus, sem as complica­ções do foi e do devia ser, sem perguntas e explicações. Como nosso flautista descobriu, esse imprimátur jamais pode ser obtido com es­
t tudo e repetição. Hakuin escreveu: "Quando se esquece de si mes­

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mo, você se torna o universo". 11 Essa misteriosa entrega, a criativa surpresa que nos liberta e nos abre para o mundo, permite que algo brote espontaneamente. Se formos transparentes, se nada tivermos a esconder, o abismo entre a linguagem e o Ser desaparece. Então a Musa pode se manifestar.

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(de: SER CRIATIVO, de S. Nachmanovitctch- Summus Editorial)

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